Estará o destino do Brasil por uma canetada?
A canetada em questão é declarar inidôneas as empreiteiras corruptoras da Petrobras, e assim suspender todos os seus demais contratos pagos com dinheiro público
A canetada em questão é declarar inidôneas as empreiteiras corruptoras da Petrobras, e assim suspender todos os seus demais contratos pagos com dinheiro público.
Uma vez que no Brasil essas empresas respondem pela quase totalidade das obras públicas de vulto, declará-las inidôneas significa desorganizar, em alguma medida e por algum tempo, a economia do país, acarretando preços a serem pagos tanto a curto (desemprego) quanto a médio prazo (crescimento).
Ninguém, em sã consciência, deseja algo assim. Mas, e quanto ao preço do descrédito nas instituições (sim, ainda não chegamos ao fundo do poço) como consequência das ações e pressões dos agentes do Estado para salvar as empreiteiras?
E se de todo modo elas forem declaradas inidôneas? Pode-se adotar medidas que atenuem o impacto? Pode-se procurar chegar a algum benefício em meio aos prejuízos?
Procurar responder tais perguntas de forma intelectualmente honesta (o propósito deste artigo é contribuir para isso) seria do mais alto interesse nacional. Não é o que vem ocorrendo, infelizmente. Tem-se abusado da expressão “parar o país”, não apenas simplista mas de óbvio impacto psicológico. Com que intuitos? Alertar a opinião pública, ou amedrontá-la?
Encarar a Realidade
Por mais que se deseje que a economia não padeça nenhuma desorganização, recusar admitir a hipótese de que isso aconteça não deveria ser uma opção. Vejamos: quase todo o dinheiro para obras públicas (da União, estados e municípios) encontra-se contratado às empreiteiras investigadas. Quase todo ele embute superfaturamento (ninguém carece de mais revelações como as da operação Lava-jato para estar seguro disso). Não é à toa que, a partir dos indícios já constatados com base na Lava-jato, a Polícia Federal afirmou já estar se preparando para abrir noventa e cinco novos inquéritos, que demandarão, no mínimo, quinze novas operações...
Uma obviedade até aqui despercebida vai-se revelando: a partir do momento em que as empreiteiras forem declaradas inidôneas, elimina-se a totalidade desses superfaturamentos (porque cancelam-se todos os contratos em vigor). Vai-se tornando cada vez mais evidente que salvaguardar os contratos significa salvaguardar também o status quo histórico da corrupção.
A pergunta de um zilhão de reais é: o que a sociedade iria preferir? Pagar o preço (conjuntural) de uma desorganização da economia, ou pagar o preço (estrutural) de se preservar o status quo da corrupção no país?
É claro que a maioria das pessoas não dispõe de uma noção prévia acerca dos sacrifícios a serem incorridos no caso de uma desorganização da economia, logo, o mais correto seria o Estado dirigir-se às pessoas com franqueza e transparência. Winston Churchill, em seu primeiro discurso após ter sido nomeado primeiro-ministro para comandar a guerra contra o nazismo, anunciou aos britânicos que nada lhes prometia além de sangue, suor e lágrimas. Não poderia a luta do país contra a corrupção ser considerada também uma guerra (que atravessa séculos: o primeiro tratado sobre a corrupção no Brasil, A Arte de Furtar, foi escrito pelo padre Antonio Vieira no ano de 1652), impondo sacrifícios a serem padecidos como em qualquer guerra de verdade? Quanto mais as pessoas forem respaldadas como cidadãos em vez de tuteladas como se incapazes fossem, mais elas se predisporão a serem chamadas a dividir responsabilidades.
No que se refere à magnitude da desorganização da economia, quem pode de antemão afirmar que será mesmo catastrófica? Em função das ações (preventivas e corretivas) que viermos a adotar desde logo, porque não poderá haver no fim das contas meramente um freio de arrumação (coisa que um economista chamaria de destruição criativa)?
Rompendo o Círculo Vicioso
Façamos agora uma suposição, e digamos que a nossa expectativa seja a de que as empreiteiras acabarão mesmo declaradas inidôneas. Apresenta-se a seguir então um livre exercício de imaginação, no intuito de mostrar que um futuro do qual só se consegue sentir medo pode acabar por se revelar não apenas palatável como também portador de benefícios surpreendentes.
