Fascismo
"Evguiéni Pachukanis escreve, concomitantemente ao desenrolar dos fatos, uma das mais notáveis análises sobre o fascismo: trata-se de uma ímpar e radical leitura materialista", escreve o professor de Direito da USP Alysson Mascaro
Por Alysson Mascaro
(Publicado no site A Terra é Redonda)
Evguiéni Pachukanis escreve, concomitantemente ao desenrolar dos fatos, uma das mais notáveis análises sobre o fascismo: trata-se de uma ímpar e radical leitura materialista. Este livro reúne, pela primeira vez em língua portuguesa, os quatro importantes estudos da lavra pachukaniana sobre o fascismo e seus ambientes e problemas correlatos. Refletindo sobre o quadro político que vinha despontando nas primeiras décadas do século XX, Pachukanis identifica, esquadrinha e sistematiza as causas do fascismo, sua relação com o capitalismo e com as lutas e disputas no plano da economia, da política e das classes. Textos quentes pelo calor do momento e, simultaneamente, sólidos e perenes pelo vigor de seu pensamento.
Os estudos pachukanianos que tratam dos casos italiano e alemão destacam-se pela radical agudeza de uma análise sempre intransigentemente revolucionária. Seus textos não são derrotistas nem acautelados, tampouco favoráveis a concórdias generalistas. Ao mesmo tempo, não são leituras idealistas, olímpicas ou somente de métricas indiferentes à realidade: os três estudos sobre o fascismo e o estudo sobre o caso social-democrata alemão são imersões profundas na história e nos acontecimentos, numa reconstituição minuciosa de dados, pronunciamentos, publicações e análises teóricas terceiras, constituindo uma firme rede factual a partir da qual se levanta também, eventualmente, a mais sólida linha de reflexão já escrita sobre tais elementos.
Pachukanis, embora espectador externo aos fatos – não é nem italiano nem alemão –, está intimamente ligado à circunstância histórica que analisa de modo peculiar. A partir de uma visão soviética, em oposição frontal às derivas alemã e italiana à direita, sua leitura é compromissada com a revolução que deveria ser feita em ambos os países. Inclusive, o caso alemão lhe é extremamente próximo. De início, porque Pachukanis teve grande parte de sua formação teórica na própria Alemanha. Além disso, após a Revolução de 1917, em várias ocasiões assessorou o equivalente a um Ministério das Relações Exteriores russo quanto a questões alemãs – chegou mesmo a trabalhar diretamente como diplomata da Rússia revolucionária em sua relação com Berlim.
Ajudou a redigir e participou ativamente da preparação do Tratado de Rapallo, firmado na cidade italiana de mesmo nome em 1922, em que se restabeleciam as relações entre a Rússia e a Alemanha. Seu engenho jurídico foi decisivo para que o virulento combate à experiência soviética recebesse a primeira dissonância, permitindo um suspiro em face do bloqueio internacional contra a Rússia e as repúblicas a ela unidas. O mesmo diagnóstico se aplicava à própria Alemanha, isolada após perder a Primeira Guerra Mundial.
Sobre a relação de Pachukanis com a Alemanha, além de sua participação no Tratado de Rapallo, Luiz Felipe Osório comenta que “o jurista soviético costurou laços importantes, pessoais e profissionais, com a Alemanha. Em 1910, ele vai de São Petersburgo para Munique (na Ludwig-Maximilians Universität) para continuar o curso de direito. […] De 1920 a 1923, Pachukanis trabalhou no Comissariado do Povo para Relações Exteriores, equivalente a um Ministério das Relações Exteriores, como diretor ou chefe do departamento de direito econômico. De 1921 a 1922, ele voltou à Alemanha, para servir em Berlim. É nesse momento que ele se envolve diretamente nos preparativos de Rapallo. Os registros mostram que, em 3 de dezembro de 1921, ele envia um telegrama ao ministro/chanceler Georgy Chicherin para tratar de questões próprias de um encarregado de negócios estrangeiros, indo muito além de uma mera consultoria jurídica. A comissão soviética que iria para Gênova foi designada diretamente por Lênin, dada a importância da missão, e incluía Georgy Chicherin, Maxim Litvinov e Leonid Krasin. A caminho de Gênova, os dois primeiros fizeram uma estratégica parada em Berlim. Então, puderam tratar diretamente com Pachukanis sobre vários assuntos diplomáticos, para além de Rapallo”.[i]
Sobre o pano de fundo da análise de Pachukanis acerca dos casos italiano e alemão paira sua Teoria geral do direito e marxismo. Se é verdade que seus textos sobre o fascismo têm eixo de gravidade próprio, tratando de uma temática insigne, também é verdade que se desdobram, para essa análise política específica, os horizontes e os compromissos profundos de sua obra teórica mais importante.
Em Teoria geral do direito e marxismo, brilha, para os campos político e jurídico, a mais rigorosa construção científica do marxismo: a forma mercadoria, átomo da sociabilidade capitalista, tal qual Marx revelara em O capital, é a matriz da forma política estatal e da forma da subjetividade jurídica, que dela são umbilicalmente derivadas. Mais do que a questão dos conteúdos normativos ou da ação política, alcança-se a crítica à forma. A forma política e a forma do direito são postas em xeque: está em causa a sociabilidade da forma mercadoria. Assim, a extinção do direito e o fenecimento do Estado são índices de um estágio da luta de classes na superação do capitalismo.
