Dez considerações sobre a greve dos entregadores de aplicativos
Um salve aos lutadores nessa ação histórica. Todo apoio a greve. Só a luta muda a vida. Que a unidade da categoria seja a tônica da luta e ajude a promover uma unidade ampla de apoio e solidariedade efetiva
Organizei um conjunto de pequenos temas e faço em formato de breves notas sobre cada um deles. Sem juridiques, ainda que abordando temas relacionados.
O dia de hoje já é histórico. Uma ação radical para uma categoria desorganizada e desprotegida será a tônica desse dia. Uma ação que demonstra muita disposição para a luta.
Aos pontos:
- Os aplicativos representam uma figura antiga das relações de trabalho e sociais. A figura dos intermediários, muito famosa no comércio e muito impactante na agricultura. Essa figura é a que vive de “comprar barato e vender caro”, ficando com a maior fatia da renda e do lucro, e na história foi esse setor da economia que garantiu o desenvolvimento econômico pré capitalista com o período do mercantilismo. Antes centrado na compra e venda de mercadorias, desde muito também atua nos serviços.
É muito comum lembrar dessa figura na construção civil com a figura do empreiteiro de obras, mas desde muito vem se ampliando para os diversos segmentos dos serviços. A legislação trabalhista só chegou a regulamentar o trabalho avulso e a regulação via OGMO – Órgão Gestor de Mão de Obra, que é a regulação do trabalho avulso no ramo dos portos (estiva).
Se no período anterior a relação se dava entre restaurantes, comércios e serviços entre os tomadores (ramo da prestação de serviço ou comércio) e os trabalhadores, passa a ser mediada por uma empresa que só existe para intermediar essa relação. E ganhar nela sem correr os riscos do trabalho ou do negócio principal (comércio e serviços entregues pelos motociclistas).
- Trabalho na livre concorrência x oligopólio dos Apps. Há uma desvantagem estrutural nessa relação comercial-social-trabalho: entre os trabalhadores predomina a livre-concorrência, uma disputa pela sobrevivência que garante aos contratantes os menores preços, que atualmente são na linha do mínimo para cobrir os custos e em muitas situações a prestação de serviços é com um pagamento que não cobre os custos elementares. Por outro lado os “tomadores” se concentram em um oligopólio hoje com 3 grandes empresas (Rappi, Uber Eats e Ifood) transnacionais e que nem disfarçam isso com o estrangeirismo nos nomes. Pagam quanto querem.
- Desemprego é a base da maior parte dessa “escolha” (as aspas são por pressupor que a maior parte da categoria trabalha com isso por justamente faltar escolha, mas é polêmico). O desemprego altíssimo entre jovens lança uma imensa massa de trabalhadores para um ofício de alto risco, sem proteção social, com altas taxas de acidente e baixíssima renda. Sobrevivência que chama.
- A roda não volta pra trás. Mudanças na tecnologia permitem hoje que os contratos sejam feitos em segundos, com monitoramento em tempo real, avaliações de multiplas dimensões, responsabilização compartilhada (sempre mais para os mais fracos). Trocando em miúdos: a fragmentação da produção industrial vivenciada no século XX com a compartimentação da produção e industrias que são verdadeiras montadoras, e isso foi uma mudança importante nesse campo. Os avanços tecnologicos e das comunicações representam o mesmo processo no setor de serviços. Isso só se intensificará e as relações de trabalho e proteção não estão preparadas para essa situação.
- A categoria dos “entregadores de aplicativos” é uma categoria diversa. Diferenças na relação estabelecida como quem faz apenas um complemento da renda, outros com essa função como a única para sobreviver. Os chefes são as avaliações – subjetivas, exigentes e que desprezam a relação desprotegida e os altos riscos de acidentes. Recebem por entrega, com premiações a partir de cada aplicativos e possibilidades de recusa que misturam liberdade e uma escolha que será punida posteriormente com o tempo de “geladeira” sem pegar entregas. O mais importante nessa diversidade é que são todos avulsos – contratos, trabalho, avaliação, remuneração, premiações e eventuais (raras) negociações sempre entre os poderosos aplicativos e os trabalhadores individualmente. Ou seja: não há negociação, mas adesão a regras e valores impostos pelas empresas. Essa diversidade também alcança os meios de transporte: bicicletas e motos predominam, mas há quem trabalhe com patinetes ou até mesmo a pé.
