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    Flávio Barbosa

    Cronista, psicanalista

    28 artigos

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    Eu só queria ser gente

    Uma mulher pobre, negra, mãe de uma prole famélica é criminalizada em seu desespero, humilhada, encarcerada por vários dias e meses sem que a sociedade (em grande parte) se comova e se mobilize a isso, infelizmente, é o normal

    (Foto: Divulgação)

    Uma mulher pobre, negra, moradora da periferia de um grande centro urbano brasileiro fora flagrada furtando uns miojos e refrigerantes em um grande Supermercado e imediatamente detida pelos seguranças da loja e em seguida levada à Delegacia da região e autuada em flagrante, por conseguinte presa.

    Essa mulher mãe de uma prole de cinco filhos menor de idade, maioria ainda criança, não tinha antecedentes criminais mais graves e alegou a despeito de seu flagrante que o fizera porque ela e seus cinco filhos menores estavam com fome, com muita fome, daí seu desespero. A soma de seu furto foi algo em torno de R$ 22,00 (vinte e dois reais), o que caracteriza um furto famélico, mas não foi assim que interpretou as autoridades policiais e judiciárias que lidaram com o caso, pois além de presa em flagrante, o juiz que despachou o seu processo diante de um pedido de soltura dessa mulher, ao contrário, ignorou a solicitação e a manteve presa. O caso foi ao STJ e o ministro que despachou considerou o caso irrelevante, conforme solicitação da defensoria pública, e, finalmente, expediu o documento de soltura dela. 

    Essa é mais uma cena da tragédia brasileira, a saber, a forma indócil e cínica como as autoridades desse país (muitas delas) ignoram a miséria do povo brasileiro, criminalizam o saque famélico que é um ato desesperado de quem tem fome e não dispõe imediatamente de recursos para se alimentar e isso em um país que é um dos maiores produtores de alimentos do mundo, e em uma sociedade onde a miséria e a fome não são simplesmente uma metáfora e uma lembrança distante e vencida, mas um fato real, crônico e histórico.