Não há Estado que possa gestar, mediante o fomento das instituições ou do direito, a chegada ao socialismo. Tampouco se pode pensar que a política seja o que as declarações normativas, principiológicas ou jurídicas anunciem como tal. O fascismo seria então analisado por Pachukanis a partir das contradições da sociabilidade capitalista, sem ilusões quanto a eventuais soluções ou contenções no plano moral, ético, institucional ou jurídico. Nos textos sobre o fascismo, o jurista Pachukanis jamais aponta o direito como solução. A radical crueza com que ele alcança a natureza do direito no capitalismo é a mesma com que analisa os casos concretos das dinâmicas italiana e alemã em suas caminhadas à extrema direita.
Deve-se ressaltar que já em sua obra magna, Teoria geral do direito e marxismo, há passagens nas quais Pachukanis reflete diretamente sobre o tempo histórico específico que gestará o fascismo. Assim se lê: “O capitalismo monopolista cria as premissas perfeitas de outro sistema econômico, em que o movimento da produção e da reprodução social se realiza não por meio de contratos particulares entre unidades econômicas autônomas, mas com a ajuda de uma organização planificada, centralizada. Essa organização é engendrada pelos trustes, pelos cartéis, entre outras associações de caráter monopolista. A ação dessas tendências pôde ser observada no tempo da guerra, com a junção entre o capitalismo privado e as organizações estatais para formar um poderoso sistema de capitalismo de Estado burguês. […] O significado social dessas doutrinas é de uma apologia ao Estado imperialista moderno e a seus métodos, aos quais ele particularmente recorreu durante a última guerra”. […]
“O Estado como fator de força tanto na política interna quanto na externa foi a correção que a burguesia se viu obrigada a fazer em sua teoria e prática do “Estado de direito”. Quanto mais a dominação burguesa for ameaçada, mais comprometedoras se mostrarão essas correções e mais rapidamente o “Estado de direito” se converterá em sombra incorpórea, até que, por fim, o agravamento excepcional da luta de classes force a burguesia a deixar completamente de lado a máscara do Estado de direito e a revelar a essência do poder como a violência organizada de uma classe sobre as outras”. […]
“Vale notar, além disso, que justamente a última década do século XIX e a primeira do XX apresentaram uma visível tendência em toda uma série de países burgueses de reestabelecimento de castigos aterradores, aflitivos e vexatórios. O humanismo da burguesia dá lugar ao apelo à severidade, a uma mais ampla aplicação da pena de morte”.[ii]
O conjunto de textos de Pachukanis sobre o fascismo sucede a Teoria geral do direito e marxismo. O primeiro a ter sido publicado, em 1926, intitulava-se “Para uma caracterização da ditadura fascista”. Originalmente, era o relatório de Pachukanis a respeito do tema que foi lido na Academia Comunista. O segundo foi o verbete “Fascismo”, publicado na Enciclopédia do Estado e do direito, sob direção de P. Stutchka, em 1927. O terceiro foi o relatório intitulado “A crise do capitalismo e as teorias fascistas de Estado”, publicado em Estado soviético e revolução, em 1931. O último dos textos chamava-se “Como os sociais-fascistas falsificaram os sovietes na Alemanha”, publicado em 1933.
Os três primeiros – dois sobre o caso italiano e o outro sobre o caso alemão – são análises que se debruçam sobre os fatos em andamento. O quarto, também sobre a Alemanha, trata de um momento do passado, o fim da Primeira Guerra e a chegada à República de Weimar. Embora se referindo a um momento prévio, tal análise é fundamental para compreender os posteriores impasses das lutas alemãs, já quando Hitler ascendia ao poder.
Dada a extensão temporal da escrita e da publicação de tal conjunto de textos, levanta-se, logo de pronto, a questão de sua congruência com as principais ideias desenvolvidas por Pachukanis em Teoria geral do direito e marxismo. Sabe-se que a derradeira reflexão pachukaniana passou por mudanças em relação àquela do tempo em que escreveu sua obra mais importante. Os textos finais do autor, já próximos de 1937, ano de sua morte, revelam grandes distinções em seu pensamento, reinserindo visões tradicionais do direito que anteriormente combatera.
Há um debate entre os pesquisadores do pensamento pachukaniano sobre quando se deve considerar seus textos já influenciados e constrangidos pelas posições stalinistas. Alguns costumam apontar apenas o conjunto dos escritos da década de 1930 como patentemente confluente com o stalinismo, enquanto há quem já veja em obras logo subsequentes a Teoria geral do direito e marxismo a mudança de pensamento. Márcio Bilharinho Naves, o estudioso mais importante de Pachukanis, afasta o princípio de um corte na obra do autor russo referenciado meramente em uma data precisa.
Reconhecendo que há diferenças substanciais entre os textos da última fase e aqueles do tempo do livro central do jurista, Naves assinala, no entanto, uma resistência de Pachukanis em seu processo de autocrítica. Essa problemática retorna, muitas vezes, nos textos da década de 1930, mesmo sob o ajuste forçado às coerções do contexto político. Assim sendo, não se trata de traçar, de modo absoluto, um antes e um depois, mas, sim, de verificar as persistências, retificações e alterações constantes da problemática pachukaniana em seus textos finais.
