Dia de São José
"É um dia que carrega o peso das preces dos nossos antepassados e da esperança teimosa de um povo que nunca se rendeu ao abandono", diz Sara Goes
Hoje é 19 de março, Dia de São José, padroeiro do Ceará, dia que marca o ritmo da esperança sertaneja. Para os cearenses a chuva de hoje é um prenúncio de fartura. Se chover, o milho vinga, o feijão cresce, o pasto se renova. E mesmo sendo ateia, me emociono. Porque essa não é uma data qualquer; é um dia que carrega o peso das preces dos nossos antepassados e da esperança teimosa de um povo que nunca se rendeu ao abandono.
O Brasil, historicamente, olhou para o sertão com um olhar racista, o enxergando como uma imensa ausência. Mas sertão não é vazio, é presença. Sertão é cultura, é história, é luta, é um modo de estar no mundo. É um espaço em que as relações humanas são tecidas com a água escassa e o sol impiedoso, mas também com a esperança que nunca seca. E eu confesso que não deveria, mas doeu quando li que eu "não falo português". Não deveria, mas doeu. Como se a minha fala, carregada da história do meu lugar, fosse uma deturpação e não uma expressão legítima da minha identidade. O nordeste fala cantando e fala tão bonito. Fala na poesia dos aboios, na cadência das emboladas, na reza cadenciada das novenas.
Foi com esse sertão dentro de mim que aos vinte e poucos anos eu fui conhecer a Nova Jaguaribara e o Castanhão com meus pais e meus irmãos. Meu pai sonhou por anos em nos levar para conhecer as hidrelétricas da CHESF, que moviam seu trabalho, mas não teve essa chance porque a vida acontece sem licença. Aquela visita, para mim, foi um acerto de contas com esse sonho não realizado. Foi um momento lindo, de encontro com um pedaço da história do meu pai, que passou décadas trabalhando sob uma gestão tucana que não reconhecia sua dedicação.
Meu pai era um trabalhador que lutava contra uma condição de saúde frágil, burlando perícias para conseguir o adicional de periculosidade. Tenho lembranças dele desmaiando de dor, torto. Mas naquela época, estavam construindo uma nova etapa da vida, onde as preocupações do passado davam espaço para conquistas que pareciam finalmente se materializar. Lula se tornou presidente e eu universitária, a Chesf foi protegida das tentativas de saque neoliberal, meu irmão entrou no ITA, minha irmã na federal, e meu pai planejava as viagens que faria após a aposentadoria, vendo as viagens dos filhos recém-universitários. Ele viu cada inauguração do Luz Para Todos no estado e me contava emocionado. Com o tempo a aposentadoria, embora já desenhada, não era algo urgente – ele ainda se preocupava muito com a qualidade e o compromisso de quem entrava nos concursos, algo que ele sempre encarou como parte do sonho de um Brasil melhor. Tudo parecia pleno. Depois de tanta luta, finalmente havia respiro, esperança, planos. Depois de tanta luta, depois de tanta luta. Mas 11 dias após a aposentadoria, meu pai recebeu o diagnóstico: câncer. Vinte e oito tumores espalhados pelo corpo. Meu pai faleceu e logo depois nossa democracia. Foi como se as perdas se sucedessem em um efeito dominó; caiu Dilma, Lula foi preso.
Meus irmãos nunca entenderam a importância daquele dia no açude Castanhão, assim como muitos não vão entender esse texto. Talvez eu realmente não fale português.
Eu não fui alfabetizada em medo e pessimismo. O país se acostumou a olhar para o futuro com desconfiança, como se qualquer lampejo de esperança fosse ingênuo ou perigoso. Mas a água que transborda não pede licença, não consulta o desalento antes de seguir seu curso. Em plena pandemia, ao ver a transmissão ao vivo do Castanhão sangrando, entre uma live e outra, eu parava para ver a água transbordando. Não era só um fenômeno natural, era uma afirmação: contra todas as estiagens, contra todos os descasos, contra a "triste era Bolsonaro", a vida insiste em brotar.
E foi nesse transbordar, nesse desaguar daquilo que parecia impossível, que eu compreendi algo maior. A história do meu pai, do Castanhão, do sertão e do próprio país sempre foi uma história de resiliência (palavra véa pôdi). Entre perdas e renascimentos, entre estiagens e chuvas, sempre houve um fio de esperança costurando o tempo.
Em uma transmissão com o professor João Cezar de Castro Rocha, que recebeu em Queixeramobim a Comenda Antônio Conselheiro, chegamos a uma conclusão: a esperança habita no sertão. E eu sei que habita. Porque todo 19 de março, quando olho para o céu e procuro sinais de chuva, ela está lá. E se 2025 é o ano da colheita, como disse Lula, que seja também o ano da redenção de um Brasil que aprenda, enfim, a se olhar com dignidade e otimismo, a se reconhecer em sua grandeza e a acreditar no futuro que pode construir.
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