Dia 31
Trecho de "O dia em que conheci Brilhante Ustra" (*)
O Alemão se aproximou das grades, veio puxar conversa, que história era essa de eu nunca ser chamado ao segundo andar, chamavam todo mundo, “menos você”, menos eu, que privilégio era esse, qual era meu esquema, eu não sabia se ele falava a sério ou estava tirando um sarro, eu nunca sabia porque a cara dele era sempre a mesma, aquela cara de cachorro satisfeito, de língua pra fora, um cachorro de olhos sorridentes, eu também não sabia, às vezes também me perguntava se tinha algum anjo da guarda me protegendo, mas isso não me deixava menos atormentado, porque quanto mais dias passavam sem que eu fosse levado ao segundo andar, mais próximo podia estar o dia em que eu irei, eu também às vezes me achava meio privilegiado, por que eles e não eu?, mas, cacete, eu nem sabia o que estava fazendo ali, não conhecia ninguém, não poderia delatar, não tinha informações, não tinha ficha pregressa, nada disso, a única acusação era que eu seria um tal de Hippie da AP, e isso não teria muita importância se não fosse dito pelo chefe dos chefes, Brilhante Ustra em pessoa, ele disse que eu era o Hippie da AP e que eles iriam provar, estavam procurando provas até agora?, se não perdem tempo comigo me torturando, por que perdem tempo me investigando?, tempo é dinheiro em qualquer lugar do planeta e muito mais aqui dentro, o que Brilhante Ustra não disse foi do que esse Hippie da AP é acusado, de matar alguém?, de subverter a ordem, de comandar passeatas, qual foi o “crime” do Hippie da AP?, mas para quê falar disso com o Alemão, não posso brigar com ele, é ele que traz comida e jornal todo santo dia, faço uma cara de interrogação, sei lá porque não me levam, deve ser porque tem gente mais importante do que eu para ir para o pau, sou peixe pequeno, nem peixe eu sou, sou uma minhoca, não li Marx no original, não quero fazer uma revolução comunista, sou mais “faça amor, não faça a guerra”, não comando ninguém, nem sou comandado, então não sou eu quem deve explicações, são eles, são vocês eu diria ao Alemão se fosse mais atrevido, mas também mais inconsequente, melhor o Alemão falar, aqui ganha mais quem mais escuta que fala, e então o Alemão diz que a minha sorte é que a turma do Esquadrão da Morte não está por aqui, faz tempo não aparece, de vez em quando batem o ponto aqui, o Alemão falava com admiração e entusiasmo, os caras não dão ponto sem nó, o Alemão conheceu Sérgio Fleury em pessoa, de longe, é claro, no gabinete do Brilhante Ustra, entrou para servir o café, e lá estava o terrível carniceiro, mata, mas mata gente ruim, disse o Alemão, quanto menos gente ruim no mundo, melhor, mas Alemão conheceu de perto o Fininho, esse sim, não era de gabinete, um cara cem por cento, gostava de beber com a gente no boteco, a gente da ralé, diz Alemão, gostava de uma boa conversa e não parava de falar, um cara aberto, sincero, e muito profissional, tanto que chegou onde chegou, quase no topo, falava pelos cotovelos, amava mandar pros quintos dos infernos quem não prestava, fazia uns bicos aqui, quando chamavam, porque o trabalho principal era caçar bandido comum, mas em casos especiais, quando tinha ordem de pegar um cara perigoso, ele vinha para cá, não tinha medo de cara feia, a última vez foi agora há pouco, acho que em abril, sim foi em abril, um trabalho em que, para variar, Fininho foi muito elogiado, porque foi colaborativo e humilde, um cara como ele, com a sua história, poderia exigir o que quisesse, dar o tiro fatal, por exemplo, mas ele não, aceitou fazer o papel que o Freddy Perdigão mandou, seguir o elemento durante alguns dias, para saber seus hábitos, onde vai e a que horas, seguir não de tão perto que o cara perceba, nem de tão longe que perca sua pista, dia e noite, fazer campana é trabalho de Jó, não é para alguém como Fininho, mas ele fez, seguiu o sujeito e no dia combinado foi o motorista da Veraneio C-14 que saiu cedinho da rua Tutóia, do pátio do DOI-Codi, Fininho acompanhado por mais três colegas, dois deles também da equipe do Fleury, atrás deles seguiram outros dois veículos disfarçados - ele contou tudo para a gente, no boteco - e a Veraneio seguiu pela rua Tutóia até virar à direita na Brigadeiro Luiz Antônio, subiu a ladeira até à Paulista, atravessou a Paulista, e depois entrou, à esquerda, na alameda Ribeirão Preto, foi em frente, e mais adiante, já na rua Antônio Carlos, dobrou à esquerda na rua da Consolação, dobrou de novo à direita e ao entrar na avenida Angélica diminuiu a velocidade, Fininho avisou que estavam chegando ao alvo, todos deveriam estar prontos, eram 7h40 no relógio quando Fininho brecou quase na esquina da rua Sergipe e apontou um rapaz cabeludo, de barba que estava no ponto esperando o ônibus, os outros policiais desceram, e então o cabeludo sacou a sua arma, uma 38, houve um cerrado tiroteio e o cara finalmente foi finalizado, quer dizer, morreu em cerrado tiroteio, foi o que Fininho contou para nós, lá no boteco, tem prova que foi isso mesmo, exame no IML, essas coisas todas, foi tudo muito bem provado.
No dia seguinte contei ao O.R. o que Alemão tinha contado para mim, esperando que dissesse que não podia ser verdade, Fleury no DOI-Codi, Fininho no DOI-Codi, eles matam bandidos comuns, Esquadrão da Morte não se mistura com política, o Alemão inventou isso daí para se exibir, tem informações privilegiadas, ou para me assustar, ele desconfiou de mim porque não subo ao segundo andar, e então O.R. pensou um pouco, “espera aí, isso aconteceu na Angélica com Sergipe?”, em abril?, sim, foi em abril, o Alemão falou abril, um tiroteio, eles sempre dizem tiroteio cerrado, “agora me lembro”, disse O.R., foi quando caiu uma célula da ALN, mataram o “Papa”, tem uma testemunha-chave, se não me engano chama-se Paulo, um estudante de Geologia, ele morava naquela área e naquele dia, precisamente naquela hora, estava subindo, a pé, a Angélica, tinha uma reunião de trabalho na companhia do metrô, conseguiu um estágio, estava com pressa, andando pela calçada direita da avenida e então logo depois de cruzar a rua Sergipe ele viu uma Veraneio creme estacionar bruscamente em frente ao ponto de ônibus do outro lado da rua, a uns dez, doze metros dele, ele parou, assustado com a freada brusca, então dois caras desceram da Veraneio atirando, ele viu perfeitamente, um deles atirou num sujeito muito cabeludo que estava esperando a condução, o cara foi escorregando encostado no muro e então um dos caras chegou mais perto e deu mais um tiro, o tiro de misericórdia, no rosto, e quando o morto já estava estendido na calçada, o motorista da Veraneio também saiu do veículo e plantou dois revólveres nele, um na cintura, outro na mão, se o Alemão disse que o motorista era o Fininho, então foi o Fininho, foi execução sumária, entregaram o caixão à família lacrado, ninguém viu o corpo do “Papa”, foi a resposta que eu não queria ouvir, então é verdade que o esquadrão da morte anda por aqui.
* (*) nas boas livrarias, sites ou peça pelo e-mail alexandersolnik@gmail.com
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