Diz Naves: “Pachukanis efetivamente modifica e abandona as suas posições. A diferença de nossa análise desse processo autocrítico em relação às outras reside, por um lado, em um novo esforço de leitura do modo pelo qual Pachukanis reorganiza o seu dispositivo teórico, e procura dar conta de suas vacilações e resistências, particularmente em reconhecer a existência de um “direito proletário” ou “socialista”. Por outro lado, e em estreito vínculo com a primeira, procuramos pensar a reconstituição do aparato conceitual jurídico nos anos 1930 como a negação das teses originariamente defendidas por Pachukanis. Podemos dividir esse período em dois momentos. No primeiro, Pachukanis introduz um “desequilíbrio” teórico não desprezível em sua teoria do direito, comprometendo a sua construção teórica, mas ainda conservando – mesmo que em contradição com as novas teses – alguns elementos da concepção original. E um segundo momento – a partir de 1936 –, no qual Pachukanis sustenta uma teoria do direito – e do Estado – em conformidade com a orientação stalinista, claramente demarcada em relação às formulações de Teoria geral do direito e marxismo”.[iii]
Na leitura de Márcio Bilharinho Naves – com a qual concordamos –, as obras de Pachukanis da década de 1930, incluindo as de 1935, já apresentam um “desequilíbrio” que altera suas posições originais, embora haja a tentativa de resguardá-las de algum modo. As obras de 1936 marcam um contraste pleno e uma total submissão ao stalinismo, antes de ser morto em 1937. Tendo tal cenário como guia, o conjunto de textos sobre o fascismo distribui-se em parte por aquela que é sua fase mais pujante e original – a década de 1920 – e, em outra, pelo momento da retificação stalinista, em que ainda buscava sustentar o fundamental de sua análise.
De fato, há de se perceber em “A crise do capitalismo e as teorias fascistas de Estado” e “Como os sociais-fascistas falsificaram os sovietes na Alemanha” a presença de alguns traços da posição política oficial do governo soviético: a nomenclatura de “sociais-fascistas” aos sociais-democratas alemães, em especial, revela um jargão de agrado ao stalinismo. No entanto, de modo geral, os textos da década de 1920, e mesmo os da década de 1930, são substancialmente construídos pela problemática, pelo método e pela radicalidade do pensamento principal de Pachukanis.
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O primeiro texto deste livro chama-se “Para uma caracterização da ditadura fascista”. Nele, Pachukanis afasta a ideia de que o fascismo seja uma ditadura da pequena burguesia ou dos latifundiários. É, acima de tudo, uma ditadura dos grandes industriais e do capital financeiro. O Estado fascista italiano é o mesmo dos demais Estados do grande capital burguês, como o francês, o inglês e o estadunidense. Daí decorre, logo de pronto, a pergunta central de Pachukanis para fundamentar a caracterização do fascismo, que replica aquela que é a mais importante pergunta de Teoria geral do direito e marxismo. Dado que há uma relação entre capitalismo e direito, Pachukanis se indaga, em sua obra máxima, por que é o direito que estrutura especificamente o capital. São clássicas suas palavras: “Por que a dominação de classe não se apresenta como é, ou seja, a sujeição de uma parte da população à outra, mas assume a forma de uma dominação estatal oficial ou, o que dá no mesmo, por que o aparelho de coerção estatal não se constitui como aparelho privado da classe dominante, mas se destaca deste, assumindo a forma de um aparelho de poder público impessoal, separado da sociedade?”[iv]
Em “Para uma caracterização da ditadura fascista”, a mesma pergunta se apresenta para entender por que, sendo o Estado burguês, o capital precisa especificamente da ditadura fascista. Levanta-se, logo de início, o problema da forma: “dizer que a ditadura do fascismo é a ditadura do capital significa dizer muito pouco. É preciso dar uma resposta à pergunta: por que a ditadura do capital se efetua precisamente dessa forma? Não se pode esquecer do pensamento de Hegel sobre a forma ser um ponto essencial do conteúdo. Por isso, temos a obrigação de averiguar o que essa forma particular gerou de novidade, o que ofereceu de novidade, quais suas possibilidades específicas e suas contradições específicas”.[v]
Pachukanis se indaga se o fascismo seria uma doutrina intelectual ou filosófica específica. Por fim, afasta essa hipótese, apontando a natureza primitivista das ideias fascistas, cujo caráter é fragmentado, contraditório. Em termos da especificidade de condições para seu surgimento, o autor reconhece que, no caso italiano, o fascismo brotou de condições mais propícias e acalentadas que em outros países: sentimentos de libertação nacional (que puderam beber simbolicamente até mesmo de Garibaldi), o irredentismo, a peculiar figura de Gabriele D’Annunzio, a agitação nacionalista.
Nesse contexto, brotam também contradições: a pequena burguesia que dá impulso ao fascismo não é aquela de artesãos e lojistas – que eventualmente poderia ser concorrente do grande capital –, mas, sim, uma pequena burguesia da juventude acadêmica – intelectualidade técnica e servidores públicos, subordinados ao grande capital. Pachukanis aponta, já aqui, o fato de que esse era o mesmo e específico perfil da fração de classes que se envolvia com o hitlerismo na Alemanha.
Tudo isso nos leva a identificar, dentro do contexto geral do capitalismo e de sua sociabilidade, um núcleo próprio do fascismo. Pachukanis dirá que sua característica talvez mais marcante é a organização de massa, disciplinada, ao modo da guerra. Nisso, o fenômeno se diferencia do bonapartismo, que é calcado no Exército. O fascismo é apoiado na organização política de massas, de tal sorte que se alimenta de uma luta e de um conflito constantes entre fascistas e antifascistas. Já no poder, o fascismo atua como um Estado dentro do Estado: não se estabiliza como uma burocracia impessoal, mas como uma organização que dita sua vontade ao governo ou aos órgãos estatais.
Por isso, ao contrário da expectativa do grande capital e da burguesia liberal, Mussolini não suprimiu nem dissolveu as milícias fascistas. Pachukanis atenta ao fato de que a força dos partidos de esquerda na Itália, nos anos anteriores à ascensão do fascismo, se revelava pelos vários governos municipais que administravam. Também houve muitos sindicatos responsáveis por ações de luta e greves. Contra esse quadro, o fascismo, que era de pequena expressão, em pouco tempo se torna uma força enorme, aglutinando setores do grande capital e dos latifundiários.
