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    João Antonio

    João Antonio da Silva Filho é Mestre em Filosofia do Direito e atualmente preside o Tribunal de Contas do município de São Paulo

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    Diferenças e a construção de um contrato social justo

    "Em todos os processos revolucionários, as desigualdades sociais foram o fator determinante no processo de emulação social"

    (Foto: Reuters)

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    O Brasil está passando por um período de profunda polarização política: famílias divididas, amizades rompidas e ataques diretos sem mediações razoáveis foram “normalizados” como se fissessem parte do cotidiano dos brasileiros. Essa polarização política, reveladora da ausência de influência preponderante de um projeto político/econômico capaz de arregimentar uma maioria significativa (hegemonia política), acaba por contaminar toda a sociedade.

    De fato, é muito difícil separar a política – instrumento de disputa do poder - da atividade de qualquer cidadão: uma pessoa comum, um detentor de mandato, funcionário público, um policial, membro do Ministério público ou juiz, qualquer indivíduo dotado de direitos e deveres, independente de sua função social, em qualquer situação, e mais ainda num quadro de disputa latente, é chamado se posicionar.

    Erram os que desejam sufocar o debate. A vida em sociedade é assim mesmo. Aliás, este é o sentido etimológico do termo “política”, que vem do grego “politikos”, que por sua vez se originou da palavra “polites”, que quer dizer “cidadão”, termo originário de polis, que significa cidade.

    Portanto, não devemos associar o termo “cidadão” apenas ao “direito” de participar.

    A fonte etimológica nos autoriza a atribuir o título de “cidadão” aos que efetivamente participam na sua comunidade política. Isso significa que nos tempos contemporâneos – nos chamamos de Estados Nacionais -, concordando, discordando ou conciliando, ser cidadão é contribuir com o processo de decisão dos rumos do Estado. Isto é cidadania.

    Uma constatação óbvia para efeito didático deste texto: os cidadãos não são iguais. Pensam diferente e possuem interesses divergentes, muitas vezes contraditórios.

    Outra constatação: algumas diferenças são naturais, outras são produto do meio – advindas do hábito dos humanos (costume, prática, regra, rotina, mania, vício, norma, convenção).

    Conclusão: há diferenças que são inerentes ao ser humano, que não são passíveis de superação; outras, por se tratar de um construído humano, podem ser superadas.

    Então, podemos afirmar que a principal tarefa de um cidadão, no seu verdadeiro sentido etimológico, sendo ele intelectualmente honesto, é, respeitando as diferenças e compreendendo a origem e a dimensão específica de cada uma delas, com tolerância, construir acordos visando a paz social. Por decorrência, tolerância é respeitar as diferenças e, partindo delas, saber compor o universo dos interesses onde o todo social, representado pelo Estado, seja resultante de uma composição de todas as partes, e não uma imposição autoritária de um grupo que, por força de uma circunstância conjuntural, temporariamente, ocupa postos de mando no Estado.

    Como escrevi em minha obra “A Era do Direito Positivo”, citando GIlles Deleuze (1925 – 1995) “Na vida tudo é diferente e tudo é uma constante repetição. Diferente porque nada se repete com o exato conteúdo da coisa ou do fato anterior e, repetição, porque vivemos de referenciais. Os feitos positivos ou negativos são paradigmas para as criações futuras – que não deixam de ser uma repetição aperfeiçoada daquilo que no passado já foi presente. Mas uma coisa é certa: o ciclo de criação só é possível quando se tem um conceito preciso do objeto de análise, pois não notaríamos as repetições e muito menos as diferenças sem um conceito exato da coisa ou do fato em questão”.

    Quero, ao citar este trecho, realçar a complexidade que é a construção da harmonia social. Na verdade, a citação acima não está direcionada apenas para a vida social, mas se encaixa perfeitamente na profundidade que o tema “composição das diferenças” exige.

    Se desejamos fortalecer a democracia como instrumento de composição das assimetrias dos desejos, idiossincrasias e das ambições dos indivíduos, faz-se necessário o exercício da tolerância. Por sua vez, a tolerância é um componente fundamental daqueles que adotaram a democracia como um fim: o único meio capaz de, partindo do reconhecimento das desigualdades, compor um contrato social justo.