Um benefício óbvio para o governo será assumir o protagonismo na luta conta a corrupção, pois um esforço para salvar as empreiteiras seria uma versão abrasileirada do “too big to fail” dos EUA em 2008 (aqui no Brasil poderia ser chamado “too big to jail”...), quando trilhões de dólares dos contribuintes americanos foram malversados para salvar bancos falidos. Promover algo assim aqui no Brasil seria passar uma mensagem negativa de complacência com a corrupção, quando se deve buscar justamente o oposto. Ou: se o governo perderá na economia (emprego, crescimento) ele ganhará na política (credibilidade).
Na economia, para que se perca menos, o lapso de tempo para a retomada das obras de infraestrutura deverá ser o menor possível. Isso requererá duas condições: 1) que novos contratos sejam firmados; e 2) que haja empreiteiras em condições de firmá-los. Examinemos ambas, a começar dos novos contratos.
Não seria interessante para todos os governos (também dos estados e municípios) que a recontratação das obras se desse da forma mais ágil e rápida possível? Ora, isso requer que o marco legal facilite as coisas. Só que o marco legal existente complica as coisas. Uma legislação simplificadora ainda terá que ser produzida.
Acontece que o Brasil acabará por exigir um novo marco legal por outro motivo, muito mais crítico: de nada terá valido cancelar contratos fraudulentos se for para substituí-los por novos contratos igualmente fraudulentos – tal qual um fumante que, após sobreviver a uma cirurgia para retirada de um câncer na garganta, continuasse a fumar. O sistema em vigor encontra-se flagrantemente falido: sofisticado, complexo e custosamente burocrático (cuja fiscalização é igualmente sofisticada, complexa e custosamente burocrática), ilusoriamente no propósito de coibir fraudes, ele acaba por inibir a livre concorrência privilegiando aquelas empresas especializadas não em prestar melhor os serviços, mas em vencer as licitações (especializadas em recursos, embargos, impugnações, liminares...), bem como favorece a que editais sejam de antemão redigidos nos termos mais convenientes à empresa que ao final se sagrará vencedora.
A confecção de um novo marco legal precisa começar pela definição das suas premissas. Proposta: simplicidade e transparência. Simplicidade para uma universalização, ao invés de restrição, do acesso; e transparência para permitir fiscalização por parte de todo e qualquer cidadão (o que reforça o requisito pela maior simplicidade possível). Se a simplicidade traz vulnerabilidade (lembrando que a complexidade não garantiu nada, muito pelo contrário), uma transparência a máxima possível, com empoderamento da sociedade bem como severidade na punição às fraudes que vierem a ser descobertas, pode ser o seu contrabalanço. A simplicidade virá ainda contribuir para reduzir a histórica ineficiência do Estado pelo seu desengessamento.
As definições para essa nova legislação devem ficar a cargo da sociedade, uma vez que os técnicos do governo, Congresso, TCU e CGU estão por demais impregnados do espírito da legislação atual e assim automaticamente a tomariam por referencial. Uma comissão composta de nomes inquestionáveis por sua credibilidade conferirá respaldo da sociedade ao modelo que vier a ser concebido. Pode parecer contraditório, acrescentar os tempos do trabalho de uma comissão aos já morosos (e conflituosos) tempos processuais do Congresso Nacional. No entanto, tudo o que o Congresso precisa para aprovar uma matéria em rito acelerado é de consenso, que poderá decorrer do endosso da sociedade ao anteprojeto produzido pela comissão (coisa que o governo, se autor da proposta fosse, não teria como angariar).
Uma vez que se almeja reduzir o lapso de tempo para retomada das obras e ainda substituir o marco legal vigente, não há tempo a perder. A tarefa de elaboração de um novo marco legal é para ser deslanchada de imediato, até porque o testemunho de que o marco existente fracassou já se encontra patente diante de todos. E que não se venha alegar que a Petrobras conta com um estatuto próprio para licitar ao largo da lei 8.666, pelo que o problema seria localizado (esse certamente será o discurso dos defensores do status quo: avançar para uma ainda maior complexidade, ao invés de para a simplificação). É de se perguntar: seremos todos obrigados a aguardar até que a operação Lava‑jato se desdobre às hidrelétricas, metrôs etc. (o que fatalmente acabará ocorrendo), para atestar aquilo que todo mundo já sabe? Se já há elementos mais que suficientes para declarar a inidoneidade das empreiteiras, fazê-lo logo poupará anos de trabalho da Polícia Federal, ministério público e judiciário (permitindo assistir outras prioridades).