Quando toma o poder, abandona veleidades revolucionárias e defende abertamente um poder forte e a liberdade de circulação do capital. O movimento operário, perseguido, entra em declínio. O rebaixamento salarial subsequente ensejou um crescimento da produção nos anos seguintes. No entanto, Mussolini não reorganizou a economia em termos de um nacionalismo economicamente soberano; pelo contrário, permitiu uma série de desnacionalizações. A conexão do fascismo com o tradicional nacionalismo italiano resta mais patente apenas no plano internacional, com destaque para seu posicionamento imperialista. Pachukanis ressalta, contudo, que o imperialismo italiano não se faz em oposição ao imperialismo inglês, mas em sintonia com ele. O interesse do capital opera a dinâmica internacional do fascismo.
Em face de todo esse quadro, Pachukanis se pergunta o que seria específico do fenômeno do fascismo, tendo em vista que o golpe francês de 1851 já continha muitas de tais características. Com as próprias palavras, assim dirá: “A diferença é que, ao lado da repressão legalizada, continua a repressão mediante a arbitrariedade”[vi].
Pachukanis ressalta, por meio de tabelas publicadas na imprensa, o número de perseguições, prisões, mortes, destruições e condenações empreendidas pelos órgãos oficiais do Estado e pelos bandos fascistas, chegando até mesmo à efetivação de pogroms. É verdade que a burguesia, no limite, teme o poder arbitrário do fascismo, mas os benefícios da quebra dos movimentos de trabalhadores fazem-na aceitar um governo subordinado a uma hierarquia dirigida pelo líder fascista.
É com base em tal caracterização que Pachukanis se ocupa em rechaçar a desprezível associação que a burguesia liberal intentava empreender entre fascismo e comunismo. Aqui, brilha sua proposição das formas sociais no campo da política. Não interessa se, no plano dos conteúdos, críticas fascistas lembrem em algo a crítica leninista à democracia burguesa. A questão é de forma: o socialismo se revela como ditadura de classe do proletariado para estabelecer um novo sistema de relações produtivas.
A despeito de também ser uma crítica à democracia burguesa, a ditadura de classe fascista é radicalmente distinta, na medida em que é uma tentativa de manter as formas sociais capitalistas, buscando retardar seu definhamento. Assim, não basta a coincidência pontual de alguma crítica para estabelecer uma equivalência. A radical distinção entre fascismo e comunismo está na forma: a ação política revolucionária em vista da superação das formas capitalistas versus a ação política reativa que busca salvar essas mesmas formas.
O fascismo deixa patente a clivagem possível do governo do capital: ele se divide e se espraia sempre pelo engano democrático ou pela demagogia fascista, cujo terror busca soldar artificialmente o domínio de classe. Ocorre que a necessidade do fascismo gera também seu custo, dado que seu padrão de luta exacerbada impede a possibilidade de qualquer “normalização”. Pachukanis já apontava, na década de 1920, que tal regime de guerra não conseguiria se estabilizar em longo prazo.
O texto pachukaniano conclui a análise tratando de tática. O autor reclama a posição de que a solução do fascismo é o socialismo. A queda do capitalismo em geral, mediante a ditadura do proletariado, é o caminho mais desejado para a questão fascista. No entanto, dado que não surgiam forças na Itália para tirar de jogo o fascismo, ele continuaria a existir. Daí, Pachukanis evidencia a necessidade de se buscar o combate ao fascismo mesmo que a classe trabalhadora não esteja madura para realizar a revolução proletária.
As contradições internas entre fascistas e antifascistas devem ser exploradas. Tal qual Lênin vislumbrava no caso inglês a possibilidade de uma ação política prática de massas que levasse à majoração dos conflitos e das contradições entre frações da direita, assim também Pachukanis aponta a saída da passividade no caso italiano propondo uma luta antifascista, ainda que a luta proletária pela tomada do poder esteja imatura. Tal passo leninista voltado à ação – passo aberto ao inesperado, mesmo que este pareça pequeno[vii] – pode ser o encontro de condições que levem tanto à queda do fascismo quanto à queda do sistema capitalista na Itália.
Em sequência a tal texto pioneiro, “Fascismo” era, originalmente, um verbete escrito por Pachukanis para a Enciclopédia do Estado e do direito. Esse empreendimento editorial buscava reunir os melhores e mais canônicos estudos acerca de temas fundamentais da política, das instituições e do direito, avançando o conhecimento soviético e socialista mediante a consolidação de um repertório enciclopédico.
Além de outros verbetes que ali escreveu, é da lavra de Pachukanis a entrada sobre o fascismo, na qual analisa suas características e sua contraposição a outras formas de domínio burguês. O autor recorre, em sua reflexão, ao reconhecimento do fascismo como um fenômeno que não se localiza apenas no Estado, mas que avança pelo tecido político e social contra as classes trabalhadoras, servindo de âncora de salvação dos grandes capitalistas. O caso italiano, já desde o início da década de 1920, permite delinear alguns dos quadrantes gerais do fascismo, como a negação da ordem liberal e o corporativismo. Mas, de pronto, afasta a noção de que o conceito de fascismo seja amplo a ponto de se estender a ditaduras que, naquele tempo, ainda mantinham como órgãos principais de violência a polícia e o Exército, exemplificados por Hungria, Bulgária, Espanha, Lituânia e Polônia.
Pachukanis considera que a Alemanha, ainda quando da escrita desse texto, se diferenciava da Itália na medida em que, no pós-guerra, a burguesia alemã fizera um movimento de buscar salvar suas instituições estatais, enquanto os italianos concentraram o poder político no partido fascista. Com isso, Pachukanis marca uma rigorosa construção de um conceito específico – e não alargado – de fascismo.
