Fanatismo político na posse de Bolsonaro
Não houve novidades de relevo na posse do novo governo federal. Os vários atos cerimoniais foram congruentes com o discurso do candidato Jair Bolsonaro durante o período eleitoral. Na posse, voltou a chamar a atenção um outro elemento bastante comum durante as eleições que muitas pessoas não levaram a sério naquele momento: o fanatismo político da extrema direita
Não houve novidades de relevo na posse do novo governo federal. Os vários atos cerimoniais foram congruentes com o discurso do candidato Jair Bolsonaro durante o período eleitoral. Algumas situações constrangedoras foram passadas pela imprensa, houve muitas promessas de medidas inconstitucionais, ameaças ao Congresso Nacional na ausência de aprovação da reforma da previdência, o Ministro da Justiça defendendo os atos que ele mesmo praticou ou coordenou na Operação Lava Jato etc. Excessos no esquema de segurança e certa incontinência verbal do Presidente – como na passagem com o General Villas Boas numa das posses ministeriais – também deram o ar da sua graça.
Na posse, voltou a chamar a atenção um outro elemento bastante comum durante as eleições que muitas pessoas não levaram a sério naquele momento: o fanatismo político da extrema direita. Por que não lhe deram tanta importância? Porque o fanatismo político não é uma novidade e os brasileiros estão habituados com ele. Há fanáticos em todos os espectros ideológicos e muitos políticos possuem adeptos ligados à sua própria figura pessoal. O ex-Presidente Lula também tem seguidores fanáticos, tendo sido antecedido, neste particular, por Getúlio Vargas, Miguel Arraes ou Leonel Brizola. Trata-se de líderes populares que representam esse sentimento social e levam parte do eleitorado a se identificar com eles através de um elemento carismático capaz de corresponder às suas expectativas individuais (na Ciência Política, há posições que já defendem a relação necessária entre a democracia e as medidas populares atribuídas ao populismo quando as desigualdades sociais são muito acentuadas). No caso da extrema direita, o que mudou?
Antes de responder, é preciso diferenciar o fanatismo político da adesão pela popularidade. O eleitor fanático não possui visão crítica em relação ao objeto do seu fanatismo. Aceita e aplaude qualquer medida tomada pelo governo ou pelo líder messiânico, chegando a deixar alguns dos seus próprios interesses em segundo plano em nome da sua devoção. A popularidade política, por sua vez, estabelece outro tipo de identificação entre o governante e os governados, que pode ser mais ou menos acentuada, conforme o nível de prosperidade econômica, a implementação de políticas públicas em geral, o tipo de combate à desigualdade social e até mesmo o modo com o governante se comunica com a sociedade. A popularidade depende de várias circunstâncias e pode variar ao ritmo da própria opinião pública. Em muitos casos, os líderes políticos reúnem seguidores fanatizados e também aqueles atraídos pela adesão à popularidade.
A imagem que se destacou entre os seguidores do Presidente eleito, na posse, foi um conjunto de pessoas gritando palavras de ordem em meio a um clima menos festivo e mais de veneração à figura do Presidente da República. Gustavo Conde, um dos editores do portal Brasil 247, ressaltou que os presentes na Praça dos Três Poderes praticamente não conversavam entre si. Celebravam o Presidente da República como o redentor de todos os nossos males, numa espécie de subversão do lema da campanha do PSL: Bolsonaro acima de todos; Mito acima de tudo. Um fanatismo político de extrema direita, com toques messiânicos, que leva seus seguidores a posições apaixonadas que pouco ou nada têm a ver com a realidade, a não enxergarem as outras pessoas e à adoção da violência como instrumento de manifestação política. Por isso, o fanatismo da extrema direita possui particularidades que desafiam a ordem democrática, a segurança social, a dignidade de quem pensa diferente e a própria existência de um regime político baseado na Constituição.