Crise É Oportunidade
Alardeia-se que, privadas de seus contratos com o poder público e impedidas de celebrar novos, as empreiteiras irão falir. Isso é no mínimo uma meia-mentira, senão uma rematada mentira mesmo.
As empreiteiras, todas elas, recorrerão à “plasticidade acionária”. É evidente que falências haverá. Mas não será o patrimônio que irá falir, e sim apenas um (dentre muitos) CNPJ. As participações cruzadas serão redefinidas (os contadores terão bastante trabalho), e alguma outra razão social (preexistente ou criada) assumirá os negócios. Como todas são negócios familiares, o patrimônio (leia-se o poderio) permanecerá detido pelas mesmas pessoas físicas. Aos credores das massas falidas das pessoas jurídicas declaradas inidôneas não caberá sequer o maquinário pesado (guindastes etc.), posto que este em grande parte não foi comprado mas sim arrendado por leasing (fato que virá favorecer a retomada do ritmo das obras no país).
Poucos teriam sintetizado tal estado das coisas com tanta argúcia como Janio de Freitas: “[...] a perda da idoneidade é uma pena inócua para as grandes empreiteiras. Fusão, remodelação acionária, partilhamento, são muitas as maneiras de modificar a fisionomia. E, caso a pena incida sobre as pessoas de donos e dirigentes, o testa de ferro é uma instituição prática e vigorosa. A vida não é difícil para todos” (Folha de São Paulo, 20/11/2014).
Ainda Janio: “Nenhum dos cabeças do sistema de contratação de obras públicas por meio de corrupção foi alcançado pela operação Lava Jato [...] a exclusão não se deve a que o jato lançado pelos investigadores tenha orientação seletiva. ‘Executivos’ profissionais são postos nos altos cargos, até na presidência das empreiteiras, também ou sobretudo para arcar com os riscos de complicação pessoal e, no dia a dia, entrar com o rosto nas ações indecentes. É para dar essa fachada aos donos e acionistas majoritários, detentores do verdadeiro comando, que os ‘executivos’ têm as elevadas remunerações que os levam a ser audaciosos e arrogantes” (FSP, 14/12/2014).
Punir as empreiteiras não é necessariamente a mesma coisa que punir os corruptores. A sociedade precisará aceitar que a mais severa punição possível aos corruptores (afora a prisão de um ou outro mais imprevidente) consiste na perda da polpuda carteira de contratos superfaturados detida pelas suas (atuais) empresas, sem que isso no entanto os impeça de vir a constituir novas carteiras. Por isso mesmo é que a legislação tem que ser refeita – de nada adiantará cancelar contratos fraudulentos se for para substituí-los por novos contratos igualmente fraudulentos, já foi dito aqui.
Paradoxalmente, esse não é um quadro necessariamente ruim, pois o Brasil precisa de empreiteiras. A repaginação das atuais empreiteiras (sob novos CNPJs) afasta o risco de catástrofe que vem sendo falaciosamente alardeado. Agora, é fato que as empreiteiras encolherão de tamanho, o que abrirá uma gorda fatia de mercado que precisará ser preenchida a bem da retomada do país. Como de praxe, os alarmistas (nada desinteressados) trombeteiam o risco de uma desnacionalização, pela abertura do setor de serviços do país às empreiteiras americanas e europeias. Mas isso só ocorreria se o governo se omitir, pois tal vazio de mercado somente necessita dos incentivos adequados para ser naturalmente preenchido por empresas nacionais, uma vez que as condições para tanto não poderiam ser mais favoráveis:
– Haverá abundância de demanda, ou seja, de mercado (já que a maioria dos contratos em vigor terá sido encerrada);
– A concorrência se dará em justa medida, porque as grandes empreiteiras terão encolhido e ainda estarão se reestruturando, além do que a instauração de um novo marco legal restringirá os riscos de cartelização; e
– Haverá abundância da disponibilidade, no mercado de trabalho, daquele que é o ativo mais valioso de qualquer empreiteira: os engenheiros e técnicos especializados, tarimbados por anos de experiência, dispensados pelas empreiteiras declaradas inidôneas em busca de se recompor.
