Favelas cariocas e Palestina, quando a violência de estado é um negócio
Invasões de residências, armas e política da morte, esse é o contexto que apesar da distância, une duas realidades
Comunicadora comunitária e pesquisadora, Gizele Martins, moradora do conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, esteve pela segunda vez na Palestina no último mês de julho. Gizele presenciou uma realidade muito similar a que vive diariamente na Maré, a da violação dos direitos humanos, racismo e extermínio
Ela integra a articulação internacional Julho Negro, criada em 2016, que discute os impactos do racismo, da militarização e do apartheid no Brasil e no mundo. Gizele também apoia a campanha Stop The Wall, uma organização que há 15 anos luta em defesa dos direitos humanos, denunciando a política de ocupação de Israel na Palestina, e o BDS (Movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções contra o governo de Israel)
Caveirões, abordagens policiais, tortura (física e psicológica), invasões de residências, armas e política da morte, esse é o contexto que apesar da distância, une duas realidades no sofrimento e resistência de suas populações.
Realidades similares - A comunicadora conta como esse contato com esses movimentos em defesa dos direitos humanos na Palestina a fez conhecer a realidade dos povos subjugados pelo estado de Israel.
“Na época dos grandes eventos aqui no Brasil (Copa do Mundo e Olimpíada), entre 2014 e 2016, esses movimentos palestinos estiveram aqui em encontros com movimentos de favelas, de mães e familiares vítimas da violência policial no Rio de Janeiro, mostrando assim que nossas lutas tinham muitas conexões. Tanto em relação a empresas de armas que atuam na Palestina nas favelas do Rio, fornecendo armas, tecnologia de reconhecimento facial e drones, entre outros equipamentos, como nas lutas e resistências” – explica sobre a aproximação com os movimentos palestinos.
Crianças sem infância e jovens sem perspectivas - A jornalista mareense conta como foi sua impressão na primeira visita que fez à Palestina, há seis anos.
“Em 2017 estive pela primeira vez na Palestina, numa oportunidade que essas entidades palestinas deram ao movimento de favelas ficando lá 15 dias. Percorri todos os territórios da Cisjordânia, ficando muito chocada com a realidade dos muros que cercavam os territórios palestinos e com os checkpoints que fazem controle de entrada e saída das pessoas. Vi restrição de água, luz, internet, comida, a privação do acesso dessas populações à saúde e educação. Hospitais e escolas em escombros por causa dos bombardeios. Conheci histórias de crianças de cinco anos de idade que foram presas pelas forças israelenses, de crianças assassinadas por essas mesmas forças de ocupação e de crianças que não têm direito a ter uma infância, só pelo fato de serem palestinos. Um verdadeiro apartheid. Na realidade formam uma juventude sem qualquer possibilidade de perspectivas e futuro” – descreve a triste realidade dos territórios que são, em realidade, prisões a céu aberto.
Quando opressão e morte geram lucros - Gizele relata que observou que a Palestina é um grande laboratório de teste da política da morte, e que as empresas de armas e de tecnologia de segurança estão replicando esse método no Sul Global, América Latina, no Brasil, e nas favelas do Rio.
“Isso ocorre principalmente em territórios indígenas, negros e nas favelas, em territórios que são empobrecidos pelo capitalismo. E que os dominadores não abrem mão de controlar esses mesmos territórios. Existem outras empresas que controlam a água como a Nestlê, de controle facial como a Hewlett-Packard Company (HP), e diversas outras empresas que estão com Israel controlando e aplicando o apartheid na Palestina” – revelando os nomes dos parceiros da opressão.
Segundo o DBS, a HP fornece à Autoridade de População e Imigração de Israel os servidores Itanium exclusivos para o seu Sistema Aviv. O sistema permite ao governo controlar e aplicar o seu sistema de segregação racial e apartheid contra os cidadãos palestinos de Israel, e está diretamente envolvido no colonialismo dos colonos de Israel através da sua “base de dados Yesha”, que compila informações sobre cidadãos israelenses em colonatos ilegais na Palestina ocupada. Cisjordânia.
Mais de 1,7 milhões de pessoas assinaram uma petição apelando à HP para acabar com o seu papel no apartheid israelense e no colonialismo dos colonos. No final de 2016, a Semana Internacional de Ação do Boicote à HP incluiu 150 ações em 30 países apoiando o boicote à HP.
