Do partido único ao stalinismo
Comentário sobre o livro de Angela Mendes de Almeida
(Publicado no site A Terra é Redonda)
Poucos são os livros que reúnem uma gama tão ampla de informações com um estilo elegante. Angela Mendes de Almeida iniciou suas pesquisas no exílio na França e defendeu sua tese em ciência política em 1981, a qual compõe a primeira parte de sua obra Do partido único ao stalinismo. Sua investigação prosseguiu nos decênios seguintes e foi beneficiada pelo impacto do fim do socialismo real na documentação.
Não apenas houve uma abertura parcial de antigos arquivos soviéticos, mas vários militantes e espiões dos serviços de informação comunistas publicaram memórias, forneceram entrevistas ou revelações por meio de terceiros. Uma nova historiografia, biografias e até romances serviram de fonte para Angela Mendes de Almeida. Ela pode situar o stalinismo como um problema histórico e não como derivação de algum conceito apriorístico ou um raio em céu azul, inesperado e sem passado.
Quando os processos de Moscou exibiram ao mundo grandes nomes da Revolução de Outubro de 1917 como criminosos, agentes da Gestapo e traidores da União Soviética, a intelectualidade progressista (os companheiros de viagem) e os próprios comunistas ficaram estarrecidos. Bolcheviques como Kamenev e Zinoviev, Bukharin e Tukatchevsky confessaram crimes e foram fuzilados. O terror stalinista ainda atingiu internacionalistas como Karl Radek e Willi Münzenberg e tantos outros, homens e mulheres devotados à causa socialista. O próprio Trotsky foi alcançado pelos agentes soviéticos no México e assassinado.
Essa é uma história por demais conhecida. No entanto, quando aqueles líderes estavam no poder, no auge de sua popularidade, eles também exerceram uma ditadura com elementos que anteciparam o stalinismo. Afinal, antes que eles mesmos fossem vitimados, anarquistas como Emma Goldman e socialistas internacionalistas como Angelica Balabanova, já haviam se desiludido há muito com a Revolução e abandonado a Rússia Soviética.
Em 1918 Zinoviev declarou que era preciso eliminar 10 milhões de “contrarrevolucionários” (ALEKSIÉVITCH, 2017, p. 22.); Tukhatchevsky esmagou impiedosamente a rebelião de Kronstadt e Trotsky ameaçou usar armas químicas se a resistência continuasse (AVRICH, 2004, p. 209); Bukharin advogou o terrorismo de Estado; e na guerra civil houve o uso de familiares de inimigos como reféns.
Decerto, ninguém desconhece as circunstâncias que explicam essas atitudes e nem se trata de julgá-las a posteriori. Elas apenas nos indagam sobre o quanto há de ruptura e continuidade entre aqueles dirigentes que tomaram o poder em outubro de 1917 e o stalinismo que os esmagou. E este é o problema que a historiadora Angela Mendes de Almeida enfrentou.
Claro que nenhum daqueles líderes supracitados imaginava eliminar fisicamente o outro. O terror deveria ser dirigido para fora do partido. Também nenhum deles propôs seriamente um massacre na escala de Nikolai Iejov ou Lavrenty Beria, chefes posteriores da polícia política soviética. Pode-se até argumentar que a declaração de Zinoviev foi uma das suas conhecidas bravatas e que as demais ameaças eram um recurso retórico de intelectuais. Ainda assim, todos eles apoiaram um sistema repressivo que já existia antes do stalinismo e que levou ao fechamento da Assembleia Constituinte, à repressão de conselhistas, anarquistas, socialistas revolucionários e mencheviques.
Não se trata de condenar a Revolução, nem muito menos de não entender as justificativas históricas dos bolcheviques, como veremos. O terror dos anos 1930 não foi um produto direto da Revolução. Nem foi programado. Respondeu às condições objetivas do país que os bolcheviques herdaram. Mas não era inevitável. Houve disputas, houve escolhas, muitas delas feitas pelos vitoriosos, mas também pelos futuros derrotados que não previram e nem desejaram a ditadura que se abateu sobre o movimento comunista mundial.
Muitos historiadores reconheceram elementos de ruptura entre o período de Lênin e o de Stalin ao lado das permanências. Michel Löwy (no excelente prefácio do livro de Angela Mendes de Almeida) critica a posição da autora, a qual sugeriria uma simples continuidade entre o partido único bolchevique e o stalinismo. No entanto, a tese é mais complexa. A continuidade é estudada num processo contraditório de tradições revolucionárias conflitivas, como as de Rosa Luxemburgo e Lênin. Não há linearidade e sim um conjunto de condições objetivas como a Primeira Guerra Mundial e o que a autora chamou de “as grandes escolhas do comunismo”.
O modelo de partido único, logo imposto ao movimento comunista internacional, sintetiza uma série de práticas que nos anos 1930 seriam exacerbadas. A autora demonstra como a criação da Terceira Internacional refletiu o otimismo revolucionário do final da Primeira Guerra. A Europa parecia mergulhada numa convulsão social com motins militares, greves, ocupações de fábrica e insurreições populares. Finlândia, Alemanha, Hungria, Itália e Polônia pareciam caminhar rumo ao socialismo. No mundo inteiro, do Brasil à Índia, da Argentina à China, registraram-se protestos numa onda que se estendeu por alguns anos.
