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    Osvaldo Coggiola

    Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História e Revolução (Xamã).

    14 artigos

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    Escravidão e capital

    O mercado mundial atingiu sua “densidade crítica” com base na conquista colonial e na escravidão africana e ameríndia

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    (Publicado no site A Terra é Redonda)

    No século XVI, a emergência do comércio internacional e da produção mercantil em grande escala criou a necessidade, para a Europa, de fontes sistemáticas de abastecimento de metais preciosos e de outros produtos, em especial insumos para a indústria que abastecia o comércio. As descobertas e novas rotas ultramarinas se transformaram, por isso, em conquista, colonização, submissão dos novos territórios e, eventualmente, escravização e submissão a trabalho compulsório das populações autóctones.

    Elas estiveram à serviço da organização da exploração da América, que buscou, antes do mais, extrair os metais preciosos que lubrificassem o ansiado comércio europeu com as “maravilhas orientais”. Devido a isso, o mercado mundial atingiu sua “densidade crítica” com base na conquista colonial e na escravidão africana e ameríndia. Espanha, primeiro, e Portugal, depois, iniciaram, com esses métodos e com um século de antecedência em relação às outras potências colonizadoras (Inglaterra, Holanda, França), a conquista e colonização das novas terras americanas e de outros continentes.

    Fazendo isso, no entanto, os colonizadores europeus realizaram, sem ter consciência disso, outro objetivo, o estabelecimento de um circuito econômico mundial: “Potosí fez muito mais do que enriquecer os homens que o controlavam e lançar o restante numa luta mortal uns contra outros. Em primeiro lugar, enriqueceu a Espanha, mas também financiou a consolidação do império espanhol na América do Sul, custeou a travessia do Pacífico até as Filipinas, e levou as economias das Américas, da Europa e da Ásia, antes separadas, a um condomínio de fato.

    Isso aconteceu sem que ninguém o pretendesse. A prata ganhou uma vida global só sua, enquanto os indivíduos improvisavam diante das oportunidades e da compulsão de manter o fluxo do metal precioso”.[i] O colonialismo ganhou, por isso, uma função econômica vital: durante a primeira etapa do sistema colonial, os conflitos entre o monopólio da Coroa e os interesses dos colonizadores se resolveram através de um ativo contrabando entre os últimos e as potências excluídas pelo Pacto Colonial ibérico (Inglaterra foi particularmente ativa na América espanhola e no Brasil)[ii] e também da pirataria, além do contrabando no comércio intracolonial.

    Inicialmente, os poderes católicos, que beneficiaram os reinos ibéricos, conseguiram governar a expansão colonial. Os abalos e contradições do sistema colonial, porém, não se reduziam às que opunham os setores privilegiados, os colonizadores, ao Vaticano, à nobreza metropolitana e às monarquias. Os setores capitalistas das economias metropolitanas começaram a pesar cada vez mais na determinação dos rumos futuros da empresa colonial.

    A função orgânica e necessáriado colonialismo no surgimento do capitalismo foi reconhecida no primeiro estudo abrangente do imperialismo contemporâneo: “A economia colonial deve ser encarada como uma das condições necessárias do capitalismo moderno. Seu comércio, em grande parte compulsório, foi em boa medida pouco mais do que um sistema de roubo velado, e em sentido algum um intercâmbio de mercadorias”.[iii]

    Giovanni Arrighi identificou quatro ciclos mundiais (chamados por ele de “ciclos sistêmicos de acumulação”), por vezes superpostos, de acumulação de capital.[iv] O primeiro, o das cidades de Gênova e Veneza (séculos XV a XVII); em Gênova, a Casa di San Giorgio, no século XV, era uma instituição privada dirigida por banqueiros que controlava as finanças públicas da cidade-estado (ou seja, controlava a dívida pública). O segundo foi o holandês (séculos XVI a XVIII), o terceiro foi o britânico (séculos XVIII a XX) e o quarto o norte-americano (século XIX até os dias de hoje). Onde fica, nessa sequência, a expansão colonial ibérica?