Este último ponto representa um diferencial ímpar. Pode-se dizer que montar uma nova empreiteira, a partir do zero, sairá praticamente de graça, pois bastará atrair no mercado os engenheiros dispensados e começar a pagar os seus salários. Aqueles que vierem a obter proveito da disponibilidade repentina e maciça, no mercado de trabalho, de uma mão-de-obra altamente especializada, qualificada e valiosa, terão se beneficiado de uma circunstância histórica causada não por qualquer interferência indevida do Estado mas pelas próprias empreiteiras, como consequência dos seus malfeitos.
É claro que caberá ao governo atuar para que esse vazio seja preenchido no melhor interesse nacional (leia-se, por reais empreendedores ao invés de oportunistas de ocasião). Seguem quatro propostas, como contribuição:
1.) O BNDES subsidiará, por meio de financiamento abundante e barato, as inúmeras pequenas e médias empreiteiras que existem no Brasil (muitas das quais já atuam nas principais obras, como subcontratadas das grandes), para que cresçam pela absorção dos engenheiros e técnicos disponíveis no mercado.
2.) Em paralelo, o BNDES cria um programa de incentivo à constituição de novas empreiteiras (novamente, por financiamento barato e abundante), uma vez que muitos desses engenheiros, em especial os sêniores, terão vontade e capacidade de se associar entre si para fundar a própria empresa.
3.) O governo deve estimular a que empresas tanto públicas (por exemplo a Petrobras) quanto privadas (por exemplo a Vale) que são clientes habituais dos serviços das empreiteiras aproveitem a oportunidade para se verticalizar, constituindo áreas de engenharia próprias (afinal elas já dispõem de setores internos de especificação de projetos, de contratação de fornecedores e de acompanhamento e fiscalização de obras) no propósito da retenção, no país e na profissão, dos engenheiros que tiverem sido dispensados, mão-de-obra estratégica que o Brasil não pode perder. Nesse sentido, à maior absorção deve corresponder o maior estímulo (por exemplo pela desoneração dos respectivos encargos trabalhistas).
4.) Poderia ser promovida, de forma seletiva, uma abertura do mercado de serviços às empreiteiras estrangeiras, exclusivamente para setores socialmente prioritários em que uma redução dos custos seja crucial para estados e municípios (saneamento básico é o caso mais flagrante; outra possibilidade seria mobilidade urbana).
O saldo final de todo esse processo será um Brasil em que haverá dezenas ou mesmo centenas de empreiteiras compondo um mercado de livre concorrência, em lugar da atual situação cartelizada por umas poucas empresas contumazmente corruptoras. O futuro do país agradece.
A Natureza do Estado Brasileiro
No Brasil, o Estado é fruto histórico de um matrimônio indissolúvel entre o poder político-administrativo e o poder econômico, e sua razão de existir é atender antes de tudo a tais interesses particulares, não aos interesses maiores da sociedade.
Tal condição não é exclusiva nossa, afinal não existe no mundo nenhum Estado que não esteja sob crítica da sua respectiva sociedade. Mas o Estado brasileiro é sui generis, um tipo singular, segundo a tese que Raymundo Faoro nos legou em seu clássico Os Donos do Poder.
Vale uma digressão para apresentar o argumento de Faoro: no feudalismo, a classe dominante é tipicamente composta pelo rei, pelos senhores feudais e pelo clero, com tensões entre si na partilha do poder. Com o mercantilismo adveio também a burguesia, acumuladora de riqueza contudo ainda excluída desse condomínio. O Estado moderno surge então, especialmente após a Revolução Francesa, como uma reordenação dessas forças, sob predomínio da burguesia e declínio das demais. Portugal, porém, ao contrário dos demais países europeus, não teve feudalismo (porque já no século XIV o rei esmagara militarmente os senhores feudais e domesticara o clero). Para dar conta de administrar o reino sem os senhores feudais, o rei contratou um aparato burocrático de funcionários convidados por afinidade, que logo adquiriu vida própria e se pôs a controlar (e parasitar) toda a atividade econômica do reino, com base em um sem número de normas escritas (códigos, proclames do rei etc.) numa hiper-regulação.
A partir das grandes navegações, com os descobrimentos e a colonização, esse aparato burocrático expandiu-se e, quanto maior, mais benfeitor de si próprio, mais apropriador da vida econômica e mais opressor da vida em geral. A burguesia nascente, para conseguir prosperar, aprendeu a com ele se consorciar pela via da troca de favores e privilégios e da corrupção, compondo uma sociedade em que quem tinha posses era gente, quem não tinha era ralé e abaixo desses os escravos. Como um tal sistema é entrópico (necessita sempre sugar mais e mais recursos para se manter) ele somente pôde perdurar graças aos sucessivos booms econômicos de que Portugal se locupletou (as especiarias da Ásia, o açúcar do Nordeste, o ouro das Gerais).