O terceiro dos textos aqui publicados, “A crise do capitalismo e as teorias fascistas de Estado”, trata de um balanço, escrito já em 1931, da situação do capitalismo mundial e dos casos da Itália e, em especial, da Alemanha. O prisma pelo qual analisa essa dinâmica é o das teorias – principalmente aquelas sobre o Estado e a política – que buscavam explicar o fascismo. Pachukanis critica leituras feitas no seio da União Soviética que identificavam o fascismo a partir do enfraquecimento do Estado e de suas instituições em favor das organizações, associações e milícias armadas fascistas.
Isso levaria as lutas antifascistas, na visão do autor, a uma volta à defesa do Estado burguês, sendo que o necessário era justamente tomar o poder estatal para destruí-lo. Em contraste com tais visões, que dissociavam as milícias fascistas das instituições estatais, como se estas estivessem enfraquecidas, o que ocorre com o fascismo na ótica pachukaniana é fundamentalmente uma majoração do poder estatal. Aumentam o aparato de guerra, a repressão e a intimidação, a salvação dos bancos, a dependência da população miserável de assistências estatais mínimas.
A crise capitalista mundial causa fissuras ideológicas que devem ser exploradas. Os manejos repressivos, além daqueles salvacionistas do capital, repercutem nos ânimos das massas. Pachukanis chega inclusive a citar o Brasil em sua avaliação da crise: “Quando no Brasil jogam-se milhões de quilos de café no mar, […] quando na América do Sul abandonam-se na terra toda a colheita de batatas, ao mesmo tempo, milhões passam fome – e isso, é claro, não pode deixar de influenciar a psicologia das camadas de trabalhadores mais atrasadas e oprimidas. O capitalismo percebe que, agora, ele se tornou odiado”.[viii]
A leitura pachukaniana da crise não admite a posição liberal que busca dissociar os socialdemocratas dos fascistas. São duas brigadas que se completam e se continuam. Pachukanis assume a chave de leitura de Stálin, que afirma ser a social-democracia a ala moderada do fascismo, chamando-a, inclusive, pelo termo social-fascismo. Nessa multiplicidade de correntes que confluem na defesa do capitalismo, ao lado das visões fascistas alemãs mais toscas, há aquelas que buscam se escorar em conceitos teóricos reputadamente mais sofisticados. Pachukanis investe, em seu texto, exatamente contra tais correntes e seus ideólogos. A Ordem dos Jovens Alemães (JungDeutsche Orden ou, ainda, Jungdo), na qual aliás havia muitos juristas e especialistas em questões de direito público e de Estado, é seu alvo prioritário.
Expõe o autor que a referência teórica de tais fascistas que se pretendiam mais bem elaborados, elitistas, era Ferdinand Tönnies. Já desde o fim do século XIX, Tönnies propunha a diferença conceitual entre sociedade (Gesellschaft) e comunidade (Gemeinschaft): esta última seria resultante de vínculos orgânicos coletivos, enquanto a primeira, advinda de relações artificiais, individualistas. A comunidade se funda nas tradições do passado; a sociedade não guarda esse lastro e se orienta por estratégias futuras, pelo lucro. Nesse par conceitual, permitir-se-ia às posições reacionárias alemãs ditas sofisticadas, que se reputavam herdeiras do verdadeiro espírito prussiano – da caserna –, um mote “contra” a burguesia e seu individualismo. Tal “contra” é, na verdade, “a favor”: o mote da comunidade, erigindo-se numa luta por um coletivo inspirado em algum idílico passado comunal, afasta a possibilidade da luta de classes, buscando então amalgamar o todo social a partir de um padrão que impedisse fendas, divisões e conflitos no seio da sociabilidade capitalista.
Gustav Adolf Walz e outros teóricos mais recentes se dedicaram a desenvolver os proveitos desse par conceitual comunidade/sociedade. Pachukanis aponta a ausência de ciência – absurdo puro – em tais leituras, que buscavam refundar a sociedade alemã a partir de pedaços selecionados do feudalismo e da sociedade burguesa, fazendo dessa mistura uma substância apta a servir de princípio orientador da história mundial.
Tais leituras identificaram o absolutismo moderno, o fascismo italiano e mesmo a experiência bolchevique como exemplos de subordinações sociais que valorizavam a comunidade contra a sociedade. A diferença da ditadura proletária em relação às demais subordinações seria apenas o detalhe dos objetivos da revolução. Pachukanis acusa o desplante de tal proposição, que, ao tomar a razão da luta proletária como um “detalhe” particular, não merece nem mesmo que se gaste tempo com sua crítica, dada tamanha insanidade científica.
Tais posições falsificam a pretensão fascista de radicalismo e de luta contra a burguesia, a democracia ou o parlamentarismo. Expressões como “Estado burguês”, criticado nessas leituras, ou “verdadeira democracia”, louvada por elas, revelam que são propostos o mesmo Estado e a mesma democracia, apenas embalados em invólucros de pretensões passadistas. Pachukanis expõe tal giro em falso das declarações fascistas: trata-se apenas de uma movimentação superestrutural, política, do capitalismo em crise e decadência. Uma vez que não consegue resolver suas contradições nos termos liberais, então se maquia ao dar um passo atrás, voltando ao passado, distorcendo-o para fazê-lo substituir o liberalismo já ineficaz.
A maquiagem pretendida pelos teóricos fascistas mais bem assentados é feita, inclusive, de objetivos e estratégias variáveis conforme os ventos, mediante aproveitadores que farejam os melhores agrados ao poder de ocasião. Pachukanis destaca que teóricos como Reinhard Höhn – o qual, anos depois, seria responsável por desgraçar o correligionário Carl Schmitt dentro do próprio círculo nazista – sugerem que a Alemanha deveria superar a democracia burguesa e instaurar um regime estatal orgânico, do tipo de uma comunidade de vizinhos, dado que, por sua condição superior em face dos italianos, não seria compatível com a ditadura de uma personalidade forte. Nas irônicas palavras de Pachukanis, “não contavam com o êxito do Mussolini alemão”.