    Elencando a sucessão dos países ou blocos de cidades cujo domínio econômico, político e militar criou as bases do mercado mundial (Veneza-Gênova-Pisa na Alta Idade Média, Espanha-Portugal no início da Era Moderna, e logo depois Holanda, França, Inglaterra), Marx identificou o caráter da acumulação de capital em cada fase histórica: cada domínio mundial resumia o caráter de uma época. Qual foi o lugar das conquistas ultramarinas ibéricas, nesse processo, e qual seu papel na emergência de um novo modo de produção? Foi o cenário econômico mundial, acima de tudo, incluída a colonização dos “novos territórios”, o marco e mola mestra para o surgimento e impulsão do capitalismo na Europa?

    Marx, respondendo afirmativamente, o resumiu numa conhecida passagem do Manifesto Comunista: “A descoberta da América e a circunavegação da África ofereceram à burguesia ascendente um novo campo de ação. Os mercados da Índia e da China, a colonização da América, o comércio colonial, o incremento dos meios de troca e das mercadorias, imprimiram um impulso desconhecido até então ao comércio, à indústria, à navegação, e desenvolveram rapidamente o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição.

    A antiga organização feudal da indústria, em que ela era circunscrita a corporações fechadas, já não podia satisfazer às necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados. A manufatura a substituiu. A pequena burguesia industrial suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante de divisão do trabalho dentro de própria oficina (…) A grande indústria criou o mercado mundial preparado pela descoberta da América. O mercado mundial acelerou prodigiosamente o desenvolvimento do comércio, da navegação, dos meios de comunicação. Esse desenvolvimento reagiu, por sua vez, sobre a extensão da indústria; e à medida que a indústria, o comércio, a navegação, as vias férreas, se desenvolviam, crescia a burguesia, multiplicando seus capitais e relegando ao segundo plano as classes legadas pela Idade Média”.[v]

    Esses foram os ingredientes da duradoura hegemonia europeia em um mundo em proa à sua unificação geográfica e econômica. A conquista e submissão do mundo colonial não foi um “efeito colateral” ou um epifenômeno da ascensão do capital, mas um dos seus centros nevrálgicos. Dale W. Tomich propôs uma formulação para superar os enfoques que “fragmentam teoricamente a conexão interna entre a escravidão, o mercado mundial e o desenvolvimento capitalista. Com isso obscurecem tanto as origens da escravidão na economia mundial como as origens escravistas da economia mundial”.

    Segundo o autor: “Teoricamente, o capital requer para o seu desenvolvimento uma dada massa de mercadorias em circulação e uma dada divisão do trabalho, mas não requer necessariamente a escravidão. Marx, portanto, trata a escravidão como uma contingência externa e a exclui da exposição lógica. No entanto, historicamente, a escravidão foi uma meio-chave para expandir a produção de mercadorias, criando um mercado mundial e fornecendo as condições substantivas para o desenvolvimento da forma capital-trabalho assalariado… Ainda que a relação trabalho assalariado-capital forme o eixo teórico da análise de Marx, não se pode presumir que seja essa relação o ‘primeiro-motor’ do capitalismo histórico”.[vi]

    Foi Marx, porém, quem expôs a ideia de que a sociedade baseada no trabalho livre na Europa surgira com base no saque e no trabalho escravo nas colônias europeias de ultramar: “Foi a escravidão que deu valor às colônias; foram as colônias que criaram o comércio mundial; o comércio mundial é a condição necessária para a grande indústria mecânica… Uma das condições indispensáveis para a formação da indústria manufatureira era a acumulação dos capitais, que veio facilitada pela descoberta da América e pela invasão do mercado pelos seus metais preciosos. As necessidades comerciais do novo mercado mundial determinaram o extermínio e a redução à escravidão das populações aborígenes, sepultada nas minas”, como também “o saque das Índias Orientais, a transformação da África em uma reserva de caça comercial de negros”.[vii]

    A escravidão em grande escala iniciada no século XVI foi, antes de tudo, uma peça central nos primeiros momentos da formação do capitalismo e do arranque da acumulação capitalista na Grã-Bretanha. Milhões de pessoas, principalmente da África Ocidental e do Golfo da Guiné, foram arrancadas de suas comunidades de origem para ser deportadas às colônias europeias do Caribe, ao Sul das colônias inglesas da América do Norte e à costa brasileira. Foi o que permitiu lavrar e cultivar as terras virgens das Antilhas depois do extermínio dos nativos e das crescentes dificuldades para importar mão de obra europeia, e impulsionou a primeira grande agricultura de exportação, com base no açúcar, tabaco e algodão.

