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    Cássio Vilela Prado

    Escritor

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    Genocídio em Brumadinho: política e assistência em saúde mental

    Além dos danos materiais e ambientais incalculáveis infligidos pelo derramamento de cerca de 12 milhões de metros cúbicos de lama tóxica, provocando o correlato derramamento de sangue e lágrimas, ainda se vê o inapagável e impagável dano mental causado à maioria dos sobreviventes e dos familiares das pessoas executadas, vítimas do 'genocídio premeditado'

    Genocídio em Brumadinho: política e assistência em saúde mental

    Faz quatros meses da 'implosão criminosa' de uma das barragens de 'excrementos' altamente lesivos à saúde humana e ao ecossistema do Vale do Paraopeba, executando sumariamente milhares de seres humanos e não-humanos (hoje também considerados sujeitos de direitos): Rio Paraopeba (afluente do Rio São Francisco), plantas, mamíferos, anfíbios, répteis, aves e peixes, condenando e enlameando, de forma permanente, a História de Brumadinho bem como de seus milhares de habitantes, sobretudo aqueles diretamente envolvidos na 'chacina explosiva', deflagrada em 25 de janeiro de 2019, às 12:28 horas, instante este congelado na temporalidade dos sujeitos vítimas do massacre.

    Além dos danos materiais e ambientais incalculáveis infligidos pelo derramamento de cerca de 12 milhões de metros cúbicos de lama tóxica, provocando o correlato derramamento de sangue e lágrimas, ainda se vê o inapagável e impagável dano mental causado à maioria dos sobreviventes e dos familiares das pessoas executadas, vítimas do 'genocídio premeditado' (conforme investigações em curso da Polícia Federal e Ministério Público) assim como se verifica a degradação moral e psíquica dos proprietários e moradores das localizações destruídas e contaminadas...

    Não se sabe ao certo a dimensão da destruição causada pelo crime hediondo provocado pela ruptura da barragem (esgoto altamente tóxico), mas já se pode conjecturar acerca dos danos irreversíveis atuais e vindouros, baseando-se em vasta literatura bibliografia sobre o tema e, eminentemente, na escuta da realidade que salta aos ouvidos dos profissionais mais atentos.

    No 'frisson maníaco' de fomentar as atividades econômicas do município (em específico o Turismo), numa espécie de "desmentido" da grave realidade dos fatos presentes e as suas prováveis sequelas futuras, percebe-se também uma atitude histérica de certa indiferença (negação como mecanismo de defesa) em relação as consequências gravíssimas do hecatombe, inclusive por aqueles que deveriam estar mais atentos ...

    Não precisa ser "profeta do apocalipse" para fazer um prognóstico nada positivo em face ao estado das coisas. Apesar de certa histeria coletiva, perfeitamente justificada, ela precisa ser escutada, pois junto a ela existe sempre um 'algo a mais' (constitucional, estrutural pronto para se romper a qualquer instante, feito a barragem de rejeitos) a ser dito pelos sujeitos individuais e sociais. Nota-se, entretanto, certo desdém ideológico (ou uma incapacidade de escuta técnica e ética clínico-social) do fenômeno histérico coletivo e individual erigido a partir de traços identificatórios, noutros tantos não. Tal obstrução mental política e clínico-social tem dificultado sobremaneira a capacidade de elaborar a situação subjetiva, tanto no nível macro e micro. Basta escutar as comunidades de Mariana, moradores ribeirinhos e da polis, próximos ao Rio Doce, que há mais de três anos lutam diuturnamente por justiça, respeito e cidadania, destruídos pela barragem de "Fundão" - controlada pela Samarco Mineração S.A., cujo monopólio acionário é da mineradora brasileira reincidente Vale S.A. e a anglo-australiana BHP Billiton.

    Embora seja muito louvável e pertinente a preocupação com as atividades econômicas do município de Brumadinho, é preciso priorizar' de forma concomitantemente a Saúde Biopsicossocial da população atingida direta e indiretamente pelo 'Esgoto-Vale'.

    Faz-se necessário mais atenção e cuidado por parte dos agentes públicos, num processo de autocrítica e de humildade sobre o "real" que ainda sobressalta as nossas cabeças e nossos corpos, em especial dos agentes públicos responsáveis pela Saúde, desde a Atenção Primária à Atenção Terciária e Saúde Complementar e Suplementar, passando necessariamente pela Saúde Secundária do já obsoleto CAPS, refém da normatização e do engessamento anacrônico à Portaria MS n° 336/2002 agora cooptador dos profissionais aprovados no último processo seletivo para realizar "matriciamento" - fantasia antiga da Saúde Mental -. Ao que parece, processo custeado pela Vale, haja vista a inoperância 'psi' dos profissionais daquela empresa para a assistência aos atingidos: "eles vêm e somem. Não escutam a nossa dor. São impacientes". (Relato de moradores das comunidades do Córrego do Feijão, Parque da Cachoeira e Alberto Flores e de profissionais de ONGs, nos locais mais atingidos diretamente pela lama).

    Talvez intempestivo e bastante inoportuno, no momento, priorizar "ações de matriciamento" nas unidades das equipes da Atenção Básica e outros, desvinculadas de ações profissionais da clínica social e individual, aliás, esse parece que não foi o objetivo proposto pela Vale (seria assistência direta à população e não apoio matricial aos funcionários da AB), tão esperado e necessário para população de Brumadinho. Portanto, imaginava-se que a realização do último processo seletivo para profissionais da Saúde e da Assistência Social teria como objetivo principal a prestação de assistência direta à população, de forma individual e/ou grupal, quando da aquiescência dos sujeito individuais e da indicação técnica, e não o contrário, em forma de pacotes. Diga-se de passagem, tal 'perspectiva de tratamento' já era ofertada pelos profissionais anteriores do NASF (Núcleo de Apoio à Saúde da Família) municipal.