À época da independência do Brasil, consolidava-se o Estado moderno em países como França, Inglaterra e Estados Unidos e assim se quis de algum modo copiá-los. Contudo, o tipo de Estado que aqui se formou não foi, como naqueles países, uma afirmação da burguesia mercantil (e já também industrial) em superação ao absolutismo do rei e à aristocracia, mas antes uma reafirmação do velho consórcio entre os agentes político-administrativos e os agentes econômicos, para continuidade da espoliação das riquezas do país (adveio em seguida o ciclo do café). Da tese de Faoro se apreende o porquê de o Brasil, apesar de imensamente rico, não ter até hoje conseguido deslanchar.
O que não quer dizer que o Estado brasileiro não venha, aos poucos, se voltando em direção à sociedade. A partir de 1930 houve progressos alternados com retrocessos até que, como fruto das lutas pelo fim da ditadura e pela redemocratização do país, a Constituição de 88 veio instituir um modelo híbrido: se por um lado conserva o caráter do Estado como instrumento dos poderosos, por outro vem abrir brechas de cidadania.
Como exemplo do conservadorismo, a CF88 tem como cláusula pétrea (ou seja, algo que jamais poderá ser revogado, nem mesmo pelo mecanismo de emenda constitucional de três quintos da Câmara e do Senado, duas vezes cada um) os chamados direitos adquiridos, e assim eterniza inumeráveis privilégios. Como apenas um exemplo, a previdência social são na verdade dois planos de benefícios completamente distintos (que em comum têm apenas a fonte dos recursos, o tesouro) conforme o quilate do aposentado: o regime próprio para os servidores públicos e o regime geral para o restante da população (denominações que são sintomáticas).
Como exemplo dos avanços, a obrigatoriedade do ingresso no serviço público por meio de concurso (ainda que no judiciário os concursos sejam em vários estados meramente pro forma, para legitimar os apadrinhados). Ainda mais significativo, as tão combatidas políticas de redução das desigualdades dos governos do PT nada mais são que o cumprimento de obrigações impostas pela Constituição:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; (...)
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
Foi contudo graças à criação pela CF88 de um ministério público com liberdade para atuar em defesa da sociedade que as maiores empreiteiras do país encontram-se em vias de ser finalmente punidas pelos seus malfeitos.
O Papel de cada um
Raymundo Faoro nos destrinchou a presunção do Estado em tutelar a sociedade: no Brasil, historicamente, e sempre em nome do suposto interesse nacional maior, vicejaram e foram salvaguardados interesses particulares menores de todo tipo.
Pois não tem sido diferente no caso atual. Declarar as empreiteiras inidôneas é algo que vem sendo tomado pelos agentes do Estado na qualidade não de uma disposição da Lei, mas de uma escolha discricionária. Ou seja, estaria na alçada do Estado, em nome do sempre invocado interesse nacional maior (“não parar o país”), a prerrogativa de livrá-las de serem declaradas inidôneas.
Que o governo aja assim é até esperado, conhecida sua obstinação em defender os níveis de emprego e perseguir o crescimento. Ao que parece, não sem constrangimentos: dispensado de fazê‑lo (uma vez que todos os ministros foram instados a escrever cartas colocando seus cargos à disposição), o ministro da CGU Jorge Hage (o mesmo que em 2012 não hesitara em declarar inidônea a Construtora Delta) fez questão, à la Marta Suplicy, de anunciar o seu pedido de demissão.
Mas mesmo o ministério público parece ter assimilado enquanto uma verdade axiomática a tese do “interesse nacional maior”. Em entrevista coletiva a 11 de dezembro,[1] o procurador à testa da força‑tarefa para as investigações da operação Lava-jato, Deltan Dallagnol, iniciou um raciocínio desnudando de forma cortante e certeira o coração do problema (grifos meus): “existem indicativos de que essas empresas não só corromperam Petrobras mas estão envolvidas em corrupção com outros órgãos públicos. O único jeito de estancar esse esquema criminoso seria paralisar todos os contratos com todos os órgãos públicos, administração municipal, estadual e federal” (coisa que é automaticamente alcançada ao se declarar inidôneas as empreiteiras)...
