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    Gilberto Lopes

    Jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor, entre outros livros, de Crisis política del mundo moderno (Uruk).

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    EUA e Venezuela

    "A interferência desmedida de Washington rarefaz o ar político na América Latina"

    Joe Biden e Nicolás Maduro (Foto: Reuters)

    Do A Terra É Redonda

    As expectativas eram enormes. Parecia que a oposição venezuelana, organizada em torno de María Corina Machado, representava agora uma ameaça real para o presidente Nicolás Maduro.

    A oposição acreditava que sua vantagem nas eleições de 28 de julho era tão grande que Nicolás Maduro não poderia falsificar os resultados, sobretudo diante da Casa Branca, que acompanhava de perto o processo e com quem a oposição negociava a eventual renovação das sanções econômicas aplicadas ao país há mais de uma década, e da pressão internacional, caso sua vitória não se confirmasse.

    Para os correspondentes do diário espanhol El País em Bogotá e Caracas, Nicolás Maduro chegou às eleições muito desgastado pela crise econômica. O diário mexicano La Jornada, num editorial no dia seguinte às eleições, referia-se a essas sanções de Washington contra a Venezuela. Mas o fez num tom diferente. Apelava à oposição para que se alinhasse com os interesses nacionais para “exigir de Washington o levantamento imediato e incondicional do bloqueio comercial e financeiro” que, em sua opinião, era “a principal causa das carências sofridas pela população”.

    Uma das consequências disso é a migração forçada de cerca de sete milhões de venezuelanos, que se dirigem para os países vizinhos em busca de melhores condições de vida. “Nenhuma medida governamental resolverá as dificuldades de milhões de venezuelanos enquanto o imperialismo estadunidense impedir Caracas de obter divisas e de adquirir todo tipo de bens, incluindo alimentos e medicamentos”, afirmava o editorial do La Jornada.

    Uma semana após as eleições, quando os Estados Unidos já tinham reconhecido a vitória do oposicionista Edmundo González, Manuel Domingos Neto, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED), Roberto Amaral, ex-ministro da Ciência e Tecnologia, e o ex-deputado e ex-presidente do PT, José Genoíno, lembraram o cenário da disputa: “um país que detém as maiores reservas de petróleo do mundo, que se projeta sobre o Atlântico e o Pacífico, e é a porta de entrada para a Amazônia”.

    Arrogância desmedida

    Atribuindo-se os poderes da mesa eleitoral, o secretário de estado Antonhy Blinken declarou “concluídas as eleições na Venezuela e proclamou eleito Edmundo González”. Para os três políticos brasileiros, esta “arrogância desmedida” acaba alertando os latino-americanos contra a “profissão de fé democrática dos candidatos que são os donos do mundo”. Estavam falando, naturalmente, dos Estados Unidos.

    Washington tem sido um ator importante no cenário político venezuelano, país ao qual impôs as mais variadas sanções econômicas. Os efeitos devastadores destas sanções foram objeto de vários estudos, incluindo o de Mark Weisbrot, codiretor do Center for Economic and Policy Research, e Jeffrey Sachs, diretor do Center for Sustainable Development da Universidade de Columbia, publicado em maio de 2019 (o estudo pode ser consultado aqui).

    O estudo analisa alguns dos impactos mais importantes das sanções econômicas impostas à Venezuela pelo governo dos Estados Unidos de agosto de 2017 a 2019. As sanções, dizem Weisbrot e Sachs, “reduziram a ingestão calórica da população, aumentaram as doenças e a mortalidade (tanto para adultos como para crianças) e deslocaram milhões de venezuelanos, que fugiram do país devido à depressão econômica e à hiperinflação”. Estas sanções “infligiram danos muito graves à vida e à saúde humanas, incluindo mais de 40 mil mortes entre 2017 e 2018”, acrescentam.

    Em janeiro de 2019, Washington e seus aliados reconheceram o líder da oposição Juan Guaidó como presidente da Venezuela e renovaram as sanções contra o país, confiscando os recursos petrolíferos venezuelanos no estrangeiro e o ouro depositado no Banco da Inglaterra.

    Sanções que têm sido comuns na política dos Estados Unidos em relação à Venezuela nas três últimas administrações norte-americanas. As primeiras, impostas por Barack Obama, intensificaram-se sob a administração de Donald Trump, que impôs restrições às operações comerciais entre empresas e cidadãos norte-americanos e o governo venezuelano. Em 2019, foi suspensa a compra de petróleo, ampliando as sanções às instituições de países terceiros que prestam apoio financeiro à Venezuela.

    Submetida a tais pressões, que foram renovadas na administração de Joe Biden, a economia da Venezuela continua enfrentando severas restrições. Joe Biden, que tinha levantado algumas dessas sanções, renovou-as nas vésperas das eleições. A partir de 31 de maio, todas as empresas estrangeiras deviam cessar a produção e exportação de petróleo e gás venezuelanos. Para poderem fazer negócios com a empresa petrolífera estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA), tiveram que solicitar ao Tesouro norte-americano autorizações individuais, que são avaliadas caso a caso.