    As plantações trabalhadas por escravos fizeram crescer o volume do comércio intercontinental, estimularam o desenvolvimento de um conjunto de indústrias (o refino de açúcar e as primeiras fábricas de tecido de algodão) e transformaram alguns portos atlânticos europeus em centros do comércio mundial. O tráfico triangular da Europa levava para a África as quinquilharias (trapos, bijuteria, folha-de-flandres e espelhos) que eram trocadas por escravos, vendidos na América, que extraiam as matérias primas das primeiras fábricas europeias, especialmente britânicas: “Sem as riquezas da América e sem os escravos e o comércio africanos, o crescimento econômico, político e militar dos Estados europeus teria ficado limitado, sem dúvida, a uma escala menor; talvez definitivamente menor.

    Com eles, o primeiro capitalismo se fez mundial e com toda razão, em Liverpool e em Bristol se dizia que ‘não há um só ladrilho na cidade que não esteja mesclado com o sangue de um escravo’”.[viii] Um laço indissociável uniu a escravidão africana com os primeiros processos de acumulação de capital em grande escala.

    A escravidão moderna teve sua origem no massacre dos povos ameríndios: “Poucos anos depois da descoberta da América, quando a crueldade e a voracidade da exploração dos colonos espanhóis literalmente exterminou a frágil população indígena, foi ideado o recurso de trazer da África, como escravos, uma mão de obra mais forte, capaz de realizar trabalhos nas minas e nos engenhos de cana de açúcar. A mesma necessidade foi advertida, anos mais tarde, nos outros grandes domínios do continente (americano)”.[ix]

    As linhas de distribuição geográfica da mão de obra africana escrava acompanharam as necessidades da empresa colonizadora ibérica. Sua implantação não precisou esperar os conselhos do padre Bartolomeu de Las Casas para arraigar na atividade mineira das Antilhas. Logo depois, “o despovoamento intenso das terras baixas do continente [devida à expropriação ou eliminação de seus primitivos habitantes], e o implante delas nas grandes explorações de monocultura, para as quais os africanos demonstraram boa aptidão, concentrou eles nas cálidas regiões tropicais da América. Nas zonas temperadas das serras, onde estavam localizadas as minas e se dispunha de braço indígena abundante, seu empregou resultou menos necessário. Esta generalização de sua distribuição geográfica não impede que o negro chegasse a todos os cantos do continente e fosse utilizado nas mais diversas atividades”.[x] Com o comércio mundial em expansão, a rentabilidade do trabalho compulsório, forçado ou escravizado, não parou de crescer nos séculos XVI e XVII.

    Devido a isso, o estabelecimento de uma rede mundial de comércio e comunicações, base do mercado mundial, teve também um impacto demolidor na África: “O século XVI africano foi marcado pelo fato de que nenhuma grande região da África fugiu aos acontecimentos que determinaram um declínio cultural e econômico extremamente rápido”.[xi] A conquista colonial, o trabalho forçado multiforme e generalizado, a repressão das numerosas revoltas locais por meio do ferro e do fogo, a subalimentação, as diversas doenças locais e importadas e a continuação do tráfico negreiro, reduziram uma população africana que baixou para quase um terço da anteriormente existente nas regiões afetadas pelo tráfico de escravos.

    Para o período precedente à Era Moderna, Mário Maestri estudou os grandes Estados tributários sudaneses, Ghana, Mali e Songai, abordando sua história política, econômica, social, suas principais etnias e seus contatos com o mundo árabe e islamizado: segundo o autor, a chegada dos europeus nas costas ocidentais da África desorganizou essas formações tributárias, que possuíam forte desenvolvimento civilizacional, produtivo e comercial, produzindo inclusive boa parte do ouro usado na Europa para cunhagem de moedas.

