TV 247 logo
    Marconi Moura de Lima Burum avatar

    Marconi Moura de Lima Burum

    Mestre em Direitos Humanos e Cidadania pela UnB, abraçado às epistemologias do Direito Achado na Rua; pós-graduado em Direito Público e graduado em Letras. Foi Secretário de Educação e Cultura em Cidade Ocidental. No Brasil 247, inscreve questões ao debate de uma nova estética civilizatória

    151 artigos

    HOME > blog

    Frei Gilson e a má-fé das interpretações bíblicas à conveniência dos tempos

    Frei Gilson se superou em suas falas fáceis e gratuitas a milhões de desavisados

    Frei Gilson (Foto: Divulgação )

    Todos – ou quase todos – conhecem este novo “ídolo” das redes sociais: Frei Gilson. Duplamente perigoso é um sacerdote se tornar um popstar. Primeiro, porque pode se confundir na arrogância e vaidade que está a “beiço de pulga” para quem atinge o alto grau da fama (pois somente uma formação de caráter digno e firme, afastam as ações turvas destes sujeitos). Segundo, porque o gradiente de sua pedagogia (seja honesta ou desonesta) é imensamente maior que a dos sacerdotes em suas paróquias de bairros afora.

    Frei Gilson é hoje uma celebridade. Suas lives nas madrugadas costumam “arrebanhar” centenas de milhares de pessoas. A maioria delas, insegura com o tipo de mundo tão instável destes tempos e que precisam se agarrar de alguma forma em qualquer fagulha de esperança (mensagens de afirmação) para ser possível viver neste mundo tão complexo. Contudo, num vídeo de abril de 2024 que viralizou neste último dia 8 de março (Dia Internacional da Mulher), Frei Gilson se superou em suas falas fáceis e gratuitas a milhões de desavisados; melhor explicando: desavisadas também. Ele fazia uma pregação para gigantesca plateia composta principalmente por mulheres. E, apegado especialmente a um trecho do Antigo Testamento na Bíblia, vociferou todo o contexto saído de sua “cabecinha” preconceituosa e criativa.

    Assim afirmou o sacerdote: “Olha o texto bíblico: Gênesis 2, 18: ‘Vou dar-lhe uma auxiliar que lhe seja adequada’”. Em seguida explica sua interpretação do texto bíblico: “Aqui você já começa a entender qual é a missão de uma mulher: ela nasceu para auxiliar um homem”. Todo o mais na pregação colocava a mulher na condição de submissa, reafirmando o espectro colonial e opressor de uma sociedade que, sem pedirmos, é machista e misógina (e violenta) com as mulheres.

    Não irei aqui acrescentar mais um tijolo nas críticas dirigidas a Frei Gilson por seu patético comportamento em relação ao fator feminino na existência (e na criação do mundo). Isso já está bem colocado no debate público. Contudo, é importante desmascarar sujeitos que acham que entendem tudo de Bíblia e são os doutores da hermenêutica sagrada; diretamente conectados ao cérebro de Deus e, portanto, aptos a “traduzir” a mensagem santa na exatidão do Divino. Pura arrogância com uma dose e meia de falácia e muitas pitadas de hipocrisia.

    1) Ler a Bíblia e retirar da compreensão textual o seu tempo histórico, a civilização (sociedade) em que se desdobram as cenas, fatos e narrativas bíblicas é, ou por má-fé, ou ignorância induzir às pessoas (os seguidores) ao erro;

    2) Ler a Bíblia em Língua Portuguesa e esquecer-se que sua fonte original é a Língua Aramaica, portanto, as idiossincrasias, os sentidos, os significados e significantes e todos os modais da linguagem lhe compreendem uma intenção que não é necessariamente a outra; que as traduções mais aproximadas da realidade descritiva do povo hebreu foram escritas em grego e latim, logo, também vão mais proximamente ao evento fático, ainda assim com risco de “contaminação” do intento do texto, não é lealdade à Palavra; e finalmente,

    3) Ler a Bíblia por “pedaços” de versículos, ou nuclear o sentido do “religare”  (da religião) aos livros do Antigo Testamento, é pretender uma falsa moral conservadora que tão somente atende aos interesses do ego de dado sujeito e não ao fiel conteúdo de um novo ethos libertador, emancipador ou ao menos espiritualmente justo e necessário.

    Para exemplificar um pouco o que dissemos acima, vejamos esta frase de Jesus Cristo: “Em verdade vos digo (…) que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus” (Mateus 19, 22-24). Ora, aparentemente se refere a um absurdo tal enunciado. Entretanto, ao menos duas hipóteses corroboram com o discurso. A primeira é que as palavras “camelo” e “corda” são escritas da mesma maneira em Aramaico (“gml”) e possuem a mesma pronúncia em Grego (embora os que as distinguem na escrita seja uma vogal: “kamelon” e “kamilon”). A segunda possibilidade é que nos primeiros tempos de organização das sociedades em cidades e fortalezas, havia muros para proteger seus membros. E os gigantescos portões eram fechados em determinada hora do dia para oferecer maior segurança contra invasores. Contudo, existiam as chamadas “portinholas”, nas quais as pessoas e animais somente entravam se abaixando, muitas vezes ao limite. Portanto, quem chegasse dos campos ou os viajantes, haveria que buscar estas portinholas para ingresso na cidade. (Obs.: não se pode afirmar com clareza qual era a intenção de Cristo. O fato é que um leitor, ou um preletor desatento pode ser induzido ou induzir ao erro a partir de tal assertiva.)

