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    Roberto Bueno

    Professor universitário, doutor em Filosofia do Direito (UFPR) e mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC)

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    Forças Armadas não gostaram da palavra genocídio. Aos fatos: o que dizem sobre 75 mil cadáveres?

    "Os militares precisam responder tão celeremente no campo da introdução de políticas sanitárias quanto foram capazes de processar judicialmente o Ministro Gilmar Mendes", diz o colunista Roberto Bueno. "Por qual motivo não respondem imediatamente sobre estes mortos que repousam em seus braços e a desgraça de seus familiares?", questiona

    (Foto: Marcos Corrêa/PR | REUTERS/Bruno Kelly)

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    Ordinariamente tenho proposto reflexões que não se caracterizam exatamente pela concisão. Hoje utilizo este espaço para realizar breve reflexão que concluirei com pergunta óbvia que precisa ser respondida pelos militares. Estes aparentaram profundo desgosto ao deparar com a manifestação do Ministro Gilmar Mendes no último sábado, dia 11.07.2020, em evento realizado pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IBDP) e a Revista IstoÉ. Na oportunidade o Ministro advertia desde Portugal que as Forças Armadas (FAs) corriam alto risco de tisnar indelevelmente a sua imagem ao associar-se a projeto genocida.

    Na sequência, ainda naquela tarde, as FAs acusaram o golpe e emitiram a primeira nota em resposta, em tom genérico e abstrato, laudatória de suas atividades durante o período de crise pandêmica. Logo saberíamos que as FAs não gostaram nada de ouvir publicamente sobre esta sua associação ao projeto genocida da população brasileira que, aliás, Mendes evitou mencionar que é o seu próprio, posto que é ela mesma a titular e garante do poder exercido formalmente pelo ocupante da Presidência. Provavelmente poderiam ter recepcionado certas críticas, mas a associação ao conceito de genocídio não lhes coube na já apertada farda. Soubemos que ali já não há folga ideológica, política e histórica suficiente para recepcionar crítica por crimes de sangue.

    O Alto Comando das três armas reagiu associadamente ao Ministério da Defesa, realizando problemático movimento ao unir instituição de Estado e outra de Governo que não podem confundir-se. Seus titulares redigiram e assinaram um par de notas públicas, a primeira dotada de tom mais leve e genérico focando o papel desenvolvido pelas FAs no período da crise sanitária e a segunda elaborando direta crítica ao Ministro Gilmar Mendes. Prometeram e protocolaram ação judicial junto à Procuradoria-Geral da República (PGR) em desfavor do Ministro Gilmar Mendes nesta segunda-feira, dia 13.07.2020, fundamentando-a em normas do Código Penal Militar e na Lei de Segurança Nacional. Esta é nefasta herança inspirada na cultura legislativa autoritária que assolou o Brasil durante décadas, isto sim, desprezando os dispositivos do mesmo documento legal que preveem crimes militares em tempos de paz nos termos do art. 9º, II, e, c/c III, a, e que, de tanto recordar, ao fim e ao cabo, pode resultar aplicado a quem tanto se empenha em vivificá-los.

    É notável como a reação militar judicial recheada de suposta indignação foi capaz de apresentar dimensão que permanece oculta à luz do debate público, servindo de espessa cobertura útil para o uso daqueles atores que estão previamente contratados e a postos para realizar a operação de ocultamento do óbvio e urgente: o genocídio. A reação judicial militar serviu para explicitar o interesse em criticar exclusivamente o mensageiro, e assim levar o que realmente interessa, a mensagem, ao esquecimento. Neste caso, a mensagem é gravíssima, e jamais poderia ser objeto de tergiversação. Historicamente talvez seja a mais grave das mensagens jamais veiculada no Brasil, e cabe reiterar: está em curso genocídio contra o povo brasileiro. Ele tem curso ao expor a íntegra da população brasileira, do extremo Sul ao extremo Norte do país, toda ela, ao risco de morte sob o signo da indiferença, desfaçatez e riso público demarcador do território da esbórnia em conjunção com o escárnio. Morram todos, falta dizer, se acaso não late no peito. As iniciativas para cumprir tal finalidade necrológica são bem conhecidas, e têm lugar através de ações políticas, administrativas, publicitárias e econômicas.

    A exposição do povo brasileiro ao risco de morte através do recurso a diversas dimensões agora se soma o uso da legislação pelo regime militar no poder valendo-se da Lei no. 14.021/2020, publicada no DOU de 8.07.2020, cujo objeto e foco exclusivo deveria a adoção de relevante conjunto de medidas para proteger as comunidades indígenas durante a pandemia de Covid-19. Sobre esta lei, sem embargo, o Presidente Jair Bolsonaro fez recair 16 vetos antes de sancioná-la. Os vetos abarcaram pontos nucleares para o cumprimento do objetivo legal, a saber, a proteção dos povos indígenas. Os vetos descaracterizaram o objetivo legal de facilitar aos indígenas o acesso a leitos hospitalares e respiradores mecânicos, mas também a itens básicos de higiene, além de, neste momento crítico, a garantia de acesso das aldeias à água potável.

    O que significa restringir meios indispensáveis à vida a todo um vasto segmento de uma população? Genocídio ou o quê? Como os militares pretendem classificar retirar água de quem dela necessita em momento de urgência em que ademais de cumprir a finalidade precípua de hidratação do organismo o recurso hídrico é também indispensável para realizar a higiene indispensável para combater a disseminação do vírus? Como classificar tais vetos quando, precisamente entre os indígenas, os recursos disponíveis deveriam ser mais abundantes em face de sua maior sensibilidade ao contágio pelo Covid-19?

    Quando as FAs reagem judicialmente contra o Ministro Gilmar Mendes por alertá-las para o desfecho iminente de sua associação com projeto de poder genocida, cabe perguntar o óbvio: se não gostaram da carga conceitual que o vocábulo contém, por qual motivo as FAs não se debruçam em responder sobre o óbvio, a saber, os oficialmente reconhecidos 75 mil cadáveres que repousam em seus braços? Por qual motivo não respondem imediatamente sobre estes mortos que repousam em seus braços e a desgraça de seus familiares?

    Por fim, por qual motivo as FAs não se empenham, imediatamente, em apresentar política de saúde pública eficiente para evitar que esta (falta) de política sanitária gere ainda outras tantas dezenas de milhares de mortes já contratadas? Acaso não foi percebido que a repetição da mesma política acarretará nos mesmos resultados letais para o povo brasileiro? Não sendo crível que as FAs se mantenham indiferentes aos resultados das políticas que permitem a produção da morte em larga escala, aqueles hoje ofendidos pela descrição da realidade precisam inverter a tendência futura já desenhada pela adoção de políticas no momento presente.

    Os militares precisam responder tão celeremente no campo da introdução de políticas sanitárias quanto foram capazes de processar judicialmente o Ministro Gilmar Mendes. Não precisaram de mais de dois dias para proteger a sua honra pessoal, mas tardam desde março de 2020 até meados deste mês de julho em tomar medidas para proteger a vida da população brasileira que morre diariamente na casa do milhar. Precisam responder imediatamente com ações efetivas para evitar manchar o país do sangue de mais outras muitas dezenas de milhares de cadáveres de brasileiros(as) antes de tentar limpar judicialmente a sua farda, pois a toga poderá não dispor de suficiente equipamento para o que a história é que registra sem perdão.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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