    Desde tempos remotos (o homo sapiens, afinal, é originário das planícies africanas) havia na África culturas organizadas que se inter-relacionavam através de uma extensa rede de comércio que compreendia sal, arroz, algodão tecidos, gado, ouro, bronze, erro e outros. Havia inclusive fundições de ferro paralelas no tempo ao Império Romano em seu apogeu. Os domínios bantus (o nome “bantu” não designa uma unidade racial, mas cultural, estabelecida pelas semelhanças entre os numerosos dialetos que utilizam) que compreendiam Moçambique e o Monomotapa,[xii] mantinham fortes relações comerciais com as Índias e a Ásia, através de comerciantes persas e árabes.[xiii]

    Sob o impacto da caçaria humana e do tráfico, considerando-se a população da Europa, África, Oriente Médio e as Américas, a população africana caiu, entre 1600 e 1900, de 30% para 10% da população total. Os reinos meridionais africanos haviam ficado longo tempo isolados, sem contatar com os grandes centros onde se desenvolvia a produção e o comércio. A expansão europeia os conectou com o mundo através da caça aos escravos, além de desagregar os grandes centros políticos da África pré-colonial.

    Antes do século XVI, a maior parte dos escravos exportados da África era embarcada da África Oriental para a Península Arábica. Zanzibar tornou-se um dos principais portos desse comércio. Entre 800 e 1600, o tráfico de escravos no Mar Vermelho, a cargo principalmente de comerciantes árabes, foi de 1.600.000 seres humanos; na África Oriental, no mesmo período, ele atingiu 800 mil indivíduos. Durante o século XVI, a Europa começou a superar o mundo árabe no tráfico de exportação, com o tráfico de escravos da África para as Américas. O tráfico negreiro europeu, porém, atingiu dimensões muito superiores, quintuplicando (ou mais), em quatro séculos, as cifras do tráfico árabe em oito séculos.

    A escravidão moderna assumiu dimensões de hecatombe demográfica na África. A captura portuguesa de escravos africanos começara em 1441, quando Afetam Gonçalves sequestrou um casal na costa ocidental do Saara para presentear o rei de Portugal, que o recebeu com visão comercial da potencialidade do feito. Em 1443, Nuno Tristão trouxe o primeiro contingente importante de escravos africanos, vendendo-o com lucro em Portugal. No ano seguinte, seis caravelas foram enviadas em busca de escravos e, em 1445, 26 expedições se dirigiram com esse e outros fins para as costas africanas ocidentais.

    A escravidão africana existia desde tempos imemoriais, como em outras sociedades. Nas palavras de Fernand Braudel: “A escravidão surgiu de formas diferentes em sociedades diferentes: havia escravos da corte, escravos incorporados em exércitos principescos, escravos domésticos e de criadagem, escravos trabalhando na terra, na indústria, como correios e intermediários, até mesmo como comerciantes”.[xiv] Se a escravidão antiga tendeu a desaparecer na Europa medieval, desde o século XIV existia na Europa do Sul um ativo mercado de escravos animado por traficantes árabes. A mão de obra era um bem raro e requisitado na Europa depois da dizimação populacional provocada pela Peste Negra; bolsões de escravidão tinham sobrevivido à queda do Império Romano nas atividades domésticas e nas zonas de agricultura intensiva. A Europa traficante não lidava com uma instituição que lhe fosse desconhecida, ou da qual já tivesse perdido a memória, muito pelo contrário.

    A caça de escravos africanos contou com a cumplicidade inicial de reis e mandantes locais, já habituados a usá-la devido ao escasso povoamento do continente, que havia imposto o trabalho forçado ou escravo como meio de gestão e disciplinamento da mão de obra na África subsaariana: “O desenvolvimento da escravidão em grande escala foi parte do processo consolidador dos Estados centralizados que ficavam ao Sul, longe da influência direta dos portos caravaneiros do Sael… Enorme era a quantidade de escravos que pertenciam ao rei, trabalhavam nas suas glebas e marchavam com seus exércitos. Enorme era também a massa de escravos que serviam aos chefes, sobretudo nos vilarejos agrícolas, de cuja produção a nobreza retirava riqueza e poder… Os escravos pertenciam ao senhor, do mesmo modo que os filhos que tivessem. Se o dono casasse com uma escrava e do matrimonio houvesse fruto, este nascia livre. E livre se tornava o cativo a quem o senhor alforriasse, ainda que o estigma de ter sido escravo ou de escravo descendente fosse difícil de apagar”.[xv]

    As bases do tráfico negreiro europeu em grande escala haviam sido lançadas ainda no século XV. Seus protagonistas iniciais foram portugueses, pois a expansão europeia para o Oeste, a partir de finais do século XV, teve como base os oitenta anos prévios de incursões lusas no Atlântico. Portugal foi o pioneiro da exploração do Atlântico, colonizando ilhas nesse oceano e explorando e comercializando na costa ocidental da África. Na década de 1470, os portugueses já tinham começado a comerciar escravos no Golfo do Benin. As primeiras incursões portuguesas na África subsaariana, no entanto, foram “pacíficas”. Seus investimentos na costa Oeste da África foram inicialmente estimulados pela exploração de minas de ouro. Paralelamente, deu-se início também ao comércio de escravos, que se estabeleceu e desenvolveu a partir de 1450.

