Do possível à utopia, a partir da reeleição de Arthur Lira
Uma das principais bandeiras trazidas por Lula durante a campanha eleitoral de 2018 foi sua ácida crítica ao chamado “orçamento secreto”, nome midiático concedido às Emendas de Relator (RP9), ao que definia como escárnio. Porém, após ser eleito e estabelecer os laços políticos ainda durante a transição, na última semana, o novo presidente fechou questão em apoiar Arthur Lira, principal articulador desta peça orçamentária, para a reeleição na Câmara dos Deputados. Diante disso, Lula cometeu um estelionato eleitoral, como alguns vêm apontando? A resposta correta é não.
Embora, sobretudo do ponto de vista do imaginário popular, quem dita o ritmo do país seja o Presidente da República, a política brasileira é decisivamente orientada pelo Congresso Nacional, de tal sorte que o poder executivo apenas consegue estabelecer seus projetos caso possua uma base sólida e de maioria no poder legislativo. Ou seja, um governante eleito deve ter em mente que uma das suas prioridades, ao longo de todo seu mandato, é o de conseguir manter este bom trânsito com deputados e senadores. E, dentro disso, a eleição para a presidência das casas legislativas representa um dos principais passos.
Arthur Lira, atual presidente e candidato à reeleição, é visto pelos seus pares como um político habilidoso, sobretudo, por saber agradar as diferentes correntes da Câmara. Esta sua característica, turbinada pelos valores orçamentários, concedeu a ele uma grande vantagem para ser reeleito. Isto é, ainda que sem o PT e outros partidos da oposição, este não possuía a maioria concreta, a construção de uma candidatura em paralelo enfrentaria o duplo desafio da viabilidade e do desgaste político, em um momento extremamente complexo.
O apoio de Lula à Arthur Lira é um acerto primoroso. A arte de governar depende, centralmente, da habilidade de promover concessões e, neste momento, permitir a continuidade de Lira, a despeito de críticas, é uma contingência necessária. Isto, pois, vive-se em um período único de reconstrução nacional, cujo apoio de uma maioria parlamentar se faz necessário, primeiro, para destravar a condução da PEC da Transição que, dentre outros aspectos, garantirá que o povo brasileiro deixe de passar fome, mas, não só, será fundamental para os passos seguintes, como, por exemplo, da viabilização de uma reforma tributária. Neste acordo, envolvem-se não apenas os partidos da base aliada PT, PSB, PV, PDT e PCdoB, como as bandeiras fundamentais do centrão como União Brasil, PP, Republicanos, Podemos, PSC, Patriota, Solidariedade, Pros e PTB. Em outras palavras, Arthur Lira acumula apoio, ao menos, de 400 dos 513 deputados eleitos.
Por óbvio que este é um primeiro passo de construção de base parlamentar. Inequivocamente, Lula terá que estabelecer laços mais sólidos, ao longo de todo o seu governo, processo este que envolve a concessão de cargos em empresas estatais, ministérios e repasses de verbas orçamentárias. Dentro deste novelo, chama atenção, porém, a questão do Orçamento Secreto. Este é um dos métodos de fidelização de base parlamentar mais sofisticado construído em nosso país e que, ao mesmo tempo em que é a grande arma de Arthur Lira, não era vista, ao menos durante o período eleitoral, com bons olhos pela oposição, seja por questões morais e, também, políticas.
Dentro disso, Lula tem a chance de ter a fortuna deste arcabouço orçamentário ser considerado inconstitucional pelo STF, com julgamento agendado para ser iniciado na próxima quinta-feira. A bem da verdade, não se sabe qual a real posição do presidente eleito para este processo. Porém, a superação deste atual sistema traria benefícios políticos à Lula, no médio prazo, sobretudo por liberar mais recursos à execução orgânica de projetos dos ministérios, além de promover uma diminuição do poder político do Presidente da Câmara dos Deputados, sem que esta medida seja executada, de forma direta pelo poder executivo, havendo, portanto, um menor desgaste político. Nestes termos, é plenamente possível construir uma oposição ao orçamento secreto sem promover uma política sectária em face do Congresso. Da mesma forma, é até possível obter governabilidade com o orçamento secreto, fidelizando deputados e buscando construir obras que, ao mesmo tempo, estejam de acordo com o plano de governo e com o curral eleitoral do deputado atendido.
Feitas essas considerações, até então, elogiosas aos movimentos de Lula, cabe-se, agora, uma reflexão crítica que julgo urgente. Um governo, como já esbocei neste escrito, nunca deve trabalhar no horizonte da utopia, mas sim, de acordo com os pressupostos do possível. Arthur Lira está longe de ser o presidente ideal. Porém, este possui uma base fidelizada, com uma reeleição certa. Nestes termos, vale mais declarar apoio, negociar comissões e posições de relevância e, com isso, garantir governabilidade, ao menos, no curto prazo. Porém, a função de um partido (ou de uma federação partidária) é a de trabalhar no âmbito da utopia. Ou, em outras palavras, a função prioritária de um partido político de situação é a de conferir o horizonte utópico (estratégico), em face das concessões ao possível (tática) em uma política de situação.
Nestes termos, cabe uma reflexão de fundo acerca do PSOL. O partido, que surge de um racha interno do PT, fechou questão em apoiar outro candidato à presidência da Câmara, em função de tudo aquilo que Arthur Lira representa. A despeito do que esta expressão representa, julgo que esta posição do Partido é adequada, do ponto de vista de um projeto de país. O PSOL, apesar de ser um Partido em ascensão, com quadros relevantes, sobretudo, no sudeste, ainda está longe de disputar a hegemonia no campo progressista. Todavia, cumpre um papel histórico fundamental de buscar tensionar o governo Lula à esquerda.
Tal tarefa é executada de diferentes maneiras. Primeiro, em um cenário de jogo ganho, no âmbito da Câmara dos Deputados, é fundamental haver vozes críticas discordantes, desde que estas críticas funcionem para tensionar de maneira construtiva. Isto é, em nada tem a ver com o erro histórico promovido por Sâmia e seus pares na mais recente polêmica no partido. Seu grupo, em uma provável disputa de poder interno com as demais correntes, tensiona internamente para que o PSOL não componha o governo Lula. Isso, longe de cumprir o papel histórico do PSOL (ao menos, hoje em dia), é uma postura sectária e esquerdista, com traços de irresponsabilidade política. Na verdade, os quadros do partido devem, sim, disputar cargos e a própria linha do governo, sob pena do partido afundar em horizontes infantis, perdendo base e, inclusive, relevância.
Voltando, o PT não pode abrir mão de ser um partido. O jogo do possível não pode ser um fim em si mesmo. A estratégia e a tática devem estar jogando juntas, mas demarcadas. O espírito do 5º encontro ou, até mesmo, da resolução de 2017 deve estar cada vez mais presentes. Um dos grandes erros - ou consequências - dos governos petistas, é que o Partido se tornou mero apêndice de ratificação das políticas governamentais, quando, na verdade, a função de um partido é a de interpretar ou a de posicionar a jogada tática, dentro da utopia que defende. O PT precisa definir qual a sua utopia. Afinal, o partido ainda possui um horizonte socialista e de massas? Ou, como alguns pontuam, se tornou um partido social-democrata em um país dependente e periférico?
A despeito das respostas, a posição do governo em apoiar Arthur Lira - e quase tudo que o envolve - nos confere a oportunidade de refletir, justamente, sobre a questão decisiva da esquerda brasileira: a importância de termos um partido forte, com base e com linha sólidas. O juízo do possível é tarefa de governo e o juízo do utópico é tarefa de partido, marchando separados e golpeando juntos. Da mesma forma que aceitar o possível é algo diminuto, pragmático e vazio, ignorar a política e a arte de governar é uma doença infantil da qual o povo brasileiro deve ser vacinado.
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