Do discurso à ação. O ódio mata
O brutal assassinato de Marcelo evidencia a urgência em criar estratégias e ações para interditar o discurso de ódio que circula livremente em nosso país
Por Rosangela Fernandes, Coordenadora Criar Brasil/Pesquisadora PEIC/UFRJ
João Paulo Malerba, Pesquisador PEIC/UFRJ e LECC/UFRJ
Isabelle Gomes, Jornalista Criar Brasil
Nós reconhecemos o discurso do ódio como um ataque contra a tolerância, a inclusão, a diversidade e a essência de nossas normas e princípios de direitos humanos. Mais amplamente, ele compromete a coesão social, desgasta valores compartilhados e pode criar a base para a violência, retardando a causa da paz, da estabilidade, do desenvolvimento sustentável e da dignidade humana (GUTERRES, 2015).
O alerta do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, revelava, já em 2015, os efeitos perversos da omissão cúmplice diante do discurso de ódio. O problema é mundial, e se aprofunda com a ascensão e orquestração da extrema direita internacional. O Brasil mergulhou neste pesadelo agravado pela transformação da intolerância em discurso oficial, presente de forma marcante em pronunciamentos públicos do presidente da República, de seus ministros, secretários e filhos que são parlamentares. Já nos seus mandatos como Deputado Federal e, posteriormente, a partir de 2019, ocupando o Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro vem ultrapassando limites, fazendo da incitação à violência sua marca registrada. Entre as suas frases de ira e de efeito estão o ataque contra os opositores à ditadura: “O erro da ditadura foi torturar e não matar”; contra jornalistas: "Minha vontade é encher tua boca com uma porrada, tá?”; contra parlamentares e mulheres: “Jamais ia estuprar você, porque você não merece”; contra a esquerda, especialmente os militantes do Partido dos Trabalhadores: “Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre”. São inúmeros os exemplos, sempre acompanhados de espanto e indignação pelos representantes de instituições da estrutura democrática. Espanto, notas de repúdio, porém nenhuma ação concreta que interrompa essa escalada. Ao contrário, as bravatas e as reações culminam por agendar o debate não só nas redes sociais, mas na mídia hegemônica. As frases estampadas em jornais de grande circulação ou repercutidas em telejornais e outros programas, terminam por dar credibilidade ao conteúdo e “normalizar” o que deveria ser repudiado. A intolerância ganha espaço, repercussão e se dissemina amplamente, mobilizando corações e mentes, alimentando o bolsonarismo e interditando outras pautas. O que vemos é um efeito em cascata, em que o discurso de ódio incontido no topo do poder legitima e estimula o ímpeto totalitário e violento de franjas neoconservadoras da sociedade. Eles estão no controle.
Como temos visto recentemente, não se trata apenas de palavras ao vento. Há consequências concretas, como se representasse uma senha que permite a passagem da palavra ao ato. O crescimento dos crimes de ódio tem sido registrado por inúmeras entidades. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) indicou o aumento da violência no campo nos últimos anos. Só no ano passado foram 35 assassinatos, quase o dobro do registrado em 2020 (18). A média de ocorrência de conflitos no campo já é a maior da história: foram 1768 ocorrências, cerca 34 por semana.
Já o levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) revela que no governo Bolsonaro foram registrados os maiores índices de agressões a jornalistas no país desde 1990: 428 em 2020 e 430 casos em 2021.
O assassinato brutal do petista Marcelo de Arruda, em Foz do Iguaçu/PR, no último sábado (9), é mais um crime político fruto da incitação ao ódio. Marcelo, morto em sua festa de 50 anos por um bolsonarista, tem seu nome ao lado de outras vítimas dessa onda de horror da barbárie brasileira. Bruno Pereira, indigenista, e o jornalista britânico Dom Phillips, assassinados no Vale do Javari, no Amazonas; Genivaldo Santos, asfixiado pela Polícia Rodoviária Federal (PRF); e o mestre capoeirista Moa do Katendê são alguns deles, mas não os únicos. Crimes de homofobia e feminicídio, por exemplo, crescem embalados pelos discursos oficiais. Da mesma forma, se multiplicam ataques isolados. Alguns exemplos recentes são o drone que despejou fezes sobre apoiadores de Lula e Alexandre Kalil em Uberlândia; ataque com fezes e ovos ao carro do juiz que determinou a prisão do ex-ministro da Educação do governo Bolsonaro Milton Ribeiro; bomba lançada contra o ato público de Lula na Cinelândia e o tiro contra a redação da Folha de S. Paulo.
A Conselheira Especial das Nações Unidas para a Prevenção do Genocídio, Alice Wairimu Nderitu, chamou atenção para a relação da violência com a incitação discursiva: “não há um único genocídio que não tenha sido precedido por discurso de ódio”.
No Brasil, a combinação da intolerância com medidas concretas para ampliar o acesso ao armamento configura um quadro alarmante. O registro de armas de fogo pela Polícia Federal, nos três primeiros anos do governo Bolsonaro (2019 a 2021), mais do que triplicou em relação aos três anos anteriores (2016 a 2018). Já o número de armas apreendidas caiu de 8.216 em 2018 para menos de 3 mil em 2021. As iniciativas do governo federal para ampliar o número de armas em circulação ganha reforço de governadores bolsonaristas. No Rio de Janeiro, o governador Cláudio Castro, do mesmo partido do presidente (PL), anunciou a distribuição de 10 mil armas, munição e carregadores para Policiais Militares da reserva.
A radicalidade do discurso contribui para a viralização dos posts na internet. Uma pesquisa de 2021 intitulada ‘Examining algorithmic amplification of political content on Twitter’ (Examinando amplificação algorítima de conteúdo político no Twitter, em tradução livre) concluiu que os discursos da direita têm maior alcance que os da esquerda. E basta um olhar atento para identificar que a mídia tradicional é também envolvida na estratégia da extrema direita, contribuindo, voluntariamente ou não, para ecoar os discursos bárbaros. Ao envolver absurdos em rótulos de “opinião polêmica”, ao nivelar os lados como igualmente extremistas, ao evitar classificar de incitação criminosa os discursos proferidos por autoridades, minimiza suas possíveis consequências e, assim, atua com cumplicidade diante da violência e do abalo à democracia.
O brutal assassinato de Marcelo acende o alerta vermelho para a escalada da violência política no Brasil e evidencia a urgência em criar estratégias e ações efetivas para interditar o discurso de ódio que circula livremente em nosso país.
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