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Luis Cosme Pinto

Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 61 anos de idade e 35 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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Festa na cozinha

O homem de suspensório e bigode fino surgiu em nossas vidas quando os machos nem chegavam perto da louça suja

Louça de cozinha (Foto: Pixabay free)

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Meu pai era amigo do Fonseca, que era colega do Lopes, que era primo do Vieira, que era vizinho do Tavares. Assim, Tavares entrou em casa: como o vizinho do primo do colega...

Um tempo em que a gente tratava muitos homens pelo sobrenome e na inseparável companhia do “seu”. Seu Pinto, Seu Mendes, Seu Carvalho, Seu Moreira. De Tavares nunca soubemos o primeiro nome. Nem fez falta.

Sem conhecer o dono da casa, Tavares titubeou em frente à porta. Mas o dia era de meu pai, que enquanto lhe sapecava as costas com as boas vindas, trovejou para quem quisesse ouvir: “Amigo do meu amigo é meu amigo também. Sinta-se em casa, rapaz.”

Apartamento apertado e lotado num almoço de domingo, em Vila Isabel. Na vitrola Sylvio Caldas e Dalva de Oliveira. Rango farto, cerveja sem fim, groselha gelada.

Minha mãe contratou Armanda, que matou galinhas, cozinhou panelas profundas de arroz, assou leitão, abriu a massa do pastel.

Armanda tinha hora e cerrou sobrancelhas diante da absurda quantidade de louça que transbordou pela pia e se espraiou até o tanque.

O que minha mãe nunca imaginou, muito menos Armanda, é que tínhamos Tavares. Tavares, o amigo do primo, o primo do colega...

Tavares deu golada graúda na groselha e, com a boca ainda cheia de croquete, implorou à minha mãe: “por favor, não se encoste na pia, pode ofender seu vestido. A senhora é a dona da casa”. 

Ele mesmo resolveria: “não conheço mesmo muita gente, estou sem assunto lá na sala, que é quente pra chuchu”. Então, espalhou sabão de coco na bucha e abraçou a cordilheira de louças, panelas e talheres. Tudo grudado de gordura, calda de caramelo. Rastos e restos. 

Com velocidade e firmeza, Tavares lavava, enxugava e guardava pratos e bandejas. Entre feliz e embasbacada, minha mãe viu Tavares abrir a escada. A faxina subia de patamar. ”Tá tudo engordurado aqui em cima, dona Therezinha!” Tavares esfregou as portas dos armários e baniu a camada grossa que escurecia a parede amarela de azulejos e fórmica. Com a vassoura de pelo em punho, também clareou o teto. 

Tavares desceu tão rápido quanto subiu, ajeitou o suspensório e passou um pano molhado no piso de cerâmica. Quando boa parte dos convidados já tinha trocado a monotonia da sala pelo show na cozinha, o herói da limpeza avisou.   “ A festa tá ótima, mas Celeste me espera no Cachambi.” 

Minha mãe fez questão, meu pai insistiu e Tavares saiu com olhos de sogra, meia dúzia de pasteis e uma fatia alentada de empadão de frango. Tudo apertadinho em pote plástico de banha de porco. 

Em passos macios nos seus sapatos impecáveis, Tavares deixou pra trás a surpresa dos cavalheiros e a alegria das madames numa tarde qualquer da década de 1960. 

Não acredito em coincidências, mas quase trinta anos passados da inesquecível performance em Vila Isabel, outro bom festeiro, também cuidadoso com o brilho dos pisantes, me provocou a memória a 400 quilômetros de distância. 

Era um jornalista, que podemos chamar de Dagoberto, pros íntimos Dagô. Tavares e Dagô, que nunca se viram, jamais recusaram festa e nunca se importaram se eram ou não convidados. 

Dagô, repórter, em Marília, vinha cobrir férias na TV em São Paulo. O único problema era que o canal em que trabalhávamos era outro, mesmo assim ele apareceu na festa porque conhecia de vista um cinegrafista, que também era da nossa equipe e então pediu a um colega, vizinho da anfitriã, que desse um jeito. O jeito foi dado. 

Tal qual Tavares, Dagô também teve seu momento de penetra. 

Com a cara de pau dos bons repórteres, Dagô se enturmou, bebeu e dançou como se o mundo fosse acabar. O sábado já era manhã de domingo, a dona da casa quase desmaiada de sono e Dagoberto se despediu solitário abrindo uma lata de cerveja e descendo pela escada para fumar o último minister.   

No fim do século XX, todo sábado tinha festa de jornalista e o boêmio Dagô – agora morador do Cambuci - era o primeiro a chegar e o último a sair. 

A produtora Carolina festejou o aniversário no apartamento que dividia com uma colega. Quando os últimos convidados se despediram, um deles ofereceu carona ao “arroz de festa”. Dagô negou com a frase que conquistou Carol, até então só uma conhecida. 

- Gente, vou ficar mais um pouco, não posso largar essa louça toda aqui para a Carolina lavar sozinha. 

A romântica malandragem virou folclore e deu em casamento. 

Há algum tempo, Dagô – talvez vencido pelos excessos - deixou de lavar a louça para a Carol. Antes da triste despedida, sempre que a gente se encontrava, eles me pediam para contar a história “do penetra do Cachambi, que lavava louça como ninguém.”   

*Festa na cozinha é uma história de boas lembranças, de boêmios reais e de nomes inventados.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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