    Mas, sem compreensão das causas das diferenças (sem o conceito preciso da coisa) é impossível buscar o devido equilíbrio estável nas relações sociais. Por consequência, a estabilidade social, sem a compreensão do papel da democracia, pode se transformar em mera justificação de projetos autoritários.

    Diferenças, sejam elas naturais ou provenientes do hábito, devem estar no rol das considerações para a composição do eterno conflito entre indivíduos/individualidades versus coletivo/coletividade. Claro, com exceção das diferenças congênitas – próprias de cada indivíduo. Por exemplo, as desigualdades sociais, na sua essência, são resultantes da ambição desmedida do ser humano.

    Os defensores do individualismo competitivo poderiam responder a esta minha afirmação nos seguintes termos: “Santa ingenuidade! Sem ambição, o mundo estaria paralisado, não se desenvolveria, estaríamos fadados à estagnação”. Sem titubear eu contraditaria tais argumentos da seguinte forma: “Sim, a ambição, de forma comedida, pode ajudar a impulsionar o desenvolvimento do mundo, gerando riquezas. Mas quando essas riquezas ficam concetradas nas mãos de poucos, gerando multidões de excluídos, o desenvolvimento acaba se voltando contra a desejada e necessária harmonia social.

    Defensores do individualismo competitivo respondam sinceramente: por que poucos têm carros, aviões, casas, inclusive para o lazer, enquanto milhões não têm dinheiro para seu transporte coletivo e um teto para morar? – Cuidado! Este tipo de desigualdade pode ferir de morte sua ambição desmedida!

    Os exemplos de revoluções no mundo, quase sempre, têm como causa originária as diferenças materiais e a exclusão social. Foi assim na guerra de independência americana no século XVIII, Revolução Francesa, (1789), Revolução Russa (1917), Revolução Chinesa (1949), Revolução Cubana (1959), Revolução Sandinista na Nicarágua (1979). Repito: em todos os processos revolucionários, as desigualdades sociais foram o fator determinante no processo de emulação social. Nas várias fases históricas da humanidade as revoltas contra as desigualdades sociais têm sido uma constante, e elas não são obra do acaso ou da vontade de alguns abnegados: elas acontecem como resultante das condições objetivas – inconformismo com a exclusão social.

    Segue um alerta: as desigualdades sociais, especialmente, no Brasil, continuam latentes. Obviamente, em se tratando de diferenças culturais em relação aos costumes, quero dizer valores imateriais (opções religiosas, orientação sexual, apegos familiares, gostos artísticos), as escolhas individuais são parte do direito subjetivo de cada indivíduo; respeitá-las é condição sine qua non para o bom convívio social. Aliás, é bom que se diga que esses direitos subjetivos, não são bandeiras só dos socialistas, são conquistas do próprio liberalismo.

    No Brasil de 2020 e seguintes um espectro ronda o nosso processo histórico e não é o espectro do comunismo, como pregam alguns membros da direita retrógrada tentando despertar, de forma vil, o ódio ao seus opositores. É o fantasma da revolta contra as desigualdades sociais. França, Equador, Chile, Colômbia, entre outros, experimentaram ou estão experimentando o dissabor da contradição da eterna desavença entre concentração de renda e a exclusão social.

    Aqueles que acham que gerar riquezas sem distribuição de renda, apenas acenando para os pobres com a “cenoura” da máxima do “vencer” pelo “individualismo competitivo” – da seleção natural dos melhores – é suficiente para impedir as revoltas populares estão iludidos. Capitalismo sem Estado de Bem Estar Social é como o indivíduo querer viver bebendo veneno. A Exclusão social é produto e veneno do capitalismo – incompatível, portanto, com a perenidade do sistema.

    O método da chibata não impediu os negros, no passado, de resistirem, organizarem os Quilombos e vencerem a escravidão. Nem ontem e nem hoje o autoritarismo conseguiu conter, por muito tempo, os protestos contra a concentração de renda.

    Aqueles que, iludidos, pensam em instrumentalizar o Estado e, pela força, pretendem “impor” sua ideologia e junto com ela um modelo econômico excludente forçando um jeito padronizado de convivência social, a seu bel prazer, sem mediação com a realidade social, não vão longe: a durabilidade do seu modelo é proporcional à sua capacidade de iludir os ignorantes.

    Como a ignorância não é eterna, um novo contrato social justo é possível. Sua construção é derivada do resultado de uma composição democrática das diferenças, dispensando discriminações e preconceitos de qualquer espécie.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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