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    Roberto Bueno

    Professor universitário, doutor em Filosofia do Direito (UFPR) e mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC)

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    Falsificando a recriação do centro

    "O enfrentamento da extrema-direita fardada com a extrema-direita black tie apresenta cenário de interdição à restauração da democracia no Brasil. Expor os reais termos deste embate permitirá reconhecer o quão falsa é a apresentação da extrema-direita black tie como centro-direita comprometida com os valores da democracia", avalia o professor de Direito Roberto Bueno

    (Foto: Marcos Corrêa/PR | Maryanna Oliveira/Câmara dos Deputados)

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    Bolsonaro anda quieto, fugidio às declarações que tipicamente oscilam entre o golpismo aberto a movimentos corrosivos das instituições, mesclados a toda sorte de ataques ao povo brasileiro perpassado por extrema e insuportável virulência que cruza o rubicão sem respeitar as impeditivas regras romanas para fazê-lo. O que estará por trás do repentino silêncio obsequiado por Bolsonaro após a elevação do nível de ofensas às instituições no período precedente com ameaças semanais de golpe de Estado? Por qual motivo instituições até então refratárias a aplicar a Constituição repentinamente alteraram seu rumo? É perceptível que a esta alteração subjaz conflito no âmago das forças associadas para assestar o golpe de Estado de 2016 contra o povo brasileiro que confiou o poder ao Partido dos Trabalhadores (PT) nas eleições presidenciais de 2014.

    Está em curso o enfrentamento de dois poderosos segmentos do mesmo grupo político, a saber, a extrema-direita fardada e a extrema-direita black tie, e uma das manifestações objetivas deste conflito é o repentino silenciamento de Bolsonaro que não deverá manter-se neste mesmo nível indefinidamente. Observamos a existência de espaço suficiente no espectro político brasileiro para a operação de duas asas extremistas de direita ora em conflito. Identificamos um deles como a extrema-direita fardada, e a outra, como a extrema-direita black tie. Ambas têm em comum alguns objetivos como os de realizar: (a) destruição da Constituição brasileira, (b) absoluta exploração das riquezas do Brasil, (c) destituir o povo brasileiro de todo de qualquer tipo de proteção estruturada a partir do Estado, (d) alienar o campo progressista de esquerda da disputa política e (e) alienar a soberania nacional e todos os instrumentos de realização da autonomia popular.

    À parte estes importantes aspectos de convergência quanto aos fins, a extrema-direita fardada tem como característica o cumprimento de objetivos sob a ameaça permanente de recurso às armas que carregam à vista, valendo-se tanto de homens fardados como de milicianos, que não apenas não oculta o recurso à tortura como o divulga publicamente como motivo de orgulho, em suma, é explícito desenho da barbárie que do ponto de vista retórico as versões fascistas clássicas não foram capazes de assumir. A extrema-direita black tie também emprega meios violentos, mas tenta manter as aparências sob a retórica de compromisso com a herança ilustrada, evitando explicitar a sua complacência com as práticas da violência. Contudo, sempre que fogem ao controle e vêm à tona, o extremismo de direita black tie mascara este resultado a qualquer custo, valendo-se de todo o tipo de instrumentos, manipulando a retórica, impondo massivamente a ideologia e instrumentalizando a mídia corporativa.

    Mas por qual motivo foi deflagrado o conflito no âmago da extrema-direita? Sugerimos que existem duas ordens de motivações, uma de ordem imediata, econômica, e outra mediata, de ordem de estratégia política. A primeira hipótese remete ao embate entre os ex-associados por nacos na repartição das prebendas, dada a atração exercida, por exemplo, pelos três mil cargos hoje ocupados por militares (sem contar familiares e achegados que podem ampliar notavelmente este número) cujo real importância reside no interesse em controlar privilegiadas posições de acesso aos recursos do Estado. A segunda ordem de motivações que sugerimos remete a operação de estratégia política. Trata-se de realizar o desembarque de grande parte dos extremistas de direita de um regime do qual já não mais se pode dizer que está fadado ao fracasso, senão que já fracassou, pois o peso das dezenas de milhares de mortes já começa a tornar-se insustentável, o que se agravará com o passar do tempo somado à crise social derivada da insustentável política econômica em curso.