Negócios governamentais - O Brasil é um dos grandes compradores da indústria de armamentos de Israel. Em matéria publicada na Folha de S. Paulo, em janeiro de 2017, é informado que o Exército Brasileiro fechou acordo de R$ 6,3 bilhões com empresas israelenses para compra de blindados (caveirões). Uma das fornecedoras – a empresa Elbit – é acusada de ter construído drones que mataram 164 crianças palestinas em Gaza, durante a ofensiva de 2014. Os dados são da ONG Defense for Children International Palestine (DCI).
A mesma Elbit firmou, a partir de 2016, 34 contratos de fornecimento de serviços e equipamentos com o Ministério da Defesa, sendo a Marinha do Brasil sua única compradora. Os negócios totalizaram mais de R$ 75 milhões, e envolveram desde a aquisição de equipamentos de comunicação até modernização de carros de combate, desenvolvimento e renovação de sistemas operativos, entre outros produtos e serviços. Esses dados constam no Portal da Transparência do Governo Federal. Somente no governo Bolsonaro foram firmados 29 contratos.
Segundo uma reportagem do Brasil de Fato, produzida em 2016, a Copa do Mundo de 2014 serviu de impulso para as operações da Elbit no Brasil. Só em 2013, quando foi realizada a Copa das Confederações, a empresa recebeu R$ 102,6 milhões do governo, com drones sendo usados para monitorar, inclusive, as manifestações de rua daquele ano. No ano de 2014, a Elbit anunciou o fornecimento de uma linha de Hermes 900 para a Força Aérea Brasileira (FAB). O Brasil foi o oitavo país do mundo a adquirir essa aeronave, o drone mais moderno e mais potente fabricado pela empresa israelense. O modelo tem autonomia de voo de 36 horas e alcança raio de 300 km em relação à sua base em solo. É o dobro da capacidade do Hermes 450.
A Elbit é a maior empresa privada da área militar em Israel. Aqui no Brasil ela possui uma subsidiária que é sediada em Porto Alegre/RS, chamada AEL Sistemas Ltda. Só essa empresa firmou contratos com o Governo Federal que já ultrapassaram mais de R$ 702 milhões. São 29 contratos celebrados desde 2012, sendo que alguns só serão finalizados em 2027. O maior contrato de R$ 153.515.441,24 – firmado também com o Ministério da Defesa, tendo como a unidade contratante o Centro Logístico da Aeronáutica, para contratação de serviços de suporte logístico ( CLS) para os itens do sistema de aviônico da Aeronave F-5M. Os dados são do Portal da Transparência.
Já a estatal israelense Israel Aerospace Industries (IAI), teve firmados um total de 65 contratos , totalizando mais de R$ 22 milhões, de julho de 2019 até o último mês de agosto. São produtos e serviços adquiridos pelo Ministério da Defesa para a Aeronáutica, tendo a Polícia Federal como cliente final. Os dados também foram obtidos no Portal da Transparência.
A vida na Faixa de Gaza - A comunicadora comunitária conta que já participou de atividades no México, África do Sul, além do Brasil e, claro, Rio de Janeiro. Sempre promovendo campanhas em diferentes territórios contra os “muros” que separam, contra a indústria de armas e as empresas de tecnologia de segurança que aplicam o reconhecimento facial como negócio.
“Esse ano de 2023 tive a oportunidade de estar novamente na Palestina, levando um grupo de movimentos sociais, e percebi que encontrei uma Palestina mais intensa e tensa, mais perseguida e controlada, com direitos cada vez mais escassos. Acabei conhecendo um jovem palestino de 23 anos de idade que foi preso 33 vezes, presenciei um tanque de guerra na porta de uma escola. Visitei campos de refugiados onde o direito à água não existe, pois essa mesma água é controlada por Israel , sendo liberada a cada 15 dias. Fui à Cisjordânia, em Ramallah, onde a água só aparece uma vez por semana, com energia racionada por Israel” – conta.
Faixa de Gaza e Maré, realidades bem próximas - Para Gizele, na realidade, a Faixa de Gaza é o que o restante da Palestina é: cidades cercadas por muros, com o exército israelense invadindo casas.
“A Palestina é um grande laboratório para o que vai ser aplicado nas favelas, pois ali todas as tecnologias e armas são testadas na população para depois serem vendidas ao mundo. Basta dizer que o Brasil e seus estados são grandes compradores desse material bélico e também dessas tecnologias de controle de acesso. A favela em que eu moro, a Maré, já tem muro, já foi ocupada militarmente com tanques, em 2014, e agora, juntos, o governo federal e o governo do estado do Rio de Janeiro espalham câmeras de reconhecimento facial em diversos pontos da favela” – relatando a realidade na favela que mora” – finaliza.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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