    Em torno do comércio de escravos estabeleceu-se também o de outros produtos. Desde inícios do século sucessivo, a principal riqueza africana obtida em troca de produtos europeus era a mão de obra demandada pelas colônias americanas, que lhes deu motivo e alento para os investimentos em explorações marítimas. Uma vez lançados, a caça e o comércio de escravos cresceram vertiginosamente, até atingir seu ápice no século XVIII, quando os navios mercantes britânicos foram principais protagonistas da “Passagem do Meio”, que transportou milhões de escravos para o Hemisfério Ocidental. A maioria dos que sobreviveram à jornada acabou no Caribe, onde o Império Britânico tinha colônias dedicadas ao plantio de açúcar, altamente lucrativas. A média de sobrevida dos escravos chegados ao seu destino era, no primeiro século da escravidão africana nas Américas, de sete anos.

    Inicialmente produto de iniciativas individuais, que se limitavam ao filhamento (adoção forçada) de mulheres e crianças isoladas, ou a captura da população de pequenas aldeias costeiras, na segunda metade do século XV a escravidão africana impulsionada pelos portugueses começou a ganhar novos contornos: “Incitavam os caciques e reis negros a entabular guerras entre si; ao vencedor compravam os prisioneiros de guerra, com o que financiavam os gastos para novos combates. A escravidão já não mais era fenômeno secundário ou consequência de guerras, mas o objetivo das mesmas.

    Os portugueses se aliavam com maometanos contra maometanos, com pagãos contra pagãos; o botim de prisioneiros de guerra lhes era repassado como escravos, por contrato prévio. Essa mercadoria era enviada, acorrentada, aos postos de distribuição em Portugal. Pendiam deles longas correntes amarradas ao pescoço”.[xvi]

    A partir de 1450, mas de mil escravos começaram a chegar anualmente a Portugal. No período 1469-1474, os portugueses chegaram ao Golfo de Biafra, encontrando um tráfico local de escravos maior e melhor organizado, além de outras riquezas tentadoras: pimenta malagueta, marfim e ouro, que abriram novas oportunidades comerciais, e permitiram aos portugueses penetrar em mercados europeus, inclusive bem longe de seu país, onde antes eram desconhecidos. Em 1479, Castela reconheceu que a África ocidental era esfera de ação exclusivamente portuguesa. No século seguinte, Portugal se consolidou como grande potência marítima, comercial e escravista, possuindo um quase monopólio de tráfico africano no século seguinte. A partir de 1600, os portugueses sofreram a concorrência de ingleses e holandeses.

    Pode-se considerar a escravidão moderna, muito especialmente africana, como uma “filha natural” da nova divisão internacional do trabalho, criada pelo sistema colonial: “África, terra pobre, clima difícil, apenas tem mais de uma riqueza, uma produção principal, sua população humana, robusta e prolífera, que os negreiros chamam por eufemismo ‘madeira de ébano’. É o que precisam as plantações das Índias ocidentais, a cana de açúcar exige muita mão de obra. Há uma complementariedade. A escravidão na África era o corolário, de um lado, da descoberta do Novo Mundo, de outro, do desenvolvimento do consumo de açúcar na Europa.