    O sentido desta segundo estratégia promotora do desembarque de parte da extrema-direita não fardada é realizar operação de clivagem e limpeza da extrema-direita black tie, habilitando-a politicamente para os futuros processos eleitorais disponibilizando nova manipulação política em pinça. Esta manobra ofereceria ao eleitorado duas alternativas, ambas de interesse da oligarquia nacional associada aos interesses do império. Por um lado, uma alternativa extremista de direita fardada, afinada com o discurso da violência pura, e por outro lado, apresentar outra via supostamente democrática, que nada mais é do que a versão extremista de direita black tie “higienizada”, “limpa” em face do presente processo de suposta resistência ao governo militar antidemocrático que ousou apresentar toda a sua “resistência” contra um regime que declarou tantas vezes a pretensão golpista. Esta versão extremista de direita black tie apareceria em futuro cenário eleitoral devidamente travestida de centro e centro-direita democrática. Estas duas vias compostas genuinamente por extremistas de direita facilitariam duas vias absolutamente iguais quanto aos fins para o acesso ao poder à oligarquia, ademais, absolutamente concertadas para mútuo apoio em provável segundo turno contra o campo progressista conforme vem ocorrendo em todas as últimas eleições presidenciais.

    O horizonte imediato de controle do espectro total do cenário econômico e político exclusivamente por parte da extrema-direita fardada causou o incômodo à extrema-direita black tie, mas dada a agressividade de seus oponentes e o seu potencial de implementação do golpe dentro do golpe, esta segunda vem recorrendo a artifícios para mobilizar em seu apoio setores sociais de centro-esquerda por dois principais motivos: (a) apresentar um preço demasiado alto para a extrema-direita fardada realizar o seu objetivo de golpe dentro do golpe que lhe permitisse controlar o espectro total; (b) vencendo o embate ou não, a extrema-direita black tie sairia do conflito com a imagem de golpista devidamente limpa por ombrear com a centro-esquerda em defesa da democracia, legitimando-se, portanto, para apresentar-se em próxima eleição como alternativa de poder não-radical, posição que seria atribuída à verdadeira centro-esquerda representada pelo PT e demais partidos de esquerda componentes de sua base de apoio tradicional.

    Sob esta perspectiva interessa à extrema-direita e aos sobreviventes da centro-direita nacional a articulação de um bloco de poder que seja percebido pela população como descolado dos círculos militares hoje no poder, pois serão eles a real alternativa de poder da extrema-direita em face das gravíssimas consequências do processo de expropriação nacional em curso ademais reforçado pelo impacto da pandemia global que entre nós foi agravada pela execução de um projeto genocida, sendo absolutamente lamentável ter de afirmá-lo no plano da descrição técnico-formal do conceito.

    Neste momento observamos os movimentos que tentam aglutinar personalidades em torno a posições majoritárias pela democracia que apenas aparentemente estão em oposição ao regime militar-bolsonarista. Em realidade, trata-se de tentativa de reunião de personalidades capazes de galvanizar apoio popular de indivíduos (a) que permaneceram alheios ao processo político ou (b) que por qualquer arrependimento da posição política tomada mas sem desejar abandonar o seu campo à direita e migrar para a centro-esquerda, disporá, então, de uma “nova” alternativa de centro-direita, que nada mais é do que a extrema-direita black tie mascarada. Será eficiente o ocultamento ao brandir a bandeira da democracia sob o beneplácito e divulgação da mídia corporativa também implicada historicamente em atividades da extrema-direita fardada.

    O enfrentamento da extrema-direita fardada e a extrema-direita black tie tem como objetivo comum alienar a esquerda da disputa política, em um caso através da violência crua, e no outro através de modelos jurídicos e midiáticos mais sofisticados, mas igualmente agressivos à soberania popular. A efetivação desta tentativa de exclusão do campo progressista por qualquer dos meios aptos para tanto representará a pá de cal nas últimas gotas de esperança de restaurar a democracia a curto prazo e, por conseguinte, de que o povo tenha ante si todas as opções políticas para decidir qual delas melhor lhe atende.