... para, na complementação do raciocínio, assumir de forma aberta aquilo que seus pares em entidades como o TCU ou a CGU vêm pregando de forma velada. Dizia ele, “o único jeito de estancar esse esquema criminoso seria paralisar todos os contratos com todos os órgãos públicos, administração municipal, estadual e federal, o que é inviável porque prejudicaria de sobremaneira a população. A única saída, descartada essa primeira, é a prisão dos envolvidos para que o esquema não se perpetue”. Não desmerecendo o laborioso e imprescindível trabalho do ministério público, se procurou ponderar que a prisão “dos envolvidos” não alcançará os verdadeiros corruptores nem os privará de seus meios de corromper.
Numa paradoxal inversão de papéis, foi do advogado de defesa de várias empreiteiras Antonio Carlos de Almeida Castro (o “Kakay”) que se ouviu: “Dentro da normalidade, você teria de declarar essas empresas inidôneas”.
Ativistas progressistas vêm também reforçar a tese conservadora. Luis Nassif defendeu como pena para as empreiteiras “que seus dirigentes sejam penalizados, multados, até o limite da perda de controle das companhias, se for o caso. Mas é importante a preservação de sua capacidade operacional, para que a atividade econômica não seja mais penalizada ainda” (portais GGN, “O desafio de punir dirigentes e poupar empresas”, e Carta Maior, “Punir a corrupção, não a Nação”, ambos em 23/12/2014; grifos meus).
A intenção é louvável, mas, como se poderia impor aos donos (não os “dirigentes”, mas os acionistas majoritários) a perda do controle das suas companhias? Não há nada na legislação que dê abrigo a uma captura (confisco) por parte do Estado do capital acionário de uma empresa, a menos que se queira dar razão àqueles que comparam o Brasil à Venezuela. O que a Lei dispõe é que pessoas, sejam físicas ou jurídicas, são responsabilizáveis pelos seus atos.
Em uma nova abordagem, os defensores do status quo agora alarmam que a inidoneidade das empreiteiras coloca em risco todo o sistema bancário. Nada porém justifica a desfaçatez de terem divulgado uma cifra estratosférica (cento e trinta bilhões de reais) que, ardilosamente, embaralha alhos (a dívida das empreiteiras, que tende a não ser paga) com bugalhos (a dívida da Petrobras, empresa que obviamente não será declarada inidônea), sem sequer discriminar a proporção de cada uma. Ainda que se admita tal risco como real, um discurso assim visa paralisar o discernimento e a reflexão – visa paralisar a sociedade, de modo a que o Estado (como de hábito) possa sozinho resolver o que seja “melhor” para ela.
Quanto ao risco inverso, o das empreiteiras serem salvas, ninguém parece se afligir. Há porém no Brasil milhares de pequenas e médias empresas que por muito menos foram declaradas inidôneas (por alguma inconsistência documental, por exemplo). Se o instrumento da inidoneidade for desautorizado haverá insegurança jurídica, já que essas empresas acionarão o Estado alegando isonomia (a Lei não poderá ser uma para as empreiteiras e outra para os demais) e os juízes de primeira instância, que mais prezam as coerências jurídico-legais do que os imperativos políticos, tenderão a lhes dar ganho de causa gerando repercussões que podem arrastar-se por décadas, com judicialização das licitações e mesmo da execução dos contratos nos casos de litígio (afora os pleitos por reparações).
Ainda outra nova abordagem consistiria numa invenção normativa, a figura do “acordo de leniência”, pelo qual as empreiteiras deixariam de ser declaradas inidôneas em troca da devolução dos valores malversados e da colaboração com as investigações. Ora, tal figura seria uma sobreposição no âmbito do executivo – portanto algo redundante – a figura idêntica preexistente no campo do judiciário, que é precisamente a delação premiada. A redundância serviria então para salvar as aparências.
Mas, digamos que as empreiteiras acabem afinal declaradas inidôneas (ou seja, que os agentes do Estado se vejam obrigados a fazer isso, mesmo contra sua vontade). O preço da tão temida “paralisação do país” terá então que ser pago de qualquer modo, só que nesse meio tempo (quanto tempo? meses? anos?) outros preços adicionais já estarão também sendo pagos, elevando em muito o valor total da fatura: tempo terá sido perdido (em que o país terá ficado em compasso de espera ao invés de cuidar logo de retomar o rumo), desgaste terá sido padecido (por todos os órgãos do Estado, mas em especial pelo governo), e se terá abdicado do protagonismo em combater a corrupção. Tudo isso, a troco de nada.