    As reservas de mão de obra da África, por outro lado, eram exploradas já fazia muito tempo”. O impacto demográfico da escravidão sobre as sociedades africanas não se limitou aos escravos transportados, quer eles chegassem vivos a destino ou não: “A cifra dos escravos desembarcados deve ser aumentada em 25%, talvez muito mais, para levar em conta os que morriam a caminho. Mas é preciso levar em conta, sobretudo, que para capturar algumas dezenas de escravos, os caçadores que os revendiam aos negreiros brancos massacravam um número considerável de adultos e crianças e dispersavam cidades inteiras sujos membros, desorganizados e privados de seus homens adultos, apenas podiam sobreviver. A sangria demográfica e sua incidência indireta são infinitamente mais importantes que a cifra dos escravos transferidos”.[xvii]

    A média de escravos mortos durante a travessia atlântica nos navios negreiros foi estimada, para o período 1630-1803, em quase 15%. Mesmo com essas perdas, oito vezes mais africanos do que portugueses compuseram o futuro Brasil, principal destino americano do tráfico negreiro. Esses movimentos de migração compulsória africana foram acompanhados de uma importante migração europeia, que se misturou em graus diversos com as populações locais e com a população de origem africana, configurando uma vasta população mestiça que, junto aos ameríndios e os africanos, foi majoritária em quase todas as regiões americanas. Porque existia a necessidade de escravos nas Américas?

    A óbvia necessidade de mão de obra se desdobrava na necessidade de ocupação territorial. O povoamento das terras conquistadas por Castela foi dificultado pela falta de disponibilidade demográfica da Espanha na época da colonização: não havia excedentes de população suficientes para atender à necessidade da ocupação das novas regiões. Em 1502, os primeiros carregamentos de escravos africanos aportaram nas colônias da América espanhola. As cifras da escravidão são imprecisas: Katia de Queirós Mattoso apontou mais de 9,5 milhões de africanos transportados para as Américas entre 1502 e 1860, com o Brasil na condição de maior importador (em torno de 40% do total do tráfico). Contabilizações mais apuradas apontaram as seguintes cifras:

     1519-1600: 266.000 escravos africanos exportados à América
     1601-1700: 1.252.800 escravos africanos exportados à América
     1701-1800: 6.096.200 escravos africanos exportados à América
     1801-1867: 3.446.800 escravos africanos exportados à América
     Total 11.061.800 escravos africanos exportados à América

    Segundo estimativas que contabilizaram todas as formas de tráfico, entre finais do século XV e a segunda metade do século XIX a escravidão africana implicou na captura, venda e traslado de aproximadamente treze milhões de indivíduos (Eric Williams chegou a estimar uma cifra superior a 14 milhões).[xviii] Só a título de comparação, a emigração “branca europeia” para as Américas, entre o descobrimento inicial e 1776, mal superou um milhão de indivíduos. O traslado dos escravos era realizado nos porões de barcos superlotados (onde os africanos viajavam acorrentados), que provocaram uma mortandade imensa.

    Durante o século XVI o tráfico negreiro foi monopólio português. Só bem depois de Portugal, Inglaterra fundou desde 1660 entrepostos africanos de captação de escravos para as plantações americanas. Os holandeses, por sua vez, importaram escravos da Ásia para sua colônia na África do Sul. No Brasil, o cultivo de cana de açúcar em Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro gerou a necessidade de cada vez mais escravos, só depois a exploração aurífera tomou o lugar mais importante, não cessando, porém, a importação de africanos destinados à agricultura.

    Entre 1500 e meados do século XVIII, Brasil foi a região americana que mais importou escravos, mais de 1,9 milhão de pessoas nesse período, seguido, de longe, pelas Antilhas britânicas, com pouco mais de 1,2 milhão. Os lucros desse tráfico foram parte substancial da acumulação de capital por vários séculos: “A viagem de um tumbeiro entre Bahia e Serra Leoa nos anos 1810 podia gerar retorno de mais de 200% sobre o capital investido… O segundo Banco do Brasil nasceu com capital do tráfico e viveu de empréstimos a escravistas… Os grandes proprietários escravistas tinham lucros polpudos porque exerciam poder de monopólio. Detinham as melhores terras, pois obtinham o seu crédito sob a forma de estoques de escravizados. Assim inundavam os mercados mundiais de artigos tropicais. No caso dos traficantes, algumas famílias controlavam mais da metade do mercado negreiro no Rio de Janeiro”.[xix]

    Aexploração econômica do Novo Mundo teria sido impossível sem a escravidão africana. Ela foi sacralizada já em seus estágios iniciais pela Igreja cristã: pela bula Dum Diversas, de 1452, o papa Nicolau V concedeu ao rei de Portugal D. Afonso V, e a seus sucessores, a faculdade de conquistar e subjugar as terras dos “infiéis” e de reduzi-los à escravatura. Embora, como vimos, já no século XV escravos fossem vendidos na Europa, foi com a exploração das colônias americanas que o tráfico escravagista atingiu grandes proporções.

