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    Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

    Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva: economista, pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY), com Mestrado na PUC-SP, e doutor em História Econômica pela USP

    2 artigos

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    Ditadura nunca mais!!

    O tabuleiro do xadrez me lembra uma guerra

    Ditadura Militar (1964-1985) (Foto: Evandro Teixeira / Agência Brasil)

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    Quando comecei a escrever esse texto, ainda não tinha ido assistir ao filme “Ainda estou aqui”, mas tinha certeza de ir.

    Talvez ainda precisasse chorar mais e me indignar sempre. Não há como virar a página como num livro ruim para acabar logo.

    Eu tinha 9 anos - a mais velha dos 6 irmãos - quando prenderam papai. Ele veio de São Paulo, onde estava fazendo uma pós e foi se apresentar no quartel da polícia. Não saiu mais e acabou indo para o prédio do hospital da própria polícia, ali atrás, junto com outros presos Josemar, Geniberto, Moacir de Góis e Vulpiano Cavalcanti. Vulpiano me ensinou e a outras crianças a jogar xadrez, para deixar os presos na intimidade, atrás das portas com as suas mulheres.

    Até hoje o tabuleiro do xadrez me lembra uma guerra, onde só quero ganhar.

    Há muitas belas histórias de generosidade dessa grande figura Dr Vulpiano Cavalcanti. Nas cadeias, por onde passou, foi torturado, teve as unhas arrancadas para denunciar os amigos. Contudo aguentou firme e em silêncio os horrores sofridos em várias passagens pelas diversas prisões. Nutri por ele um sentimento de carinho e admiração. A filha mais velha dele, Sônia, trabalhou no tribunal com a tia Lígia e sempre que eu a via dava um abraço apertado como se ela fosse - e ela era - o pedaço do pai vivo e tão querido nas minhas lembranças.

    Depois, do hospital da polícia, papai e alguns outros presos foram transferidos para o 16 RI ali vizinho a minha casa, onde recentemente me vi a berrar de raiva para alertar os fascistas de que ainda há resistências por toda a parte.

    Esse período foi de pesadelos diários. Mamãe dizia que tivesse cuidado com as perguntas das pessoas sobre papai. Todos eram suspeitos. Tinha medo de tudo! Medo de quem batia à porta, medo da noite, da hora do Brasil, (mamãe ouvia as transmissões noturnas para colher notícias dos desaparecidos políticos. Vovó me dava bolinhas de homeopatia - luminaleta - para dormir melhor. Nem tomando o potinho todo surtia efeito.

    Meu pânico maior era - de guardas e soldados. Uma noite, eles invadiram a casa e levaram papéis, jogaram livros e as lancheiras dos meninos no quintal e ameaçaram a mamãe em busca de armas e material de propaganda política. Lá em casa, nos sabíamos que tinha um revólver escondido embaixo do colchão. Ela grudou lá sentada aos prantos e esperou que eles fossem embora. Tio Túlio, nosso vizinho, veio com tia Lúcia e levaram-nos junto com o revólver para a casa deles. Anjos vestidos de tios.

    Tio Túlio virou meu herói maior. principalmente, depois que colocou uma carta minha no correio para Castelo Branco, pedindo para soltar papai porque mamãe estava muito magra e « aperreada ». Carta infantil, sem nenhum teor político. Uma correspondência do ministério da justiça, via governador do RN, foi entregue por um militar na casa de vovô, com o original da carta solicitando providências para evitar correspondência de uma criança para a presidência. Junto, um documento para ser assinado por vovô tomando ciência. Como Dr. Vulpiano, não falei nada.

    O segredo ficou entre o tio Túlio e eu. Vovô nunca soube quem havia me dado dinheiro para enviar a carta. Foi melhor assim. Ficou muito indignado com a ousadia e exigiu que não fizesse mais nada sem que ele soubesse. A minha desobediência poderia prejudicar ainda mais a situação. Tio Túlio era desembargador e estava queimado porque deu escândalo um dia no 16 RI quando descobriu que papai tinha desaparecido sem deixar rastros. Soube que ele urrava - Regime de merda, país de merda. O meu herói era gigante e corajoso. Valia pelo batalhão todo.

    Essa ida dele ao 16 RI aconteceu depois da pedra que jogaram no jardim dele. Junto, amarrado num cordão tinha um bilhete dizendo que tinham tirado papai e outros presos do batalhão. Era preciso agir rápido para impedir que fossem jogados no oceano durante a viagem. Durante dias se procurou notícias. Mamãe já quase viúva, imaginava a vida sem o marido, sendo sustentada pela solidariedade dos irmãos e cunhados. Preso, teve a bolsa cortada e ela desolada recebia um cesto de frutas e verduras que tio Chico discretamente deixava em casa, e outras doações que a família levava.