Na base dessas falsificações e maquiagens anticientíficas das teorias fascistas elitistas, está o fato de que não são postas em causa as bases econômicas da sociedade. Pachukanis firmemente expressa que apenas a superestrutura política está em questão no fascismo. O capitalismo e a exploração burguesa permanecem intocados. Só o sistema parlamentar, a democracia, as liberdades e o campo político são postos na berlinda. Nessa mudança, há, sim, algo extremamente real: as alianças militares. De acordo com o pensamento pachukaniano, é aqui que está a novidade da contribuição do fascismo à ditadura burguesa. O capitalismo substitui o velho sistema dos partidos políticos por organizações terroristas do capital, paramilitares e militares.
Pachukanis vigorosamente brilha, em sua análise, quando trata da pretensão dos teóricos fascistas de relacionar algo da política da extrema direita com algo do marxismo. E assim o faz na reflexão sobre dois temas: a propalada similitude na política e a semelhança nos princípios econômicos. No que tange à política, há uma tentativa dos teóricos fascistas de dizer que Marx operaria a mesma crítica à democracia burguesa, faltando a ele a valorização do Estado. Sendo defensores da comunidade advinda das tradições orgânicas e reunida em torno do líder estatal, eles não poderiam se conformar com o apontamento marxiano de que o Estado deve ser combatido.
Pachukanis identifica que falsificam Marx ao considerarem que, para os socialistas, a passagem ao socialismo seria algo de imediato, sem a ditadura do proletariado; ao mesmo tempo, revela que os próprios teóricos fascistas não conseguem estabelecer qualquer aproximação mais relevante com os horizontes de longo prazo, tanto assim que se afastam das críticas de Marx, opondo-o a Ferdinand Lassalle – este, sim, segundo Höhn, um defensor do Estado, desejante de um Estado social-popular.
Aqui, os fascistas se reconciliam com as velhas teses do socialismo jurídico, contra as quais Friedrich Engels e Karl Kautsky já haviam se levantado em O socialismo jurídico[ix]. Pachukanis sustenta a propriedade dessa contraposição irreconciliável, exatamente sendo ele o mais importante pensador marxista a tratar do tema da crítica do Estado em Teoria geral do direito e marxismo. No que tange à política, conclui o autor: “Os teóricos fascistas e os socialdemocratas se abraçam e voltam os olhos para Lassalle, contrapondo-o a Marx”. Pachukanis fica com Marx.
No que tange à relação econômica entre fascismo e marxismo, há uma diferença de alvo: Pachukanis desfere um golpe fundamental contra a tentativa de estabelecer essa similitude a partir do seio do próprio marxismo, em especial por Nikolai Bukhárin, que pretendeu louvar o bolchevismo pela eficiência econômica similar àquela de uma eventualmente pujante economia fascista. O que haveria de comum em tal pujança seria o capitalismo de Estado. Este, segundo Bukhárin, fora tomado como expressão superior, evolução natural, do capitalismo monopolista. Tratar-se-ia de um avanço nas forças produtivas, sucedendo consecutivamente às fases industrial e monopolista do capitalismo.
Tal posicionamento acabaria por enxergar traços positivos no fascismo, se o tomarmos, em termos econômicos, também como um capitalismo dirigido pelo Estado. Pachukanis se insurge contra tal leitura. O capitalismo de Estado é índice da fraqueza, da impotência e das contradições do capitalismo, não de seu incremento ou do aumento olímpico de suas forças produtivas. Daí decorre que essa visão, além de equivocada por enxergar sucesso no fracasso – cujo sintoma é o fascismo –, revela-se também plenamente reformista, não contribuindo para as lutas revolucionárias.
A intenção dos teóricos fascistas era exatamente manter sob seu poder, mediante a demagogia ideológica, as camadas intermediárias da sociedade que poderiam conquistar o proletariado. Tudo isso a benefício apenas da rentabilidade capitalista. Para Pachukanis, a luta pelo socialismo, na União Soviética e no Ocidente, tem de passar pela luta ideológica, demonstrando a natureza do fascismo e desmascarando sua ideologia.
O quarto e derradeiro texto desta antologia, “Como os sociais-fascistas falsificaram os sovietes na Alemanha”, tem por subtítulo “Sobre as atas do I Congresso Alemão de Deputados Operários e Soldados”. Pachukanis investe, com fôlego, na análise de tais atas, que tratam de fatos ocorridos num momento crucial da história alemã e das lutas proletárias internacionais: a virada de 1918 para 1919. Após a derrocada da monarquia alemã com o fim da Primeira Guerra Mundial, explodiram as lutas e as contradições das massas operárias.
À esquerda do Sozialdemokratische Partei Deutschlands (SPD) – o Partido Socialdemocrata Alemão –, levantaram-se grupos revolucionários como o Espártaco, em cuja liderança estavam Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Mas a social-democracia, em vez de avançar na trilha da superação do capitalismo, refreou os ímpetos de luta mais consequentes. Em um processo de debates, disputas, congressos e assembleias, buscou-se administrar – e bloquear – a revolução socialista alemã, o que acabou levando, meses depois, ao surgimento da Constituição de Weimar, inaugurando o período chamado de República de Weimar – de pronto sob domínio do SPD, que, ao cabo, foi destruído pelo nazismo nos anos 1930[x].
