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    Francisco Dominguez

    Professor de ciência política na University of Middlesex

    19 artigos

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    Duzentos anos da Doutrina Monroe

    "O termo 'Doutrina Monroe' provavelmente evoca um documento de política externa altamente elaborado, com status constitucional, mas é muito mais do que isso"

    (Foto: Reprodução)

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    Em dezembro de 2023, a infame Doutrina Monroe completará 200 anos. 

    Para a maioria das pessoas o termo “Doutrina Monroe” provavelmente evoca um documento de política externa altamente elaborado, longo e complexo com status constitucional, mas é muito mais do que isso.

    Em sua sétima mensagem anual ao Congresso, o presidente dos EUA, James Monroe, usou seis minutos de seu discurso de uma hora para defender seu plano futuro para o continente, então em meio a uma guerra de libertação do domínio colonial espanhol. Essa visão de seis minutos ficou conhecida como a Doutrina Monroe.

    Em 1823, a maior parte da América Latina havia declarado independência com sucesso e os exércitos libertadores, comandados por Simon Bolívar e outros combatentes pela liberdade, estavam nos estágios finais da derrota de uma contraofensiva militar espanhola. Com a derrota de Napoleão em Waterloo, a venda da Louisiana para os EUA em 1803 e a perda do Haiti após a rebelião de escravos em 1804,  o império americano da França entrou em colapso.

    Esses importantes acontecimentos ofereceram uma rica colheita no Novo Mundo para a “Albion pérfida” (um termo que se referia à má fé e à duplicidade da Grã-Bretanha nas relações internacionais).

    Os promotores da Doutrina Monroe acreditavam que somente controlando todo o hemisfério ocidental e as novas repúblicas, os EUA se consolidariam, expandiriam e eliminariam a ameaça dos impérios europeus. A principal ameaça aos EUA vinha de um império britânico substancialmente fortalecido, que tinha o Canadá ao norte, as ilhas estratégicas das Índias Ocidentais Britânicas ao sul e uma forte relação com as tribos nativas americanas.

    Além disso, as oligarquias crioulas cubanas e porto-riquenhas continuavam sendo colônias espanholas, permitindo que a Espanha mantivesse uma forte presença militar no Caribe.

    Na Europa, a Santa Aliança, uma coalizão de monarquias europeias cujo objetivo reacionário era erradicar todos os traços de republicanismo e liberalismo no Velho Mundo e na América Latina, tinha planos de devolver as colônias americanas à Espanha. Consequentemente, para sobreviver e se desenvolver, os EUA precisavam exercer uma crescente influência sobre o Caribe, a América Central e em todo o hemisfério, ajudando simultaneamente a consolidar as novas repúblicas e a manter os europeus fora do continente.

    Na Grã-Bretanha, o Ministro das Relações Exteriores, George Canning, acreditava que os interesses britânicos poderiam ser mais bem promovido se não houvesse a restauração colonial espanhola e se outras potências europeias fossem impedidasde realizar  incursões predatórias nas antigas colônias, mas também se os EUA não ganhassem influência no hemisfério às custas das relações comerciais da Grã-Bretanha com as novas repúblicas. Na proposta de Canning também teria dado à Grã-Bretanha poder de veto sobre o desenvolvimentos no hemisfério, inclusive de qualquer expansão dos EUA para o sul.

    Como era de se esperar, Monroe ignorou a solicitação da Grã-Bretanha, e sua “doutrina” enviou um forte aviso aos ministros das Relações Exteriores da Europa de que nenhuma parte da América Latina poderia ser considerada para futura colonização por qualquer potência europeia; qualquer tentativa de colonização seria considerado um ato hostil contra os EUA.

    Para Monroe, Jefferson, Adams e outros presidentes, os Estados Unidos eram um exemplo para o mundo e a Doutrina era um veículo para promover os princípios dos EUA. Dessa forma, ela tornou-se o precursor do Destino Manifesto, um termo cunhado pelo jornalista John O'Sullivan em seu ensaio de 1845 em apoio à anexação do Texas. Ele argumentou que é “o direito de nosso destino manifesto de espalhar e possuir todo o continente que a Providência nos deu para o desenvolvimento do grande experimento de liberdade e autogoverno federado que nos foi confiado”. Os líderes norte-americanos acreditavam que, dadas as virtudes de seu povo e de suas instituições, Deus havia atribuído aos EUA o dever de moldar o restante do continente e do mundo, expandindo seu domínio e disseminando a democracia e o capitalismo. Profundamente racista, ele postulava qeu cabia aos EUA “civilizar” os “índios vermelhos” nas Américas do Norte e do Sul, incluindo a expulsão destes de suas terras - tudo baseado na superioridade racial anglo-americana.