    Os dias iam se tornando bem difíceis.

    Lembro da cena de uma noite mamãe com o ouvido colado no rádio, e as lágrimas caindo no assoalho gasto me dizendo:

    - Não sei o que vamos fazer. Falta dinheiro até para comprar um ovo.

    Não preciso dizer que o ovo é até hoje o meu cardápio preferido Como filha mais velha ouvia atenta, atrás das portas, ela falando sobre habeas corpus, prisão preventiva, exílio, ditadura…. Nomes que iriam fazer parte das minhas redações e composições na escola primária sob protesto das professoras alienadas.

    Eu ia todos os dias com Mamãe e outras mulheres de presos levar almoço para eles. Ela aprendeu a dirigir numa kombi velha do tio Raimundo. Segundo tio Clóvis me disse numa festa na casa dele, e já quando meus pais haviam desaparecido, que eu havia sido trocada pela kombi velha de Raymundo Paiva. Nora - filha de subversivo e sem cotação no mercado de crianças: - Não vale nada essa magrela.

    Essa punhalada doeu muito tempo, mais pela raiva que senti dele do que pelo baixo valor.

    Descobrimos depois que papai havia sido “jogado” na ilha de Fernando de Noronha junto com Arraes, Luís Maranhão e um monte de outros presos. Ficaram imaginando um Plano de fuga que nunca foi tentado.

    O general Geisel, chefe da casa militar do Presidente Castelo Branco foi alertado que os presos da ilha estavam sofrendo tortura e passando necessidades. Como maçon, ele identificou o papai e algum tempo depois colocou-o no avião que tiraria alguns presos de lá. A estratégia era ficar alguns dias na ilha de Itamaracá aguardando um país que aceitasse exilados.

    Se não desse certo havia um plano B. Uma fuga e a clandestinidade. Um primo militar de Recife conseguiu colocá-lo no carro nessa mudança de cadeia. Avisada, mamãe foi ao encontro dele, apostando na sorte, para tentar fugir juntos. Saiu de madrugada da casa de tia Maria e desapareceu na esquina da Rodrigues Alves com tio Beto Farache ao volante, numa Kombi (dessa feita uma em melhor estado).

    Naquela noite de muita tristeza e choros, as 2 avós, tia Maria e outras tias choravam sem parar, não de saudades, mas, creio eu, pelo receio de assumir os filhos dos fugitivos.

    Foram distribuídos na casa dos que aceitaram receber « as crianças dos subversivos » Na saída, mamãe me pediu para cuidar dos irmãos até que ela chegasse no exílio e organizasse a vida.

    Com pai e mãe desaparecidos, sem notícias, viramos órgãos. A sensação, aos olhos dos outros, era de asco.

    - Cadê seus pais?

    Depois soube que eles estavam escondidos por cidades ou em casas de amigos e familiares. No Rio ficaram na casa de tia Consuelo, tia Nany e tia Iracema se revezavam levando comida e remédios. O pavor de serem encontrados era diário. A ditadura endurecia e a polícia monitorava qualquer movimentação suspeita. Papai, para sobreviver na clandestinidade tinha virado Bigurrilho, apelido pelo qual era chamado pelos filhos e amigos. Decididos a voltar para o Natal, ainda estavam em São Paulo, Minas.

    Mudando de casa permanentemente, viveram assim até 1966, quando um habeas corpus permitiu que voltasse para São Paulo para acabar o curso.

    Durante muito tempo, ninguém falava nesse triste período. Sempre que perguntados mudavam de assunto. Na cerimônia do relatório final da Comissão da Verdade, lá estava Aldo Tinôco, de gravata vermelha e profundamente emocionado. Falou nos amigos desaparecidos e nos que não puderam vivenciar aquele importante momento de libertação. Falou em Luís Maranhão, seu grande amigo, que aparecia na casa de São Paulo para comer e saber de notícias. Um dia se despediu e disse que não viria mais pois estava sendo seguido e não queria prejudicar a vida de papai.

    Soubemos mais tarde que havia sido jogado ao mar. A esposa procurou pelo corpo até morrer. A comissão da verdade não chegou para ela.

    Saímos da reitoria da UFRN mais leves.

    Dali em diante, me senti também livre para falar do subterrâneo que guardava numa gaveta das tristes lembranças.

    P.S. Fui finalmente assistir ao filme « Ainda estou aqui » Depois de derramar um balde de lágrimas, levantei-me para aplaudir e gritei

    ⁃ Ditadura nunca mais!!

    Por Eleonora Tinôco

    25/11/2024

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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