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    Valéria Dallegrave

    Jornalista, escritora e dramaturga

    35 artigos

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    Dia da Consciência Negra: indignação e luta

    "Quando o ódio, o preconceito e a intolerância forem destituídos do poder, toda a riqueza de nossa nação poderá florescer, na diversidade de um povo com culturas e naturezas diversas, em um todo generoso, capaz de amar o diferente", escreve a colunista Valéria Dallegrave neste Dia de Zumbi

    Dia da Consciência Negra: racismo ficou pra trás? (Foto: Divulgação)

    Ontem, na véspera do Dia da Consciência Negra, um homem negro foi espancado até a morte no estacionamento de um hipermercado. As cenas do espancamento estão disponíveis nas redes sociais. São chocantes, pois a ação violenta dos supostos “seguranças” do Carrefour ultrapassa qualquer limite. Um golpe atrás do outro sem medir força, sem pausa, como uma máquina, uma batedeira de bolo. Faz lembrar o espancamento do mendigo idoso protagonizado pela gangue de Alex em Laranja Mecânica. No filme, são jovens delinquentes e sádicos (que se embriagam com um leite “plus”), agindo em um beco na penumbra. Ontem, na vida real, foram “seguranças”, no “trabalho”, em ambiente público bem iluminado, matando com violência, sob as câmeras de celulares.  

    Sem dúvida precisamos repensar nossa sociedade, que parece estar pior que o (fictício) mundo  violento do filme de Kubrick. Uma das diversas questões que se tornam urgentes é: Para que servem seguranças!? Para proteger clientes e trabalhadores? Para zelar pelo patrimônio da empresa? Para deter quem se torna uma ameaça? O certo é que não deveria ser parte do seu papel agredir, ferir, espancar, matar.  

    Mas não foi um caso isolado. Vamos lembrar que o Brasil tem a polícia que mais mata no mundo - e mais morre, uma coisa está ligada à outra... Qual o papel da polícia!? Qual o limite entre deter e matar? Para alguns, matar pode ser uma forma de deter. Qual a diferença entre um indivíduo detido e um morto? A diferença é a vida. Isso me lembra um diálogo no livro Ensaio Sobre a Cegueira, de Saramago: “Temos aqui um coronel que acha que a solução era ir matando os cegos à medida que fossem aparecendo. Mortos em vez de cegos, não alteraria muito o quadro. Estar cego não é estar morto, Sim, mas estar morto é estar cego” (a conversa se dá entre representantes do Ministério da Saúde e do Ministério do Exército).

    Tenho, aliás, destacado trechos do livro de Saramago em alguns vídeos, pois a epidemia de cegueira  da qual fala, provocada por um vírus altamente contagioso, proporciona muitas reflexões interessantes para o momento. Uma delas é a triste constatação de que a sociedade perdeu a noção do valor da vida humana. O que vemos no livro são humanos descartando humanos, sem o menor remorso ou culpa, para evitar o contágio. As pessoas contaminadas são conduzidas para um local com o único propósito de isolá-las dos “sãos”, afim de que o mundo possa continuar “normal”.

    O “normal” em que vivemos, fora do livro, é muito semelhante: a  vida perdeu o valor. Principalmente a vida daqueles que foram historicamente desvalorizados, vítimas de preconceitos diversos. Negros, mulheres, índios, homossexuais, transsexuais, travestis, pobres... A sociedade acostumada a matar e morrer banaliza a morte do outro, que gera pouca ou nenhuma repercussão. Os indivíduos acostumados com o egocentrismo capitalista preocupam-se apenas com a própria vida, de forma burra, inclusive.

    Ampliar horizontes é perceber que a luta contra a injustiça e o preconceito que o outro sofre é a luta pela própria vida, pela própria segurança, pelos próprios direitos. O preconceito é um ódio que vai se instalando sorrateiramente nos subterrâneos da consciência e anula a capacidade de pensar. É uma arma carregada cujo cano, de uma hora para outra, pode se voltar contra qualquer um que seja minimamente diferente. Ela, você, eu. E às vezes essa arma é empunhada por nós. Em Saramago, logo adiante, encontramos: “Quer saber a novidade, aquele coronel de quem lhe falei cegou. A ver agora o que pensará ele da idéia que tinha. Já pensou, deu um tiro na cabeça”...

    Os indivíduos formatados inconscientemente pelo capitalismo (que tem o capital como valor primordial, em detrimento do valor da vida) não apenas se dessensibilizam quanto à morte do outro (e de si mesmo, em alguns casos), como podem tornar-se máquinas de matar, fabricadas não só pelo egoísmo, mas pelo costume à impunidade, às manifestações de ódio (vamos metralhar a petralhada), à cultura do estupro (não te estupro porque você não merece) e violências diversas (minha vontade era encher tua boca de porrada...). O agressor que chegou à cadeira da presidência lhes inspira.  

    No Brasil cheio de ódio e feridas que desfila agora à nossa frente, há um despresidente que é o maior representante do desprezo pela vida humana. A ele, importa que o pais volte ao “normal” a qualquer custo, sem maiores transtornos para sua equipe incompetente, incapaz de criar uma estratégia contra o vírus, que reduza a quantidade de mortos. Por isso é negacionista, por isso chama de maricas as pessoas preocupadas em salvar vidas. Por isso exalta medicamentos sem comprovação cientifica como se fossem garantias de cura. Por isso transforma a busca de vacinas  em picuinhas entre ele e seus competidores políticos. Não se enganem, para ele cada um de nós tem o peso medido em arrobas...

    Hoje senti o mesmo que há muitos anos, quando assisti em um cinema de Porto Alegre o filme Um Grito de Liberdade, sobre a vida do ativista negro Stephen Biko, que foi “detido” violentamente pelo apartheid. Sua morte, entretanto, serviu como denúncia contra o sistema brutalmente racista e inspira até hoje a luta do movimento negro no mundo inteiro. Naquele dia, em que conheci toda a violência do racismo através de um filme, atrasei ao máximo minha saída do cinema, com vergonha de ser branca. Mas hoje tenho também vergonha de ser brasileira, e gaúcha...

    Que nos seja permitido não perder o sentido de solidariedade e empatia pelo outro, nestes tempos sinistros. Meus mais sinceros sentimentos a família de João Alberto, em especial a sua esposa que, dizem, precisou assistir impotente a sua morte. E que a memória dele, como a de muitos outros,vítimas do racismo estrutural no Brasil,  seja fagulha decisiva em um fogo de transformação para o resgate do respeito pela vida.   

    Vinte de novembro de 2020, mais que nunca um dia de solidariedade e luto! Um dia de indignação e luta! Quando o ódio, o preconceito e a intolerância forem destituídos do poder, toda a riqueza de nossa nação poderá florescer, na diversidade de um povo com culturas e naturezas diversas, em um todo generoso, capaz de amar o diferente. Este é o Brasil que eu escolho, pelo qual luto. E você!?

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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