Em linhas gerais, o que mudou com a popularização do fanatismo de extrema direita foi a força do ódio às diferenças, a desvalorização da pessoa humana em várias das suas dimensões e o uso da violência física, verbal ou virtual contra os seus “inimigos”. Na posse, ficou claro que aqueles 16% que Bolsonaro tinha no início de 2018 continuam soltos e ativos pelo Brasil; não se tranquilizaram após as eleições e aprofundaram a opção pelo fanatismo político. Em geral, não praticaram nenhum ato que desabonasse criminalmente a sua participação na posse. Ganhou destaque o clima emocional de devoção total que prevaleceu durante o discurso de Bolsonaro, demostrando que o fanatismo político de extrema direita vive no Brasil. Manifestações nas redes sociais nesta mesma linha provaram que ele ainda está presente, mesmo que de forma minoritária, de espreita, em qualquer esquina, pronto para esmagar “esquerdopatas”, homossexuais, mulheres, negros, integrantes de movimentos sociais, entre outras tantas vítimas potenciais que o próprio Bolsonaro vem indicando nos últimos anos, talvez sem ter a exata dimensão da repercussão das suas palavras nas mentes receptivas de pessoas que só precisavam de uma justificativa para liberar o seu lado mais sombrio.
A tendência do fanatismo de extrema direita é se acentuar nos primeiros meses do governo. Esse risco aumenta por causa da própria estrutura fundamentalista do discurso governamental, que não se utiliza do diálogo e da formação do consenso para tomar decisões. Segundo Anthony Giddens, sociólogo britânico, o fundamentalismo “não é mais do que a tradição defendida de modo tradicional”, ou seja, é uma tradição que se defende negando o diálogo e sem apresentar fundamentos que lhe deem respaldo. A tradição “contém sua própria verdade, uma verdade ritual, que o crente considera justa (...)” e reforça o perigo do fundamentalismo por causa do seu “conteúdo potencial de violência” – continua Giddens. Um bom exemplo desse fundamentalismo político foi o fato de Jair Bolsonaro não ter conseguido pronunciar o nome do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso na cerimônia de posse do novo Ministro da Defesa.
O Brasil não está habituado com a difusão do fanatismo político de extrema direita. Não há dados registrados sobre o que essa paixão política ligada à violência pode originar em uma época histórica em que pessoas alucinadas se sentem empoderadas para fazer o que quiserem, sem responsabilidade ou culpa. Por meio de verdades criadas através da web em geral e das redes sociais em particular, muitos fanáticos passam a construir sua própria imagem da sociedade, do processo político, da vida e daqueles seres humanos que não merecem tal qualificação pelos mais diversos fatores. As consequências do fanatismo de extrema direita são gravíssimas. Por isso, um dos principais deveres de qualquer governo responsável é colocar um freio neste processo e retomar o caminho da normalidade política.
Um grande entusiasta da extrema direita nazista foi assassinado pelo governo de Hitler pouco depois de demonstrar o seu furor patriótico. Edgar J. Jung ressaltava, em 1933, que a revolução nacional-socialista havia sido preparada por inúmeras obras científicas. Como escreve Bernd Rüthers, “a estas obras deve o povo alemão, segundo Jung, ‘o desmantelamento da ideologia dos direitos humanos, que suportava o edifício de Weimar, além da destruição da crença no direito formal, na dialética e, simplesmente, no intelecto’. Em 30 de junho de 1934, foi assassinado Edgar J. Jung como semijudeu por ordem de Hitler, como consequência da eliminação das garantias dos direitos humanos e do Estado de Direito. Pouco antes, ele ainda havia opinado que todo povo incapaz de uma manifestação de violência seria suspeito de decadência biológica. A violência seria um ‘elemento da vida’”. O trecho citado da obra de Bernd Rüthers constitui um sinal de alerta contra o fanatismo político de extrema direita neste início de século.
Não se pode comparar o governo Bolsonaro com o regime totalitário que abalou a Alemanha e o mundo a partir de 1933. Há centenas de variáveis que separam os dois momentos históricos. Mas o fundamentalismo de grande parte daqueles que integram o governo, a “falta de crença no intelecto” e o fanatismo de extrema direta que passou a existir no país colocam em xeque a já combalida Constituição de 1988, dando provas concretas de que uma democracia que não se defende pode estar condenada a deixar de existir.
Agassiz Almeida Filho é professor de Direito Constitucional na UEPB, autor dos livros Fundamentos do Direito Constitucional (2007), Introdução ao Direito Constitucional (2008) e Formação e Estrutura do Direito Constitucional (2011)
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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