    Como realizar eleições livres sob sanções?

    Eleições livres podem ser realizadas nestas condições? Como Madeleine Albright, secretária de estado norte-americana durante a segunda administração Clinton (1997-2001), explicou a seus estudantes em seu livro sobre o fascismo, “o principal objetivo da política externa é convencer os outros países a fazerem o que queremos que eles façam. Para isso”, acrescentou, “dispomos de diversos meios, desde uma solicitação educada até o envio dos fuzileiros”.

    O envio dos fuzileiros tornou-se inviável, como reconheceu esta semana a general Laura Richardson, chefe do Comando Sul dos Estados Unidos. Mas as sanções nunca foram tão populares em Washington e nas Nações Unidas, como afirmou a revista Foreign Policy numa série de artigos sobre o assunto, publicados em dezembro de 2021. Transformadas num “garrote diplomático e econômico vital para chamar à razão os governos recalcitrantes”, os Estados Unidos duplicaram a aposta, multiplicando a utilização das sanções como arma política.

    Em 2012, o Congresso aprovou a Lei Magnitsky, para sancionar qualquer pessoa que Washington considerasse ser um violador dos direitos humanos ou corrupto. Quatro anos depois, estendeu o alcance da lei a todo o mundo, aprovando a Lei Global Magnitsky. O objetivo da lei, dizem os comentadores da Foreign Policy, não era mudar o comportamento dos sancionados, mas desmantelar a rede financeira que os sustenta. Naturalmente, a definição dos inimigos responde aos critérios políticos de Washington.

    O caso de Cuba é o exemplo mais antigo e mais dramático dos efeitos destas medidas. Isto não quer dizer que o governo não cometa erros, mas sua margem de manobra é praticamente nula, dada a severidade das sanções, impostas há mais de 60 anos e que, atualmente, contam com a oposição quase unânime da Assembleia Geral da ONU. Os Estados Unidos nunca deram importância a estas votações. Não fazem parte das regras de seu mundo.

    Submetidos a sanções devastadoras, essa vida política torna-se impossível no “quintal” dos Estados Unidos, apoiada pelos representantes locais desses interesses. Qualquer tentativa de derrubar as cercas do “quintal” tem sido enfrentada com o leque de armas descrito por Albright.

    Qual é o resultado desta política?

    Com outras características, esta política repete-se na Venezuela, com os efeitos descritos por Weisbrot e Sachs. A menos que o governo esteja alinhado com os interesses de Washington, a intervenção norte-americana, exercida pelo governo ou por suas ONGs, desequilibra o cenário, inclina a balança para um determinado setor da sociedade, impossibilitando que o peso de cada um se reflita livremente nos resultados eleitorais.

    Vejam a situação na Nicarágua. Vamos às eleições de 1990. Eu estava lá. Foi imposta depois de uma guerra organizada e financiada por Washington que impossibilitou qualquer esforço de administração do país que, no meio do conflito, não tinha possibilidade de garantir a vida de seus cidadãos. Menos ainda a perspectiva de um desenvolvimento econômico e social. Nada! A guerra consumia tudo. Como se isso não bastasse, com a ameaça de que, no caso de uma eventual vitória sandinista, Washington continuaria promovendo essa guerra.

    É neste contexto que se realizaram as eleições. Era possível, portanto, realizar eleições livres? Os nicaraguenses podiam expressar livremente sua vontade?

    A oposição ganhou, mas a vida política do país não pôde retornar a um curso “normal”, em que os diferentes pontos de vista se expressem em igualdade de condições. Houve uma sucessão de governos apoiados por Washington: Violeta Chamorro, Bolaños, Alemán; o aberrante pacto Ortega-Alemán, enquanto o sistema político se dissolvia, até chegar aos extremos atuais.

    A tentativa de uma “revolução colorida” em abril de 2018, confrontada com armas pelo governo, extraiu todo o oxigênio da bolha política, e hoje nada sobrevive nela. Não há vida no cenário político da Nicarágua.

    Em janeiro de 2018, os contratantes da USAID apresentaram o relatório final de um projeto de cinco anos (abril de 2013 a fevereiro de 2018) sobre “Capacitação para a Defesa da Sociedade Civil”. Um dos objetivos do projeto era “desenvolver as capacidades da USAID/Nicarágua para que as organizações-chave/alvo, muitas das quais recebem apoio através de outras atividades de democracia e governabilidade financiadas pela USAID, possam alcançar melhor os objetivos do programa mutuamente acordados”.