O contexto no qual explodem conselhos e sovietes na Alemanha leva, em dezembro de 1918, ao I Congresso Alemão de Deputados Operários e Soldados, em Berlim. O espartaquismo tinha como plataforma “todo poder aos conselhos”. Pachukanis analisa como o SPD e as facções a ele aglutinadas traem o movimento de sovietes. Com as próprias palavras, abrindo seu estudo, diz: “[…] a social- -democracia falsificou os sovietes e preencheu essa forma de organização das massas revolucionárias com um conteúdo radicalmente hostil a ela, convertendo os sovietes em cúmplice e máscara da contrarrevolução”[xi].
Pachukanis é enfático em dizer que a social-democracia – que chamará de social-fascismo – salvou o capitalismo exatamente num momento decisivo da revolução alemã, organizando as forças da reação burguesa e gestando, portanto, o seio no qual triunfaria o nazismo. Bandeiras como a defesa da “pura democracia” (tradicional, sem conselhos) e da paz passam a ser brandidas pelas forças contrarrevolucionárias.
Sendo rigoroso na análise daquele período, Pachukanis também aponta, nas posições à esquerda, erros estruturais. O principal está nas posições luxemburguistas quando assumem orientações antibolcheviques, como a valorização da espontaneidade, a negação do papel organizativo do partido na preparação da insurreição armada e o sectarismo, que se revelava em dísticos como “fora sindicatos”. Além disso, Pachukanis investe contra o erro tático fundamental da busca pela conservação da unidade entre espartaquismo e os independentes do SPD.
Ao darem as mãos aos kautskistas, aqueles desorientaram a posição das classes trabalhadoras, confundindo-as em razão da concórdia com os opositores e refreando, portanto, o ímpeto revolucionário das massas. O autor é assertivo quando conclui que a Alemanha estava objetivamente madura para a revolução socialista. Não poderia haver outra tarefa a não ser a luta proletária; o momento da luta pela democracia já há bastante tempo havia passado. Somente a revolução era a luta do tempo histórico.
O Unabhängige Sozialdemokratische Partei Deutschlands (USPD) – Partido Social-Democrata Independente Alemão –, que traiu os sovietes, era a única organização de massas que aglutinava significativas camadas da classe trabalhadora, dado que o espartaquismo era pequeno. Na hora decisiva da revolução, em um país que só tinha tal tarefa por empreender, o proletariado revolucionário alemão ficou desarmado em termos de liderança e organização partidária. Então, a burguesia nacional e internacional, que já havia aprendido com a experiência da Revolução Russa, agiu de modo impiedoso – “com crueldade calculada”, nas palavras de Pachukanis – contra os trabalhadores revolucionários alemães.
Dada a popularidade dos sovietes entre a classe trabalhadora alemã, somente restava às lideranças sociais-democratas falsificarem-nos e se apropriarem de seu discurso. Friedrich Ebert e Philipp Scheidemann sucederam um ao outro no poder com referências elogiosas aos sovietes; o governo Ebert chega mesmo a se declarar uma República socialista. Essa sequência de combates aos conselhos e aos sovietes, permeada por hipócritas declarações de apoio e entusiasmo pela causa revolucionária, agindo em conformidade com a tradição burguesa, faz com que as massas, diante de tal falsidade, prestem mais atenção à agitação espartaquista. Daí deve decorrer, também, o preparo para a repressão ao grupo Espártaco. O próprio I Congresso se desenrola numa sucessão de golpes, bloqueios e injunções que alijam ou desfiguram as lutas mais à esquerda.
Pachukanis percebe que o curso das atas do I Congresso segue na tentativa de louvar os sovietes para “conter os trabalhadores e os soldados revolucionários”, mas o poder deveria estar nas mãos de um governo centralizado, pois burguês. Do mesmo padrão do ódio ao espartaquismo e às massas revolucionárias alemãs, está presente nas atas o ódio à Revolução Bolchevique: é reputada frágil, não resistente a futuras investidas de guerra da Entente. Os áulicos de Kautsky e os socialdemocratas que se pretendiam de esquerda chegam mesmo a falsificar leituras de Marx para dizer que a revolução só poderia surgir com uma máquina estatal pronta ou com uma economia desenvolvida, insurgindo-se contra o leninismo. Narrando os horrores do terror revolucionário russo, Scheidemann discursa, numa patente conclamação ao pogrom, contra os sovietes.
Por fim, percebe Pachukanis que os próprios representantes espartaquistas e revolucionários socialistas, em seus últimos discursos e protestos, em que pesem a coragem e o tirocínio de muitas de suas posições, também têm grande dificuldade em estabelecer uma leitura rigorosa dos fatos e do marxismo. Fritz Heckert, espartaquista, futuro líder do Kommunistische Partei Deutschlands (KPD) – Partido Comunista Alemão –, e a quem Pachukanis chama de camarada, em vez de denunciar a guerra e a ditadura burguesas, tece considerações laterais sobre as impropriedades da nascente Assembleia Constituinte em razão do grande papel dos representantes, dado que se esperaria uma assembleia com maior participação direta das massas.
Mas, em favor dessa crítica genérica ao modelo de representação política, deixam de ser feitas críticas fundamentais ao domínio burguês daquele momento, tomando como naturalizada a hipótese da assembleia constituinte. Mesmo com todas as traições da esquerda social-democrata, persistem os chamamentos espartaquistas à unidade das esquerdas. O Congresso deixa, por derradeiro, Rudolf Hilferding pronunciar seus estudos científicos sobre quais setores da economia estariam prontos ou não para a socialização. Pachukanis aponta que “foi justamente no relatório de Hilferding que se expressaram as maiores vulgaridades sobre o tema do ‘espírito científico marxista’, sobre a realização sensata da socialização”[xii]. A farsa do I Congresso foi realizada às vésperas dos eventos decisivos de janeiro de 1919. Ato contínuo, a revolução socialista alemã foi dilacerada, e a estrada histórica para o fascismo e o nazismo tornou-se então completamente aberta.