O otimismo leninista afastou de início os partidos socialistas que apoiavam a Rússia Soviética, mas não aceitavam a rigidez das 21 condições para o ingresso na organização. Para os bolcheviques, o partido revolucionário deveria ser fruto de uma cisão e não de uma demorada disputa pelas bases socialistas que levasse ao isolamento dos líderes reformistas, como constatou a autora.
O livro percorre com detalhes os debates da Internacional Comunista, a tática de frente única, a trajetória peculiar dos comunistas italianos, a bolchevização imposta aos partidos, as consequências do chamado “terceiro período”, entre as quais a divisão da esquerda alemã e a ascensão do nazismo, até o giro estratégico que levou à Frente Popular na França (1934-1939) e na Espanha (1936-1939).
A autora tem um conhecimento de fontes e bibliografia notável, além de dar um fino trato metodológico à documentação. Toda a história que ela percorre até os anos 1930 é ricamente ilustrada por uma pesquisa exaustiva. Entretanto, a maior contribuição de sua obra e a mais sujeita a debate, está nos dois últimos capítulos. Neles, ela analisa o significado histórico do stalinismo, a emergência de um aparato policial poderoso na União Soviética, as suspeitas envolvendo o assassinato de Kirov e os processos de Moscou que, em que pese terem sido um instrumento político de afirmação de poder, espantaram o mundo pelo fato dos líderes da Revolução serem apresentados como espiões de serviços de informação estrangeiros.
Era algo tão inverossímil que, se levado a sério, tornaria a própria tomada do poder de outubro de 1917 uma mera conspiração. A própria história do partido teve que ser reescrita sob supervisão pessoal de Joseph Stalin, ocultando ou caluniando seus adversários. Ainda assim, muita gente se convenceu ou convenientemente se calou. Pesavam na balança a defesa do primeiro Estado socialista, cercado pelo imperialismo e a sobrevivência política e, em muitos casos, mesmo física. Também a máquina de agitação e propaganda cumpriu o seu papel a ponto do embaixador estadunidense na União Soviética se convencer plenamente da culpa de réus que tinham liderado a Revolução (Davies, 1945).
O último capítulo é o mais impressionante da obra, pois recolhe inúmeros testemunhos de vítimas do stalinismo. Há uma outra tese no seu interior: a de um posicionamento declarado pelas vítimas que guia a História e nega qualquer pretensão à neutralidade. Para a autora, não há equivalência entre a verdade das vítimas e as alegações do opressor, como é regra nos direitos humanos, segundo ela. A narrativa assemelha-se a um thriller e a leitura é plena de comoção.
Apresentam-se e se despedem inúmeras personagens revolucionárias que se dedicaram a uma causa internacionalista e foram assassinadas sob as mais diversas formas: trotskistas, socialistas, anarquistas, comunistas dissidentes, vítimas casuais que sequer sabiam porque eram condenadas e até mesmo fiéis e convictos membros do Partido Comunista executados sumariamente sem nenhuma razão. O palco estabelecido pela autora foi além da União Soviética e abrangeu a guerra civil na Espanha, a resistência francesa, as comunidades de exilados nos Estados Unidos e outros países. Assistimos aos acertos de contas no interior dos partidos comunistas na França, Itália e até no Brasil e as operações de ocultamento, desinformação e calúnias contra velhos combatentes de uma hora para outra caídos em desgraça.
Essas trajetórias permitiram à autora discutir algo que era pouco conhecido na época, mas que iria transparecer inevitavelmente com o tempo: uma extraordinária experiência histórica que se revelou em atos de solidariedade e covardia, lutas heroicas e crimes. A União Soviética salvou a humanidade do nazismo e construiu um modelo alternativo de organização social e econômica. Joseph Stalin, qualquer que seja a apreciação sobre a qualidade do seu comando na Segunda Guerra Mundial (e a da autora é inteiramente negativa), foi erigido pelo partido como símbolo do esforço do país na coletivização da agricultura, na industrialização acelerada e na resistência ao nazismo. Mas em todos esses feitos encontramos sua negação: os campos de trabalho forçado e a eliminação de milhões de “inimigos do povo”.
O livro de Angela Mendes de Almeida é dotado de coragem intelectual, tanto para confrontar o stalinismo, quanto para questionar os princípios organizativos que permitiram que uma ditadura de um único partido se impusesse.
(Publicado originalmente na Revista Estudos Avançados.)
Referência
Angela Mendes de Almeida. Do partido único ao stalinismo. São Paulo: Alameda, 2021. 516 págs.
Bibliografia
ALEKSIÉVITCH, Svetlana. O fim do homem soviético. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
AVRICH, P. Kronstadt. Buenos Aires: Anarres, 2006.
DAVIES, J. Missão Em Moscou. São Paulo: Calvino, 1945.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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