    Um país onde os banqueiros cobram juros escorchantes contra os correntistas e lucram astronomicamente e isso é normal. Que se faz rachadinhas com verbas públicas em gabinetes parlamentares municipais, estaduais e federal e isso é normal. Que se faz rachadonas com as compras de vacinas que salvaria vidas da epidemia da covid-19 e para a consecução dessa empresa se retarda por meses a compra de vacinas dos Laboratórios credenciados no mundo todo para buscar adquiri-las tempos depois, e com elevados ágios, em atravessadores que não têm qualquer relação oficial com os Laboratórios, portanto, nenhuma garantia de entrega do produto, e enquanto isso, centenas de milhares de pessoas morrem por falta de vacinação, e isso é normal. Que se faz negociatas com excedentes de energia da Itaipu binacional junto ao governo paraguaio a partir de figuras próximas e até consanguíneas do presidente brasileiro e isso é normal. Que se invade territórios indígenas e de proteção ambiental, desmatam as florestas protegidas por leis ambientais, contaminam rios com mercúrio para o garimpo ilegal, jogam o gado nas matas devastadas, expande-se clandestinamente fronteiras agrícolas do Agro é Pop! tocam fogo na flora e matam a fauna nativa, perseguem e assassinam indígenas e povos ribeirinhos e das florestas, líderes campesinos e sindicais, e isso é normal. Que se plantam soja e algodão em largos territórios agrícolas para se enriquecer com commodities no Mercado financeiro internacional enquanto o povo passa fome sem o feijão e o arroz e isso é normal. Que agrotóxicos altamente cancerígenos e causadores de outras doenças, proibidos em vários países, são aprovados em agências reguladoras, de boa, e a ministra da agricultura é mundialmente conhecida como a musa dos agrotóxicos, isso é normal. Que se armam esquemas no sistema de justiça lançando no lixo a Constituição Federal, as leis processuais e penais brasileiras como fora na Ação Penal 470, a do Mensalão do PT, e em seguida na Operação Lavajato, e isso é normal. Quese ganha eleições à base da difusão absurda de fakes News e financiamentos ilegais na cara de todos e isso é normal. Queum ex-vice-presidente e um ex-candidato à presidência do país, ambos golpistas de prima, ambos com longas trajetórias erráticas na política, ambos flagrados a partir de asseclas com malas de dinheiros de origem hedionda circulando de um lugar a outro, ambos solenemente intocáveis e impunes, mas isso é normal. Que a impunidade grampeia no andar do alto da sociedade quando autoridades costumam ser com essas personalidades perfumadas e cheirosas absolutamente dóceis e concessivos e isso é normal. Que castas do serviço público levam vida de nababos às custas dos cofres públicos e leis do teto de gastos, da responsabilidade fiscal, e isso é normal. Queoperações policiais invadem a qualquer hora do dia e da noite comunidades periféricas, favelas, bailes funks, atiram a esmo, matam crianças, jovens (em geral negros), pais, trabalhadores e trabalhadoras e isso é normal. Que decretos presidenciais facilitam a venda e a compra de armas em um país campeão mundial de mortes por armas de fogo, as milícias e outros grupos criminosos agradecem, e isso é normal. Que imensas faixas geográficas de grandes centros urbanos são dominados por milícias e pelo tráfico de drogas que mandam e desmandam à revelia do Estado e isso é normal. Que um ex-presidente da república é preso por 580 dias em uma cidade longe de seu domicílio e de sua família, e o pior, sem qualquer prova contra ele, apenas convicções, e isso é normal. Que a primeira mulher presidenta da república é deposta pelo Congresso Nacional com anuência da Suprema Corte sem qualquer embasamento político e jurídico minimamente consistente e isso é normal. Que um presidente em exercício da república conspira a todo instante contra as normas sanitárias em um momento que o país sofre a maior catástrofe sanitária de sua história com mais de 600 mil mortos e isso é normal. Quemédicos receitam medicamentos absolutamente inócuos e até com efeitos graves a pacientes vulneráveis para prevenção e tratamento de infecção epidemiológica grave com aval de conselhos de medicina, como o CFM, e isso é normal. Que mulheres são mortas por serem mulheres, negros são mortos por serem negros, homossexuais são agredidos e mortos por serem homossexuais, imigrantes pobres são agredidos nas vias públicas por serem imigrantes pobres, pessoas vestidas de blusas vermelhas correm riscos de sofrerem agressões na ágora por vestirem uma camisa vermelha e isso é normal. Que os milionários ficaram ainda mais milionários no período da pandemia quando os trabalhadores e os mais pobres ficaram sem empregos e ainda mais pobres e isso é normal. Que o ministro da economia e o presidente do Banco Central especulam com quantias milionárias em dólares nas Offshores em paraísos fiscais sempre que o dólar sobe no Brasil e o real desvaloriza, ou seja, todo santo dia, e isso é normal. Que a primeira-dama do país recebe em sua conta corrente bancária depósitos inexplicáveis de membros de milícias e isso é normal. Que o patrimônio da família presidencial cresce incrivelmente e sem a menor explicação racional e crível e isso é normal. Que esse mesmo presidente da república de família e modos tão esquisitos decreta que em seu governo a corrupção acabou e isso é o que ele diz, o normal (e ainda há quem acredite). Que na pátria verde e amarela do deus acima de todos, gângsteres sejam tratados como mito e genocidas como messias, e isso, pasmem, é normal.

    Que o normal... mas o que é o normal?

    Nesse país e nessa sociedade em que tudo isso descrito acima se dá, e muito mais! uma mulher pobre, negra, mãe de uma prole famélica é criminalizada em seu desespero, humilhada, encarcerada por vários dias e meses sem que a sociedade (em grande parte) se comova e se mobilize a isso, infelizmente, é o normal.

    Essa mulher, enfim, liberta – em termos – e ao deixar o cárcere disse aos repórteres que a entrevistaram que tudo o que queria na vida, tudo o que sonhava e desejava é “ser gente”.

    Supomos que o normal nesse país e em nossa sociedade é que milhões de brasileiras e brasileiros sequer ascenderam ao estatuto de gente, a saber, de existir como um ser humano. E por isso pagam duramente por ousar, minimamente, se parecer a um ser humano, querer ser gente.

    Triste trópico!

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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