* * *
Os textos de Pachukanis sobre o fascismo são, destacadamente, para alguns de seus ângulos temáticos, a mais importante reflexão marxista sobre o tema. De modo único, o autor alcança, em tal questão, o problema das formas da sociabilidade burguesa – mercadoria, valor, Estado e direito. Sua análise não vai pelo viés politicista – fascismo como falência moral do Estado e da política, a ser resgatado pelas instituições jurídicas e democráticas – nem pelo viés economicista – fascismo como símile do capitalismo tal e qual, sem especificá-lo nesse seio. Somente o ápice da análise científica marxista, a Teoria geral do direito e marxismo, permite empreender a melhor aplicação à mais aguda situação histórica daquele tempo, o fascismo. Com Pachukanis, o fascismo se defronta com sua mais plena leitura crítica. A formação social encontra a forma social com a qual será lida.
É tamanho o impacto da análise feita por Pachukanis sobre o fascismo que, em História do marxismo, obra organizada por Eric Hobsbawm, Elmar Altvater a considera a melhor leitura realizada pelo marxismo no tempo da Terceira Internacional. Assim diz Altvater: “O conceito de racionalidade, não só na interpretação da social-democracia de Weimar como também na do marxismo da Terceira Internacional, não permite captar – como dissemos – o problema da forma da sociedade burguesa. […] Alguns teóricos o haviam intuído de modo impreciso e, em geral, tardiamente, mas muitos – e, além do mais, aqueles politicamente determinantes – tinham perdido de vista esse problema, que se tornara um beco sem saída para o marxismo da Segunda e da Terceira Internacionais. Como isso tenha podido acontecer talvez seja explicado pela análise inteligente e precisa que E. Pachukanis deu para o fascismo italiano, logo depois de sua vitória. Ele se dá conta perfeitamente de que a vitória do fascismo na Itália, por um lado, é a consequência de avaliações erradas, de equívocos e fraquezas do movimento operário, e, por outro, é a resposta dos dominantes a uma determinada situação econômica e política da sociedade italiana: é uma “ditadura da estabilização”. Mas a análise que apresenta não se propõe a determinar as causas da derrota do movimento operário e explicar o caráter do fascismo como sistema social da reestruturação burguesa, mas, sim, demonstrar que o fascismo e o bolchevismo são completamente diferentes na dinâmica de seu desenvolvimento, apesar de não se poderem negar certas analogias formais. Seu tema, pois, é a rejeição da acusação de que o “vermelho” e o “negro” se equivalem”. […]
“O fascismo, portanto, surge como expressão da desagregação do domínio burguês e demonstra precisamente que a única via capaz de conduzir ao socialismo é a ditadura do proletariado. Desse modo, o fascismo é expressão de decadência, ao passo que o bolchevismo é organização do novo, do progresso. O problema da reestruturação social operada pelo fascismo é deslocado em boa medida para o terreno da crítica da ideologia, com o objetivo de fornecer argumentos de agitação e propaganda para aqueles que trabalham para o Partido. A análise do fascismo, tal como realizada por Pachukanis, é precisa, rica de conteúdo empírico; ao contrário, ela perde todo o caráter essencial nas reflexões de outros teóricos da Terceira Internacional”.[xiii]
O mais importante filósofo marxista do direito revela, também em sua análise do mais nocivo fenômeno do capitalismo de seu tempo, o fascismo, o rigor científico e a genialidade de sua reflexão.
Referência
Evguiéni Pachukanis. Fascismo. Tradução: Paula Vaz de Almeida. São Paulo, Boitempo, 2020, 128 págs.
Notas
[i] Luiz Felipe Brandão Osório, “Rapallo, uma ponte entre Weimar e Moscou”, em Gilberto Bercovici (org.), Cem anos da Constituição de Weimar (1919-2019) (São Paulo, QuartierLatin, 2019), p. 632.
[ii]Evguiéni B. Pachukanis, Teoria geral do direito e marxismo (São Paulo, Boitempo, 2017), p. 134-5, p. 151 e p. 173.
[iii] Márcio Bilharinho Naves, Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis (São Paulo, Boitempo, 2000), p. 127.
[iv]Evguiéni B. Pachukanis, Teoria geral do direito e marxismo, cit., p. 143.
[v] Ver, neste volume, p. 26.
[vi]Ver, neste volume, p. 48.
[vii] Remeto às reflexões sobre o aleatório na política desenvolvidas em “Encontro e forma: política e direito”, em Alysson Leandro Mascaro e Vittorio Morfino, Althusser e o materialismo aleatório (São Paulo, Contracorrente, 2020).
[viii]Ver, neste volume, p. 67.
[ix] Ver Friedrich Engels e Karl Kautsky, O socialismo jurídico (trad. Lívia Cotrim e Márcio Bilharinho Naves, São Paulo, Boitempo, 2012).
[x] Desenvolvo reflexões a respeito de tal período em Alysson Leandro Mascaro, “O marxismo e Weimar”, em Gilberto Bercovici (org.), Cem anos da Constituição de Weimar (1919-2019), cit., p. 53-82.
[xi] Ver, neste volume, p. 89.
[xii] Ver, neste volume, p. 117.
[xiii]ElmarAltvater, “O capitalismo se organiza: o debate marxista desde a Guerra Mundial até a crise de 1929”, em Eric J. Hobsbawm, História do marxismo, v. 8 (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987), p. 67-9.
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