    Visavam também “reforçar a capacidade das organizações da sociedade civil e dos indivíduos para coordenarem-se cada vez mais e estabelecerem redes entre si, com o setor privado e com os meios de comunicação, para promover a conscientização, a defesa e o ativismo”, iniciativas que “atingiram diretamente mais de 3.599 nicaraguenses” (o relatório pode ser consultado aqui).

    Não aprendemos nada com todas estas experiências?

    É possível explicar estes cenários sem a intervenção de Washington? É fácil imaginar os efeitos que projetos desta natureza têm num país pequeno e pobre como a Nicarágua e como afetam seu desenvolvimento político. E é difícil imaginar que a tentativa de “rebelião colorida” de abril não tenha nada a ver com estes projetos.

    Que oxigênio pode haver para alimentar a vida na bolha política submetida a estes instrumentos? Que espaço deixa para o desenvolvimento livre da política nacional? É o instrumento com que se extrai todo o oxigênio dessa bolha política nos países latino-americanos quando forças transformadoras, não alinhadas com os interesses de Washington, aspiram a conduzir os destinos de uma nação.

    A América Latina produz mais de um terço do lítio mundial e possui importantes jazidas de cobalto, manganês, níquel, terras raras e outros minerais, lembrou Shannon K. O’Neil, vice-presidente de estudos e membro sênior para os estudos latino-americanos do Council on Foreign Relations, num artigo sobre as “grandes oportunidades na América Latina”. Na Venezuela, estão em jogo enormes recursos petrolíferos e minerais. A disputa eleitoral ocorre também no contexto de uma importante reacomodação das potências mundiais.

    “Se é verdadeira a ideia de que a geopolítica está se tornando uma disputa entre autoritarismo e democracia, a América Latina está claramente do lado dos Estados Unidos e do Ocidente. Apesar da pobreza, da desigualdade, da violência e do enfraquecimento do Estado de direito, há mais pessoas que escolhem viver sob um governo democrático do que nas sociedades europeias e norte-americanas”, acrescentou Shannon K.O’Neil.

    Assim, na segunda-feira, menos de 24 horas após o fechamento das urnas, o secretário de estado Antony Blinken manifestou, em Tóquio, onde se encontrava, “sérias preocupações” em relação aos resultados anunciados na Venezuela.

    Por sua vez, o presidente chileno, Gabriel Boric, afirmou que os resultados publicados pela autoridade eleitoral venezuelana “são difíceis de acreditar”. O caso do presidente chileno é particularmente notável. Sua política externa coincide frequentemente, como no caso da Venezuela, com a dos representantes dos governos de direita historicamente responsáveis pelas maiores violações dos direitos humanos na região. Faz isso, naturalmente, em nome da defesa irrestrita dos direitos humanos.

    O ex-presidente da Costa Rica, Oscar Arias, apelou a um golpe de Estado. No mesmo domingo, 28 de julho, publicou no Facebook: “Senhor Vladimir Padrino, ministro da defesa da Venezuela, como cidadão de um país democrático, peço-lhe respeitosamente, apelando a seu patriotismo, que defenda a vontade do povo venezuelano expressa hoje nas urnas”.

    E qual era essa vontade? Como Óscar Arias a conhecia? Ele não a conhecia. Nem importava. Como acrescentou na mesma nota, o resultado deveria refletir “o que foi expresso pelas diferentes pesquisas feitas com os eleitores depois de terem votado. Um resultado diferente só tem um nome: fraude eleitoral”.

    Mas a oposição não apresentou qualquer prova desta fraude. Foram apenas as pesquisas a que Machado fez referência na segunda-feira após as eleições: “Ao longo do dia, com as contagens rápidas, monitoramos a ida às urnas hora a hora”. “Quatro contagens rápidas, autônomas e independentes, deram os mesmos resultados das pesquisas”. E isso era tudo.

    Imaginam um golpe de Estado militar na Venezuela? Alguém acha que seria muito diferente do que aconteceu no Chile em 1973? Uma traição dos militares, como a de Pinochet, à institucionalidade e a seus juramentos? Maria Corina Machado e Edmundo González governando a Venezuela? É falsa toda a história que vincula González, então diplomata venezuelano em El Salvador, a alguns dos crimes mais cruéis dos anos de guerra naquele país?

    O mundo em que Óscar Arias sonha com um golpe de Estado é o mesmo mundo de 1973, quando Pinochet derrubou Allende, com o apoio de Hayek, Friedman ou Kissinger? Ou o mundo com que sonhava Albright?

    A direita liberal pode ser extremista, quando necessário. Ou democrática, quando isso lhes convém. Por enquanto, o processo eleitoral na Venezuela está em pleno andamento, e deverá culminar numa verificação oficial e em resultados definitivos, a serem divulgados pelo Supremo Tribunal de Justiça.

    Mas faz falta à América Latina poder desfrutar de uma vida política livre da interferência desmedida de Washington, que está tornando o ar político da região mais rarefeito.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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