    No entanto, o campo portentoso deste texto é analisar o personagem mais importante para Frei Gilson (supõe-se) e para todos os demais cristãos: Jesus de Nazaré! Ora, se é verdade que são seguidores do Salvador; se é sincera a vontade de se converter e crê no Evangelho; se se busca realmente o Reino dos Céus, qual é a lógica de não aceitar que o Novo Testamento veio para superar dezenas, centenas de premissas do Antigo Testamento. Ao menos todas as que se impõem como: i) opressão; ii) violência; iii) vingança; iv) sacrifício, enfim, tudo que tem como núcleo a dor e/ou o sofrimento desnecessários. Ou não é verdade a colisão de conceitos – para não trazer todos, alguns – entre o Antigo e o Novo Testamento?

    No livro do Êxodo 21,24 está determinada a vingança: “Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé.”. No entanto, em Mateus 5, 38-39, há uma nova ordem, onde Cristo vai dizer: “Vocês ouviram o que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, lhes digo: Não se vinguem dos que lhes fazem mal. Se alguém lhe der um tapa na cara, vire o outro lado para ele bater também.”

    Em Gênesis, 6, vemos a ira de Deus: “Quando os homens começaram a multiplicar-se sobre a terra, (…) O Senhor viu que a maldade dos homens era grande na terra, e que todos os pensamentos de seu coração estavam continuamente voltados para o mal. O Senhor arrependeu-se de ter criado o homem na terra, e teve o coração ferido de íntima dor. E disse: ‘Exterminarei da superfície da terra o homem que criei (...), porque eu me arrependo de tê-los criado’”. No livro de João 3,17, todavia, a misericórdia, a compaixão e a reconciliação são a máxima da ação do Criador: “Pois Deus não enviou o Filho ao mundo para condená-lo, mas para que o mundo seja salvo por ele”. 

    Antigo Testamento: “Dizei a toda a assembleia de Israel: no décimo dia deste mês cada um de vós tome um cordeiro por família, um cordeiro por casa. (…) Tomarão do seu sangue e o porão sobre as duas ombreiras e sobre a moldura da porta das casas em que o comerem”. (Ex 12, 3; Ex 12, 7). Novo Testamento: “No dia seguinte, João viu Jesus que vinha a ele e disse: ‘Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo’”. (Jo, 1, 29).

    Quanto à mulher, assim como todo sujeito que naquela sociedade hebraica vivesse em mecanismos (inclusive legais) de opressão, Cristo vai subverter: “Mestre, esta mulher foi apanhada, no próprio ato, adulterando. E na lei nos mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes?” (Jo, 8, 4-5). O redentor, da forma mais singela e educada, declara a injustiça desta antiga lei: “Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela.” (Jo, 8, 7). Se Cristo optasse pelo paradigma do Antigo Testamento, reiteraria a necessidade de que se matasse aquela mulher; não beijaria o leproso; não tocaria a mulher menstruada; não curaria, nem arrancaria o sofrimento de outrem no sábado. Tudo isso era proibido pela ordem do passado.

    Poderíamos ficar horas e laudas trazendo as contradições entre o Novo e o Antigo Testamentos. Contudo, pretendemos derradeiramente elucidar o real papel da mulher na história da salvação e da sociedade da mulher na Bíblia que, bem longe de ser o que o Frei Gilson invoca, é um contexto de outra estética civilizatória e religiosa.

    Isto posto, as mulheres, para o Novo Testamento, não são “auxiliares”: são protagonistas, inclusive do fato mais importante da redenção (seguido do sacrifício da cruz): a ressurreição! Vejamos esta síntese em Mateus 24: “No primeiro dia da semana, muito cedo, dirigiram-se ao sepulcro com os aromas que haviam preparado”. No entanto, “‘Por que buscais entre os mortos aquele que está vivo? Não está aqui, mas ressuscitou’ (…) Eram elas Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago; as outras suas amigas relataram aos apóstolos a mesma coisa”. Elas, as mulheres, foram as primeiras testemunhas da vitória que marca as religiões cristãs.

    Destarte, ao Frei Gilson, com toda a sua carga de misoginia e desserviço à sociedade, reiterando (ainda que indiretamente) as formas de violência contras as mulheres, só posso dizer isso: “as coisas antigas se foram” (Apocalipse 21, 4), portanto, “Eis que faço novas todas as coisas” (Apocalipse 21, 6).

    …………………..

    Nota: antes que eu seja cancelado por alguém afirmando que eu não possuo lugar de fala, afirmo que sou Católico e praticante. Contudo, por mais que eu respeite a minha Fé, não posso ficar em silêncio diante de injustiças com as mulheres – que é evidente: se desdobra na rotina da sociedade pela potência do discurso de alguém tão famoso como o Frei Gilson.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

    ❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com redacao@brasil247.com.br.

    ✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.

    iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

    Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: