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    Luis Cosme Pinto

    Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 63 anos de idade e 37 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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    Doce Vida

    Naquela casa uma colher a mais de açúcar era bem-vinda até em garapa, rapadura e mel

    Doces (Foto: Luis Cosme Pinto)

    Era menino quando ouvi a palavra Bomboniére, assim mesmo, com acento francês. Foi no cinema Roxy, em Copacabana. A Bomboniére ficava no saguão de tapete vermelho, onde o público aguardava a hora de entrar na sala de exibição.

    Atrás da vitrine espelhada, a vendedora oferecia dropes Dulcora, Caramelos de Leite, Diamante Negro, bombons Serenata de Amor. Minha avó comprava de baciada e assim Noviça Rebelde, Volta ao Mundo em 80 Dias ou Tom e Jerry se tornavam ainda mais primorosos.

    Pulo dos anos 1970 para os dias de hoje. Um jornal, certamente com pouca notícia, encomendou pesquisa para saber qual cinema tem a melhor bomboniere da cidade.  

    O escolhido fica na rua Augusta. Curioso que sou, descobri dois problemas. O primeiro é que a melhor Bomboniere, apesar do vasto cardápio, não tem bombom.

    O segundo é grave: o cinema está ameaçado de demolição porque uma construtora quer levantar mais uma torre horrenda e altíssima. Uma liminar garante a integridade do cinema. Mas a decisão é provisória.

    Taí um bom tema de pesquisa: será que precisamos de mais prédios e menos cultura?

    Voltemos à “melhor Bomboniere de cinema de São Paulo”. Estive lá há poucos dias. Faltavam 40 minutos para a sessão começar. A 12 reais a fatia, bolos suculentos convidavam à gulodice: o Bem Casado, o Floresta Negra, o de Brigadeiro; ainda tortas de limão, maçã, Baba de Moça.

    De todos, restavam poucas fatias. A de limão, com um sinuoso topete branco de “marshmallow”, tinha só o último pedaço. De canto de olho e no canto da vitrine enxerguei outra opção. Uma torta alemã, discreta no seu bege de castanhas e frutas cristalizadas, sem cremes ou coberturas. Das 16 fatias só uma tinha sido vendida.

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    Capa do livro Birinaites, Catiripapos e Borogodó, de Luís Cosme Pinto(Photo: Reprodução)

    “Sai pouco porque não é muito doce. A maioria quer de chocolate, quanto mais calda e creme, melhor.” Testemunhou a vendedora.

    Nos tempos do cinema com a vovó, a vida era mais doce. Lá em casa, o pote de 5 quilos de açúcar, não dava conta.

    Açúcar no café, no chá, no mate, no leite puro, quente ou frio. Açúcar no suco, mesmo os de fruta doce, como laranja, melancia, manga.

    Minha mãe e minha avó só estalavam a língua no céu da boca depois de despejar três colheres graúdas e misturar bem.

    Nescau, Toddy, Ovomaltine, que tinham mais glicose que cacau, também recebiam doce reforço.

    Minha avó, sempre magrinha, pedia no restaurante pudim de leite condensado com creme chantilly extra. Então, salpicava os grãos brancos sobre o creme. Formava-se uma camada granulada, néctar que ela sorvia extasiada.  

    O bolo da tarde era batido no braço e a massa vinha quase melada. O açúcar abundante se misturava à gema, que grudava na manteiga, que se agarrava na baunilha. A “família de formigas” esperava ansiosa pelo cheiroso alerta do forno.

    Boa nota na escola dava direito a raspar a forma e a lamber a colher de pau.

    Minha mãe - médica por intuição e alquimista por vocação – levou seus doces conhecimentos ao limite. Quando eu e meus irmãos voltávamos machucados das brincadeiras de rua ela já vinha com um copo d'água, turva de tanto açúcar. O mesmo coquetel acalmava em véspera de prova, controlava a insônia, atenuava a faringite.

    Em caso de dor no estômago a ordem sempre foi deitar de bruços, mas se não passasse, adivinhe o que ela nos oferecia?

    Da manhã até a noite, doce vida. Açúcar na banana ou no abacate amassado do café da manhã, nas fatias de abacaxi depois do almoço, no mingau do fim do dia. Nunca consultamos nutricionista e ninguém era diabético.

    Mesmo no consultório da dentista, éramos aprovados. Pouquíssimas cáries diante do bombardeio diário em nossos dentes.

    Lembro disso tudo na melhor “Bomboniére de cinema de São Paulo”. Volto lá para ver outro filme e reencontro a torta alemã. Ela permanece apenas com uma fatia servida, será a mesma de ontem?

    “Isso mesmo, ninguém quis.” Confirma a garçonete.

    Minha companheira, parceira em todos os momentos, inclusive os amargos, aceita dividir a sobremesa enquanto o filme não começa. Pedimos expresso sem açúcar e saboreamos a torta. Leve, macia, delicadamente doce. Na medida, concordamos.

    A poucos passos das poltronas agradecemos em silêncio à lentidão e as idas e voltas da justiça. Fossem ligeiros os tribunais e seus manda-chuvas, não haveria mais bomboniére, torta alemã, cinema; tampouco garçonete, doces memórias, loucas manias. Nem esta crônica resistiria.

    *Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapops e Borogodó, livro semifinalista do prêmio Jabuti 2024.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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