- Greve, paralisação ou ato de sacrifício. A greve é a possibilidade de interrupção do trabalho sem prejuízo da remuneração, como parte da negociação entre os patrões e os trabalhadores. A ação de hoje é de absoluto desespero. Os jovens que vão parar o farão por conta e risco: sem qualquer proteção ante a punições, que podem ser explícitas como um descredenciamento, ou mais sutis, via redução do acesso a pedidos e consequentemente a redução da renda. Além de não ter proteção alguma a renda é conquistada diariamente e esse dia será de saldo zero as custas deles. Uma ação com grandes impactos na vida de quem vive com condições mínimas.
- A ação como parte da luta. A ação de hoje é um grito de desespero e de disposição de luta. Mas é parte da luta e somente com muita unidade da diversa (e dispersa) categoria, com bandeiras claras para a negociação, construíndo com os segmentos organizados dentro da categoria, como os sindicatos dos motoboys e outros. É a luta de milhares de super explorados com gigantes. Há uma semelhança, ainda que preservada as diferenças, das memoráveis greves dos estivadores ingleses no final do século XIX e construtores da regulação do trabalho da estiva, construção de sindicatos de luta, conquistas economicas importantes e exemplo para o mundo. Eram trabalhadores avulsos, constratados por hora e que passavam parte do tempo de uma arquibancada esperando um chefe aparecer para escolher entre os pares os mais fortes e menos barulhentos. Uma relação brutal de exploração de uma categoria com semelhanças em relação aos que farão esse ato hoje.
- Organização dos trabalhadores. O avanço dessa luta dependerá da capacidade de organização de uma categoria marcada pela fragmentação e poucos espaços de encontro, dificultando as tradicionais formas de organziação a partir do local de trabalho. Sem um local fixo a organização terá que se desdobrar – como já tem feito – para conseguir organizar em espaços comuns de natureza sindical para organizar a negociação e a luta. Sem organização forte a luta tende a ser por espasmos e enfraquecer.
- Organização e regulação do trabalho. O trabalho de entregadores de aplicativos é desprotegida na legislação. Resumidamente são tratados, para fins de riscos, como empreendedores, o que significa que cada um é um micronegócio, com todos os riscos e lucros disso. Essa é a forma de criar desresponsabilização dos tomadores. Ocorre que esses jovens não tem proteção social para acidentes de trabalho (ou doenças do trabalho), para a redução do volume de oferta (que pode ser com o aumento da concorrência entre eles, crise no mercado, etc.) e para a aposentadoria.
Ademais, a ausencia de regulação é fator de maior vulnerabilidade para negociar e garantir a ampliação de direitos para os trabalhadores.
- Solidariedade efetiva. A anunciada greve causou comoção e muito apoio social e político. Nas redes pululam propostas sobre o que fazer hoje para apoiar e a tendência é aumentar esse apoio. Há uma sensibilização geral para o tema. Mas, pena que tudo tem esse “mas”, é importante apoiar, demonstrar isso publicamente (hoje restrito as redes), ao não usar o serviço nesse dia, mas somente com muita solidariedade essa luta poderá avançar.
Apoiar fundos de greve para garantir renda, articular apoios de entidades de trabalhadores, corpo técnico de advogados, assistentes sociais, economistas e outros para apoiar a pressão e negociação, bem como os sindicatos que estão na luta. É muito importante todo o apoio, mas essa luta não pode ser baseada apenas em sacrifícios enormes dos trabalhadores e redução parcial dos ganhos dos aplicativos, por que sabemos que se for baseada nessa relação desigual de forças e possibilidades a luta será estrangulada pela sobrevivência sempre urgente. Ou seja: quando o debate é sobre prato de comida não tem tática, mas prato de comida. Que esse apoio e comoção se converta em muitas iniciativas para respaldar a ação e a sobrevivênica nesses dias de luta e sacrifício.
Um salve aos lutadores nessa ação histórica. Todo apoio a greve. Só a luta muda a vida.
Que a unidade da categoria seja a tônica da luta e ajude a promover uma unidade ampla de apoio e solidariedade efetiva.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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