    O investimento europeu em guerras externas geradoras de escravos modificou profundamente a África e também as Américas. Cidades africanas atacavam outras cidades, escravizando a população para vendê-la aos europeus. A escravidão articulada com a expansão do Islã havia estado calcada em moldes sexuais diferenciados. Os árabes vendiam os homens e ficavam com as mulheres, que eram absorvidas pelas comunidades. Os filhos de escravas costumavam ser assimilados pela sociedade muçulmana. A preferência dos traficantes árabes por cativas do sexo feminino foi um fator para que os europeus comprassem mais homens do que mulheres. Outro fator importante foi a constatação de que os homens eram mais resistentes às péssimas condições de salubridade a que eram submetidos nas longas viagens de travessia do Atlântico em navios negreiros.

    Durante mais de três séculos, o tráfico negreiro alterou totalmente a organização social e política dos países africanos, que era “um mundo coerente de sociedades bem diversas”. Nele, já existia a escravidão, “mas ela somente era numerosa no Benin e nas regiões sudano-saelianas. O cativo integrava-se na família e não podia ser vendido. Os homens livres, que tinham direito a ter escravos, podiam ser submetidos a obrigações idênticas às dos escravos… Impérios e reinos, estáveis antes da chegada dos europeus, desapareceram para dar lugar a novos Estados, com frequência fundados por aventureiros, nascidos do tráfico e vivendo dele.

    A família ampliada, que resistiu até os primeiros tempos da colonização, terminou por romper-se e diluir-se nas organizações estatais territoriais, com frequência criadas e desenvolvidas para servir às necessidades do tráfico… Os comerciantes guinéus, acostumados à troca de ouro pelas bagatelas europeias, são os naturais fornecedores de escravos, cuja demanda aumenta. Em Angola, e mais tarde na África oriental, o tráfico assume um ritmo catastrófico, fazendo do país um verdadeiro deserto: transferências de populações consideráveis privam a região de homens e enriquecem mercadores negros e brancos… Os escravos saiam de todas as capas sociais”.[xx]

    As populações de escravos nas Américas não tinham como se sustentar por meio da reprodução biológica, a maior parte dos escravos morria cedo (depois de menos de dez anos de trabalho) sem deixar descendentes, o que gerava uma constante substituição dos escravos por novas levas, e girava a máquina dos negócios dos traficantes. Com base na escravidão africana e no trabalho compulsório imposto aos nativos, a colonização dos trópicos montou as bases para a produção em massa de bens primários geradores de grandes lucros mercantis. A “naturalização” da escravidão nas metrópoles foi uma decorrência disso. Já bem adiantado o século XIX, um lúcido viajante inglês hoje considerado como um dos precursores da antropologia, Richard F. Burton, ainda opinava que “a própria natureza havia traçado uma faixa dentro da qual o trabalho livre era impossível”.

    A escravidão africana teria, para os colonialistas europeus, um caráter educativo, tendente a obter melhoria na condição miserável dos africanos. Levar um negro da África para a escravidão americana era “como levar um garoto à escola”, que no futuro seria, talvez, capaz de transmitir seu aprendizado aos seus conterrâneos…[xxi] Foi com base na escravidão que foi montado o sistema colonial da Era Moderna, pois, nas palavras de Marx, “foi a escravidão a que deu valor às colônias”; foi a primeira a que viabilizou as segundas, estruturadas em um sistema que se estabilizou em função de seu papel na acumulação mundial de capital.

    Notas

    [i] Timothy Brook. O Chapéu de Vermeer. O século XVII e o começo do mundo globalizado. Rio de Janeiro, Record, 2012.