    Estamos ante o desafio de restaurar a democracia no Brasil, mas os atores políticos não o farão sem que reste claro o cenário político ao qual estamos expostos, evidenciar o conjunto das tramas para destituir o povo de sua posição de titularidade para escolher as suas lideranças. Este processo continuará a ser empreendido, e uma delas será emascular a Presidência de suas competências, quiçá, propondo a instauração do Parlamentarismo para confirmar formalmente no parlamento o controle do poder em detrimento da figura presidencial, assim legitimando o poder do capital e facilitar a via para que continue sendo exercido majoritariamente através daqueles a quem financia.

    O enfrentamento da extrema-direita fardada com a extrema-direita black tie apresenta cenário de interdição à restauração da democracia no Brasil. Expor os reais termos deste embate permitirá reconhecer o quão falsa é a apresentação da extrema-direita black tie como centro-direita comprometida com os valores da democracia, a Constituição e os direitos humanos. Realizar a adequada análise do comum propósito que os une e dos aspectos superficiais que separam os dois segmentos da extrema-direita nacional é indispensável para que o campo progressista possa desenhar e compor com arco de aliados realmente comprometidos com os valores democráticos, a Constituição e os direitos humanos, tarefa decisiva para orientar a restauração da plena vigência da Constituição no Brasil como pressuposto para a reinstalação da ordem democrática em superior estágio evolutivo relativamente a anterior.

    O conjunto de indivíduos que hoje se apresentam na pele de democratas preocupados com a reconstituição da democracia é o mesmo que continua a apoiar com todo o entusiasmo os termos do neoliberalismo homicida do tipo de Pinochet aplicado por Paulo Guedes, a quem não desejam afastar do poder. A extrema-direita black tie que encontra a sua lídima expressão em Fernando Henrique Cardoso apenas tem interesse em calar a voz estridente, mas não a substância truculência das práticas da extrema-direita fardada, continuar a querer aproveitar os resultados econômicos que propicia a expensas do país e do povo.

    À extrema-direita black tie basta com realizar certa assepsia no ambiente e uma reorganização da divisão das posições de poder para que encontre as condições necessárias para recompor com os seus anteriores associados. Por este motivo basta com calar Bolsonaro, mas não necessariamente retirá-lo da função formal de poder na Presidência. Apresentam-se como “democratas”, defensores da Constituição, mas desejam manter o neofascismo no poder sempre e quando recebam a sua retribuição e o seu operador trabalhe em silêncio ou, dado o alto “incômodo”, remunere muito melhor.

    É possível o enfrentamento com ambos os segmentos da extrema-direita, mas é factível fazê-lo sob a senha de que a ação não venha a refrear o avanço de um dos segmentos da extrema-direita neste momento para servir como dínamo e catapulta para outro segmento da extrema-direita em futuro próximo que dará curso às políticas demofóbicas e tanatológicas sob formas diversas. Para evitar a armadilha é indispensável reconhecer os reais interesses que movem os atores políticos e a compatibilidade com os alegados propósitos democratas, distanciando-se dos extremistas da direita black tie disfarçados de centrismo.

    O momento histórico da vida brasileira é de inaudita gravidade cujas causas e consequências não habitam o núcleo de preocupações do extremismo de direita. Urbi et orbi: a tarefa urgente do campo progressista é aglutinar forças políticas genuinamente comprometidas com alijar do poder o regime militar-bolsonarista que coloca as condições de possibilidade ou consente com a produção da morte em escala industrial. Esta será a medida mais eficaz para mitigar o funcionamento da indústria da morte. A urgência histórica brasileira é exclusivamente uma: salvar todas as vidas que a dezenas de milhares não logramos salvar enquanto sociedade. Nada disto será possível acaso o campo progressista creia poder contar com a extrema-direita fardada ou a extrema-direita black tie, pois nenhuma delas tem esta preocupação.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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