    A expansão territorial dos EUA, às custas das terras indígenas e do México, foi impressionante. Das 13 colônias originais em 1783 (1.100.000 km2), após a adição da Louisiana (2.140.000 km2, 1803), da  Flórida (170.310 km2, 1819), do Texas (695.596 km2, 1838) e de 55% do território mexicano (Califórnia, Nevada, Utah, Arizona, Colorado, Novo México, partes de Oklahoma,  Kansas e Wyoming, 1.370.000 km2, 1848), o tamanho geográfico dos EUA quadruplicou, chegando a 5.475.906 km2. De forma ameaçadora para o futuro da América Latina, os EUA usaram meios militares para anexar o Texas (Guerra Mexicano-Texana, 1834-36) e metade do México (Guerra Mexicano-Americana, 1845-48).

    1823 foi o ano em que o anexacionista e futuro presidente John Quincy Adams fez sua famosa analogia com a fruta madura: “Assim como uma maçã cortada de sua árvore nativa só pode cair no chão, Cuba, separada à força de sua conexão antinatural com a Espanha e incapaz de se sustentar, só pode gravitar em direção à União Norte-Americana”.

    Os EUA ameaçaram uma guerra para impedir a transferência da soberania cubana e, em 1823 Jefferson aconselhou o presidente Monroe a se opor, com todos os meios dos EUA, principalmente a transferência [de Cuba] “para qualquer potência por conquista, cessão ou de qualquer outra forma”. Os EUA cobiçavam fortemente a ilha, que era a chave para sua hegemonia comercial e militar no Caribe.

    Cuba foi uma exceção nos processos de independência. A revolução do Haiti (1791-1804) levou Cuba a se tornar o fornecedor mundial substituto de açúcar; importando ,portanto, um grande número de pessoas escravizadas para trabalhar em sua economia açucareira em expansão. O número de pessoas escravizadas em Cuba aumentou de 44.000 em 1774 para quase 370.000 em 1861; em 1841, a população negra era maior do que a branca.

    Seguindo o exemplo do Haiti, os escravizados organizaram rebeliões em 1812, 1826, 1830, 1837, 1840, 1841 e 1843. As elites cubanas concluíram que a independência levaria não apenas ao fim da dominação colonial espanhola, mas também ao fim do trabalho escravizado da qual dependiam. As forças sociais necessárias para desalojar as elites peninsulares poderiam, como fizeram no Haiti, proceder ao deslocamento da oligarquia crioula. Nessas circunstâncias, eles preferiram continuar sendo uma colônia espanhola.

    A expansão da economia açucareira aproximou Cuba dos EUA e não da Espanha. “Na década de 1840, quase metade do comércio cubano dependia diretamente dos mercados e fabricantes norte-americanos”, diz o historiador Louis A. Perez em seu livro Cuba, Between Reform and Revolution. “O açúcar, o melaço e as peles eram exportados; os gêneros alimentícios vitais, o maquinário para açúcar e, cada vez mais, o capital [estadunidense] eram importados”. Em 1848, o presidente James K. Polk ofereceu US$100 milhões para comprar a ilha e, em 1854, o presidente Franklin Pierce aumentou a oferta para US$130 milhões.

    Embora muitos membros da elite cubana não estivessem buscando a independência, a Espanha era cada vez mais incapaz de proteger sua colônia de uma rebelião, e os EUA eram incapazes de tomar a ilha devido à polarização interna entre os estados escravagistas e os estados livres. Alguns setores da oligarquia cubana acreditavam que a anexação aos EUA faria com que a escravidão sobrevivesse e seria a salvação da economia açucareira. Entretanto, após a abolição da escravidão na Espanha, Carlos Manuel de Céspedes, um proprietário de terras cubano, libertou as pessoas escravizadas em suas terras e desencadeou a primeira guerra de independência cubana (1868-78).

    Apesar da intensa pressão, o presidente Ulysses Grant, que era fortemente antiescravagista, aceitou o status de beligerância dos revolucionários cubanos, mas permaneceu neutro. A situação seria totalmente diferente na segunda Guerra de Independência de Cuba (1895-98). Em 1898, o presidente William McKinley declarou guerra contra a Espanha, aparentemente por ter explodido o navio de guerra de guerra USS Maine e para ajudar a “libertar Cuba”, mas, na realidade, para impedir sua independência.

    O líder revolucionário de Cuba, José Marti, dolorosamente ciente das intenções hegemônicas dos EUA, acreditava que a independência oportuna de Cuba impediria que os EUA “se estendessem pelas Antilhas e caíssem com maior peso sobre as terras de nossa América”. Justamente quando os rebeldes cubanos estavam prestes a ter sucesso, em 1898, com um exército de 17.000 soldados, os EUA tomaram o controle militar da ilha, derrotaram a Espanha e, confirmando a apreensão de Marti, ocuparam Porto Rico, estendendo a guerra contra a Espanha às Filipinas (que também foram ocupadas militarmente), anexaram  o Havaí e tomaram a ilha de Guam.

    Os militares dos EUA ocuparam Cuba até 1902 e só permitiram que o país tivesse um governo independente impondo duas restrições pesadas antes de suspender a ocupação: a Emenda Platt e duas bases militares (Guantánamo e Ilha de Pines). A Emenda Platt – que foi adicionada à nova constituição cubana - deu aos EUA autoridade para intervir militarmente em Cuba, como fizeram em 1906-09, 1912 e 1917-22; além disso, a Emenda proibia Cuba de assinar qualquer tratado com outra potência estrangeira.

    O presidente Theodore Roosevelt desenvolveu a Doutrina Monroe e o Destino Manifesto em seu infame Corolário: “No Hemisfério Ocidental, a adesão dos Estados Unidos à Doutrina Monroe pode forçar os Estados Unidos, mesmo que relutantemente, em casos flagrantes de irregularidades ou impotência, ao exercício de um  poder de polícia internacional”.

    O método de política externa de Roosevelt era “fale baixo, mas carregue um grande porrete”. Seu Corolário levaria os EUA a separar o Panamá da Colômbia (1903), às ocupações militares da Nicarágua (1912-1933), do Haiti (1915-34), da República Dominicana (1916-1924) e a várias outras na América Central e no Caribe. Com a Guerra Fria, as intervenções mais importantes dos EUA na região  foram na Guatemala (1954), na República Dominicana (1961), em Cuba (Baía dos Porcos (1961), no Brasil (1964), na  Bolívia (1971), no Chile (1973), na Argentina (1976), novamente na Nicarágua (1979-1990), em Granada (1983), em El Salvador e Guatemala (década de 1980) e no Panamá (1989). Literalmente centenas de milhares de pessoas foram massacradas por essas incursões  dos EUA seguindo a Doutrina Monroe.

    Até a Revolução Cubana, Cuba era de fato uma colônia americana. Falando a um Comitê do Senado dos EUA em 1960, o ex-embaixador dos EUA em Cuba Earl E T Smith disse: “Até [Fidel] Castro os EUA tinham uma influência tão esmagadora em Cuba que o embaixador americano era o segundo homem mais importante, às vezes até mais importante, do que o presidente cubano”.

    Em 1959, o investimento direto dos EUA em energia elétrica e serviços telefônicos era de 90%, na produção de açúcar bruto, 37%; em bancos comerciais, 30%; no serviço público de ferrovias, 50%, no refino de petróleo, 66%, em seguros, 20%, e na mineração de níquel, 100%. Além disso, a ilha havia se tornado um paraíso para os jogos de azar, para a máfia e a prostituição e, por ser uma economia de cultura única, grande parte de sua população sofria com a pobreza, a desnutrição, o analfabetismo e o desemprego crônico.

    A Doutrina Monroe com seus aprimoramentos - o Destino Manifesto e o Corolário de Roosevelt - é um modelo dos EUA para a hegemonia. A Revolução Cubana quebrou o ciclo vicioso de dominação dos EUA na ilha, mas a agressão monroísta dos EUA continua, conforme comprovado por 61 anos de bloqueio  e ataques impiedosos dos EUA a governos progressistas no século XXI.

    Em 2019, o fanático defensor da guerra fria, John Bolton, afirmou que a “Doutrina Monroe está viva e bem”. Ele está certo, o racismo, a exploração e as intervenções militares dos EUA - com seus horríveis rastros de violência, exploração, pobreza, destruição e morte em toda a América Latin e no mundo - estão, terrivelmente, muito vivos. A humanidade já suportou mais de duzentos anos  dessa maldita "doutrina".                                                                          

    (Artigo traduzido por Franklin Frederck)

    O Dr. Francisco Dominguez é um acadêmico e especialista em economia política contemporânea da América Latina e membro do executivo da Cuba Solidarity Campaign no Reino Unido.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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