Espantalho
Nasce um símbolo de poder e propriedade nas esburacadas ruas paulistanas
Se um dia você entrar em uma redação e ouvir que algum repórter está aborrecido por cobrir “buraco de rua” não pense que o jornalista abandonou a profissão e passou a jogar areia em cima de alguma vala, ou tapou a falha do asfalto com qualquer remendo.
“Cobrir buraco de rua” é uma dessas expressões que nada têm a ver com o sentido original das palavras que formam a frase. É do time do “cada macaco no seu galho”, do “empurrar com a barriga”, do “rodar a baiana”.
Como nossas grandes cidades possuem mais buracos por metro quadrado do que os furos de um queijo suíço por centímetro, buraco virou sinônimo de banalidade. É algo comum, que se repete e por isso não tem importância.
Nessa época do ano, repórter que vai pra rua falar do preço do panetone, da decoração de Natal ou dos rechonchudos que se transformam em Papai Noel em busca de uns paus, está “cobrindo buraco de rua”. Não tem novidade, entende?
Quem alisa pneu ou sola de tênis em trilhas paulistanas sabe que buraco, tanto faz se raso ou fundo, tem vizinho. Mora perto da vala, da lombada, da cova, da caverna, do barranco, da solapa, da depressão. Desvia-se de um para cair em outro. Às vezes na rua, às vezes na calçada. A buraqueira arrebenta carro, quebra moto, derruba pedestre.
A novidade é que as crateras ou chanfros estão disfarçados. Levei quilômetros para descobrir. Primeiro acreditei que era moda de carnaval, aí nas férias de julho a mania persistiu e agora no fim de 2024 tenho certeza absoluta. Buracos estão camuflados por cones. Aqueles objetos que têm parentesco distante com pirâmides. São de plástico, leves e chamam atenção com cintilante alaranjado.
Pois basta que o asfalto se parta ou se rache, que logo alguém tasca-lhe um cone. Ou dois.
Num programa de rádio o ouvinte reclamou da solução tosca e então ouviu de outro que não se queixasse: “você tem sorte, aqui no meu bairro em vez de cone enfiam galho de árvore e até cadeira para sinalizar!” “Quanta tecnologia”, foi o pitaco do apresentador.
Imagino engenheiros de trânsito compenetrados em reunião. Até que a mente privilegiada de um deles decreta: “acabou o problema. A gente entucha o cone no buraco e pronto, é só motorista ou o motoboy desviar.”
Na minha vila Buarque os cones ganham destaque por sua eficiência. Semana passada roubaram um bueiro e escancarou-se uma lacuna na calçada capaz de engolir um adulto. Em pouco tempo socaram-lhe um cone. É assim também na ciclovia, nas praças, até na escada do prédio. Nas sextas feiras de limpeza, Adriano espalha seus cones para segurança de todos.
Os cones garantem a vaga para o caminhão de mudança e o lugar do vendedor dos fumacentos espetinhos. Pode apostar: o supermercado tem seu estoque de cones, o manobrista do restaurante também, a manicure não vive sem o dela, que é preto e amarelo ouro, guardado para as clientes motorizadas. Na frente da igreja lá está um trio deles para garantir a elegância da moça de véu e grinalda, que já está atrasada.
Na feira de domingo, Ascânio é o primeiro a delimitar fronteiras. Vem no trem de Itapevi com 8 cones, uns encaixados nos outros. Faz um reconhecimento da área, então posiciona seus sinalizadores e marca as vagas, cada uma a 10 reais. É o preço do cone, me informa piscando o olho.
- Você é o dono da rua? Pergunta a motorista quase furiosa.
- Não sou dono da rua, não senhora, mas sou dono do cone.
E nós, os sem-cone, somos donos do que nesse espaço público que é de todos e não é de ninguém?
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