    [ii] Segundo Zacarias Moutoukias (Contrabando y Control Social en el Siglo XVII. Contrabando y Control Social en el Siglo XVII. Buenos Aires, Centro Editor de América Latina, 1988): “Buenos Aires atraiu uma corrente de mercadores espanhóis e estrangeiros pelas possibilidades que oferecia de ‘morder’ uma parte da prata do Alto Peru. Isso permitiu que a Coroa respondesse às suas necessidades no Rio da Prata através dos Navios de Registro, cujas licenças eram atraentes para comerciantes e armadores… O aparato burocrático-militar local só poderia sobreviver estimulando a drenagem para o Rio da parte da produção mineira” (por vias ilegais). Havia “aparentes posturas contraditórias por parte da Coroa, que assumia, dependendo do contexto, medidas de tolerância com o comércio ilícito, seguida de ações de combate e centralização do monopólio régio” (Fernando Victor Aguiar Ribeiro. “Arribadas maliciosas”: redes comerciais no comércio de contrabando no porto de Buenos Aires, inícios do século XVII. Antíteses, Vol. 11 nº 22, Universidade Estadual de Londrina, 2018). Jaime Vicens Vives afirmou que “se a corrupção se enraizou na Espanha, foi porque, apesar da atitude moralizadora da Coroa e de suas repetidas declarações contra todas as práticas corruptas, a administração teve que fazer funcionar o mecanismo do comércio americano apesar das leis” (Jaime Vicens Vives. Coyuntura Económica y Reformismo Burgués. Barcelona, Ariel, 1968).

    [iii] John A. Hobson. L’Imperialismo. Roma, Newton & Compton, 1996 [1902].

    [iv] Giovanni Arrighi. O Longo Século XX. Dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro, Contraponto/UNESP, 1996.

    [v] Karl Marx e Friedrich Engels. Manifesto Comunista. São Paulo, Ched, 1980 [1848.].

    [vi] Dale W. Tomich. Pelo Prisma da Escravidão. Trabalho, capital e economia mundial. São Paulo, Edusp, 2011.

    [vii] Karl Marx. Miséria da Filosofia. São Paulo, Boitempo, 2017 [1847].

    [viii] Eric Williams. Capitalismo y Esclavitud. Madri, Traficantes de Sueños, 2011 [1944].

    [ix] José Luis Martínez. Pasajeros de Indias. Viajes transatlánticos en el siglo XVI. Madri, Alianza, 1983.

    [x] Nicolás Sánchez Albornoz e José Luis Moreno. La Población de América Latina. Bosquejo histórico. Buenos Aires, Paidós, 1968.

    [xi] Robert e Marianne Cornevin. Histoire de l’Afrique. Des origines à la 2º guerre mondiale. Paris, Payot, 1964.

    [xii] Monomotapa não era o nome de um país, mas de um soberano, literalmente significava “senhor das minas”. Seu domínio correspondia à região depois conhecida como Rodésia do Sul, colónia britânica situada a norte da União Sul-Africana que existiu na África austral entre 1888 e 1979, que deu origem ao atual Zimbabwe.

    [xiii] Mário Maestri. História da África Negra Pré-colonial. Porto Alegre, Mercado, Aberto, 1988. Aspectos da estrutura hierárquica, social, cultural e político-militar do antigo Kôngo são abordados em: Patrício Batsîkama. Sistema Político no Antigo Kôngo. Recife, Editora da Universidade de Pernambuco, 2013.

    [xiv] Fernand Braudel. Civilização Material, Economia e Capitalismo. Séculos XV-XVII. São Paulo, Martins Fontes, 1995.

    [xv] Alberto da Costa e Silva. A Enxada e a Lança. A África antes os portugueses. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2011.

    [xvi] Georg Friederici. El Carácter del Desubrimiento y Conquista de América. México, Fondo de Cultura Económica, 1987 [1926], vol. II.

    [xvii] Pierre Bertaux. África. Desde la prehistoria hasta los estados actuales. México, Siglo XXI, 1997.

    [xviii] Herbert S. Klein e Ben Vinson. African Slavery in Latin America and the Caribbean. Nova York, Oxford University Press, 2007. Cf. Marcel Dorigny e Bernard Gainot. Atlas des Esclavages. Traites, sociétés coloniales, abolitions de l’Antiquité à nos jours. Paris, Autrement, 2006.

    [xix] Alexandre de Freitas Barbosa e Tâmis Parron. A retórica cruel do negacionismo. A Terra é Redonda, São Paulo, 23 de fevereiro de 2023.

    [xx] Katia de Queiros Mattoso. Ser Escravo no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1982.

    [xxi] Aleksandr Gebara. A África de Richard Francis Burton. Antropologia, política e livre-comércio. São Paulo, Alameda, 2010.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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