A sociedade bem sabe que a montanha de dinheiro desviada da Petrobras (foi até aqui contabilizada a propina, não o sobrepreço) é apenas a ponta de um novelo que, quanto mais for desfiado, mais irá mostrar.
E essa é apenas a corrupção em curso, não a pregressa. Em entrevista, Pedro Henrique Pedreira Campos, autor do livro Estranhas Catedrais sobre a corrupção durante a ditadura militar, relata que naquele período as empreiteiras tiveram acesso ao Estado sem intermediários, dado que o Congresso era meramente figurativo. Tampouco havia instâncias de fiscalização como as atuais, pelo que os casos de corrupção simplesmente não vinham à tona. A roubalheira era então muito maior do que hoje (FSP, “Empreiteira que soube usar a corrupção cresceu mais, diz historiador”, em 01/12/2014).
Um exemplo? O embaixador José Jobim, sem nenhuma ligação com organizações de esquerda, foi sequestrado, torturado e morto em 1979 porque havia levantado provas de que o superfaturamento na construção de Itaipu levou a um custo final dez vezes superior ao orçado. Atualizada a valores de hoje, aquela roubalheira de Itaipu supera muito provavelmente esta de agora.
Evitar que as empreiteiras sejam declaradas inidôneas pode até parecer, à primeira vista, a atitude mais sensata. Pode ser arriscado, porém, querer convencer a sociedade de que ainda mais investimento no vício da hiper-regulação (agora na forma de governança e compliance) herdado de nossos antepassados lusos fará idôneas empreiteiras acostumadas há décadas a não apenas subornar senadores, governadores e juízes, mas a fazê-los.
Não se deveria desconsiderar a magnitude do significado da Petrobras (e dos riscos de sua degradação) nos corações e mentes do povo brasileiro. Nem se deveria esquecer tão rapidamente que milhões de pessoas tomaram as ruas, espontaneamente, em junho de 2013. Tampouco se deveria ignorar os estados de espírito sinalizados pelo eleitorado em outubro de 2014. São sinais de que o Brasil ingressa numa mutação, sinais de um novo zeitgeist. Darcy Ribeiro avisou que esse tempo chegaria.
Conjecturar sobre o futuro é um exercício aberto. O que foi aqui exposto é apenas um caminho, dentre inúmeros outros, de construção do amanhã. Se quis apenas fazer lembrar que outros futuros são sempre possíveis, para além da obstinação em se agarrar às seguranças conquistadas no presente. E é claro que construir o futuro sonhado requer engenho e arte: talento. Provavelmente irá requerer também alguma dose de sorte. Ou seja, é incerto. Requer fundamentalmente, porém, algo que tem andado escasso: firmeza de propósitos, valores, determinação para fazer o correto e não apenas o que seja conveniente.
Vale então reiterar: nada do que foi proposto aqui teve a pretensão de fazer crer que não haverá perdas, ou que sacrifícios não precisarão ser feitos.
O Brasil sempre foi um país em que a riqueza e o bem-estar existem para ser apropriados por detentores de poderes econômicos em compadrio com detentores dos poderes de Estado (ter Paulo Maluf virado ficha-limpa foi apenas um evento recente). Transformar o Brasil num país em prol da totalidade da sua população não tem como ser um processo asséptico e indolor. Assim, mais que falar em perdas ou sacrifícios cabe entender que se trata de uma verdadeira travessia. O que está agora em jogo por meio das escolhas de alguns dos agentes do governo e do Estado é muito mais que o destino deles (governo e Estado), é o destino do Brasil enquanto nação, é a definição de que país iremos ser. Ser ou não ser esse Brasil, eis a questão. Uma nação que se faz senhora do seu próprio destino assume, conscientemente, que empreender a travessia custa preços a serem pagos.
Estará o destino do Brasil em risco por uma canetada? Os defensores do status quo dizem que sim, caso a canetada seja dada. Nós (me permito usar o plural) dizemos que sim, caso ela não seja.
[1] Ver http://globotv.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/t/todos-os-videos/v/procuradores-falam-da-importancia-de-que-os-envolvidos-em-esquema-continuem-presos/3825910/ ; a fala do procurador Dallagnol está a partir de 1’27”.
Agradecimento a Antonio Sales de Melo e Fabiano Barros da Rocha pela crítica e revisão deste artigo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com redacao@brasil247.com.br.
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: