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    Ricardo Queiroz Pinheiro

    Bibliotecário e pesquisador, militante do livro e leitura, doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC)

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    Esse tal de orçamento secreto

    Essa centralização de recursos nas mãos de parlamentares é mais do que um problema técnico; é um golpe político contra a democracia

    Plenário da Câmara dos Deputados (Foto: Adriano Machado /Reuters)

    O orçamento secreto não surgiu do nada. Ele tem raízes profundas na história política brasileira, e entender essa gênese é essencial para compreendermos como chegamos aqui. Vou tentar fazer um resumo.

    Durante a ditadura militar (1964-1985), o orçamento público foi centralizado no Executivo, que usava os recursos como instrumento de controle político. Nesse período, o Congresso tinha um papel meramente decorativo, quando tinha algum papel. Sem espaço para debate ou participação popular, o orçamento era moldado para atender às prioridades do regime autoritário.

    Com a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, o cenário começou a mudar. O orçamento foi devolvido ao debate público, e o Legislativo ganhou força para atuar na sua formulação. Essa conquista refletia o desejo de construir uma democracia participativa, mas também trouxe contradições. As emendas parlamentares, que deveriam servir para ajustar prioridades regionais, começaram a ser usadas como moeda de troca entre Executivo e Legislativo. Esse padrão ficou especialmente evidente nos governos de Fernando Henrique Cardoso, quando o presidencialismo de coalizão consolidou práticas de barganha orçamentária.

    Nos governos Lula (2003-2010), houve uma tentativa de equilibrar essas práticas, ampliando investimentos em programas sociais e descentralizando recursos com foco em atender as regiões mais carentes. Contudo, o presidencialismo de coalizão continuou a exigir concessões. Mesmo com avanços na inclusão social e no fortalecimento de programas como o Bolsa Família, as emendas parlamentares permaneceram como peça-chave nas negociações com o Congresso. O "toma lá, dá cá" seguiu sendo um traço do sistema político brasileiro, o que manteve latente o modelo que se aprofundaria nas gestões seguintes.

    Foi nesse caldo de negociações que Eduardo Cunha, durante sua presidência na Câmara (2015-2016), elevou as trocas políticas para um novo patamar. Aproveitando a fragilidade do Executivo no contexto da crise política e do impeachment de Dilma Rousseff, Cunha criou mecanismos que fortaleceram o Congresso na manipulação de recursos públicos. Ele pavimentou o caminho para que parlamentares usassem o orçamento como ferramenta de autopreservação política, preparando o terreno para o modelo que se expandiria anos depois sob Bolsonaro.

    Quando Bolsonaro assumiu a Presidência, encontrou um sistema já estruturado e pronto para ser explorado. Mas o diferencial de sua gestão foi a inoperância administrativa: incapaz de formular políticas públicas consistentes e de articular um projeto nacional, Bolsonaro terceirizou o controle do orçamento para o Congresso. Foi nesse contexto que Arthur Lira, como presidente da Câmara, se tornou peça-chave na consolidação do orçamento secreto. Sob sua liderança, o mecanismo atingiu o ápice, permitindo que parlamentares de perfil conservador decidissem, sem transparência, sobre bilhões de reais. Enquanto isso, ideias como o orçamento participativo, que já tinham florescido em experiências progressistas como Porto Alegre nos anos 1990, foram abandonadas.

    Essa centralização de recursos nas mãos de parlamentares é mais do que um problema técnico; é um golpe político contra a democracia. O orçamento secreto não apenas consolida o poder do Congresso sobre o Executivo, mas também garante a perpetuação de um perfil político. Com bilhões sendo canalizados para suas bases eleitorais sem qualquer escrutínio público, parlamentares conservadores asseguram sua reeleição continuamente. Esse ciclo não apenas impede a renovação política, mas fortalece uma estrutura excludente que alimenta privilégios e bloqueia qualquer tentativa de democratização.

    Essa disputa pelo controle do orçamento reflete algo maior: o embate entre dois projetos de país. De um lado, um governo progressista que tenta resgatar a centralidade do Estado para reduzir desigualdades e promover justiça social. De outro, um Congresso dominado por forças conservadoras, que usa o orçamento como arma para manter uma estrutura política elitista e inerte. Essa luta não é nova. Historicamente, sempre que avançamos democraticamente, seja na redemocratização, seja com a ampliação de direitos sociais, a participação popular foi o motor das mudanças.

    Hoje, vivemos o desafio de romper com um ciclo que nos empurra de volta às sombras da ditadura e do fisiologismo político. O orçamento secreto é o reflexo de uma estrutura que resiste a abrir espaço para uma gestão pública verdadeiramente democrática. Mais do que expor as emendas do relator, é hora de resgatar a ideia de que o dinheiro público deve servir ao interesse coletivo. O Brasil precisa de um orçamento transparente, inclusivo e, principalmente, participativo – uma palavra muitas vezes esquecida até mesmo pelos governos progressistas.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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