Em "Mi País Imaginario", Patricio Guzmán documenta os protestos de 2019 no Chile e destaca o protagonismo feminino
"Quem analisa tudo isso são as mulheres de várias idades que param diante da câmera de Guzmán"
A grande honestidade política e intelectual de Patricio Guzmán salta aos olhos e ouvidos em "Mi País Imaginario", documentário ainda sem previsão de lançamento no Brasil. Radicado há muito tempo em Paris, ele não esconde seu olhar "meio estrangeiro" ao documentar o movimento popular que derrubou o governo de extrema-direita no Chile, elegeu uma assembleia constituinte e um presidente identificado com a esquerda, Gabriel Boric. Não omite que chegou atrasado para documentar o "estalido social". Não esconde, tampouco, o fato de pertencer a outra geração, que fazia política por outros meios e viu acontecer o contrário: o sonho de Allende ser esmagado pela ditadura de Pinochet.
Guzmán reitera diversas vezes sua perplexidade diante de uma mobilização anti-neoliberal alheia aos partidos e baseada na rejeição à classe política e às polícias. "Nunca imaginei que veria isso acontecer no Chile", repete. Regozija-se ao ver que novas "gerações sem medo" surgiram desde a queda de Pinochet.
As imagens de arquivo que ele retoma – algumas delas do seu primeiro filme e do monumental A Batalha do Chile – mostram ações políticas protagonizadas por homens. Já o que eclodiu em Santiago a partir de outubro de 2019 foi um movimento amplamente dominado por mulheres, com participação de feministas, indígenas e militantes da diversidade. Guzmán vai ouvi-las com respeito e atenção. São elas que lhe explicam o que estava ocorrendo nas ruas, praças e catracas de metrô.
O 2019 chileno tem semelhanças com o 2013 brasileiro: a centelha inicial relativa ao preço de passagens, a ausência de lideranças, a recusa aos partidos, o misto de enfrentamentos e performances. Ao mesmo tempo, era radicalmente diferente: opunha-se a um governo fascistóide e, em meio à insatisfação generalizada, clamava por coisas concretas, como democracia, justiça social e uma nova constituição que sepultasse as leis da ditadura.
Quem analisa tudo isso são as mulheres de várias idades que param diante da câmera de Guzmán: uma militante encapuzada, uma fotógrafa atingida num olho pelos "pacos" (policiais), uma escritora, uma jornalista, uma socorrista, uma ativista sem teto, uma cineasta, uma médica, uma politóloga, uma poeta e jovens engajadas na redação da nova constituição. Cada uma traz um ângulo diferente na exposição de uma ética política renovada, onde as pautas identitárias se mesclam às demandas mais amplas da sociedade.
Infelizmente, a gente sabe, a constituição redigida por representantes do povo foi rejeitada em plebiscito de 2022 por ampla maioria da população, que é essencialmente conservadora. Já em 2023, o povo chileno rejeitou também um projeto liderado pela direita, encerrando assim a discussão sobre uma nova Constituinte no país.
"Mi País Imaginario" não cobre esses reveses. Fica, porém, o testemunho de uma energia latente na juventude chilena. O documentário faz jus a esse vigor nas muitas cenas de "intifada", quando as pedras da cordilheira já cantada pelo cineasta em La Cordillera de los Sueños se tornam armas de resistência à violência policial. Uma impressionante filmagem de drone acompanha um blindado da polícia sendo alvejado durante um trajeto. Outras imagens de grande força mostram a concentração de 1,2 milhão de pessoas no 25 de outubro de 2019, a maior da história do país.
Após os créditos finais, ficamos com a sensação de que a América do Sul parece condenada a esse eterno vai-vem entre autoritarismo e esboços de democracia. Com sua voz pausada e grave, Patricio Guzmán parece nos dizer que devemos confiar no fogo lento que prepara chamas maiores para o futuro.
O trailer:
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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