    Frise-se que tal leitura da realidade pós-massacre da Vale ora realizada é fruto da passagem deste profissional por aproximadamente 20 anos na Saúde Mental do municipal, portanto não se trata de tergiversações técnicas ou pessoais, nem é hora de questões pessoais e politiqueiras diante da gravidade da situação geral do município.

    É importante a "clínica do apoio matricial ou da delegação", contudo as equipes da Atenção Básica não possuem suporte, recursos humanos, tempo nem cultura (ethos) para sentar-se tacitamente à mesa, principalmente neste momento crítico, para "enfrentar" o "discurso do mestre e do saber" terceirizados. E, o mais importante a saber: é isto que população deseja agora? E os profissionais da Atenção Básica? Foram todos escutados? Este seria o primeiro passo. Parece que não foi realizado: escutar os coletivos e os sujeitos singulares. Escutar a realidade cotidiana inflada pela tragédia que aumentou exponencialmente a demanda da população por atendimentos múltiplos e variados em várias áreas técnicas da AB e dos demais Serviços de Saúde do município. Insensatez?

    Para dramatizar mais a situação nas UBS (Unidades de Atenção Básica), a procura por declarações de cadastros dos usuários (e não usuários) nos Postos de Saúde virou caso de Polícia e do MP (Ministério Público), devido à correria às Unidades de Saúde, nem sempre por moradores residentes em Brumadinho no dia do rompimento da barragem tóxica da Vale (25/01/19), exigência da empresa para pagar as indenizações acordadas por um período de doze meses. Outra vez, parece que os funcionários da Atenção Básica não foram devidamente escutados sobre a inviabilidade do fornecimento de tais declarações cadastrais na celebração desse acordo.

    Mais uma vez insisto na "escuta" técnica e ética dos sujeitos e coletivos, pois onde há sujeito do desejo, há o sujeito do inconsciente pulsando. Mas para que o mesmo se insinue é fundamental ter a quem se dirigir, sempre a um Outro da escuta, ofertando-lhe voz ativa. O sujeito do inconsciente, inaugurado pela Psicanálise, não é o eu da consciência iludido com suas supostas verdades superficiais. O sujeito é um efeito da linguagem, do simbólico no qual ele busca o seu desvelamento, a sua verdade, na cadeia dos significantes, desimaginarizando-se e socando o real sem nome, construindo significações. Somente assim uma verdade pode ser produzida, subvertendo assim o discurso diametralmente oposto do mestre e do saber, circunscritos nos modus vivendi e operandi do discurso capitalista, que sempre traz a oferta de mercadorias, pacotes e modelos terapêuticos não demandados. A verdade do sujeito deve ser produzida entre e além dos significantes que o determinam, nos tropeços da fala.

    A tendência do discurso do mestre e do saber, subsumidos às rédeas do discurso do capitalista, é fetichizar a sua mercadoria, reificando os sujeitos para que a sua engrenagem operante funcione ad infinitum. E olha que tem funcionado bem também pelas bandas das brumas, pulverizadas pelo pó das lamas tóxicas, enferrujando e empoeirando as nossas faces, nossos olhos, nossos pulmões e nossos corações: um presente ofertado pelas 'mentes brilhantes', sócias alienadas do capitalismo predatório.

    Entrementes, tempos atípicos requerem atitudes profissionais e políticas atípicas, obviamente sem perder de vista a equidade, a informalidade, a imparcialidade, a moralidade e demais requisitos mínimos do Estado Democrático de Direitos: público, individuais e coletivos, conforme determina a nossa surrada Constituição Federal, que sobrepõe-se a Portarias caducas como a n° 336/MS 2002, lembrando que já está em vigor a Portaria n° 3588/MS 2017, atualmente modificada (2019), retirando o CAPS do protagonismo em Saúde Mental e que já trazia em seu bojo:

    "Seção I

    Das Disposições Gerais

    Art. 50-J. Fica instituída, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Equipe Multiprofissional de Atenção Especializada em Saúde Mental.

    § 1º A Equipe referida no caput é parte da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), constituindo estratégia para atenção integral à pessoa com transtornos mentais moderados;

    § 2º As Equipes têm por objetivo prestar atenção multiprofissional em saúde mental, respondendo à necessidade de atendimento especializado identificado pela atenção básica, integrando-se aos demais serviços das redes de atenção à saúde, amparada nos comandos da Lei 10.216 de 2001;

    § 3º A assistência será organizada a partir da atenção básica, que fará a estratificação de risco para determinar casos a serem referenciados.

    § 4º O custeio das equipes dar-se-á na forma do art. 1.062- A da Portaria de Consolidação nº 6/GM/MS, de 28 de setembro de 2017.

    Seção II

    Art. 50-K. Compete às equipes:

    I - ampliar o acesso à assistência em saúde mental para pessoas de todas as faixas etárias com transtornos mentais mais prevalentes, como transtornos de humor, dependência química e transtornos de ansiedade;

    II - prestar assistência multiprofissional às pessoas com transtornos mentais moderados, encaminhados pela Atenção Básica;

    III - constituir preferencialmente referência regional para assistência ambulatorial especializada em saúde mental;

    IV - trabalhar de maneira integrada com outros pontos de atenção das redes do SUS; e

    V - estabelecer articulação com demais serviços do SUS e com o Sistema Único de Assistência Social, de forma a garantir direitos de cidadania, cuidado transdisciplinar e ação intersetorial."

    Postas estas considerações técnicas, é preocupante ainda a posição silenciosa dos gestores da Saúde Mental municipal quanto à prevenção e o tratamento efetivos aos usuários de álcool e outras drogas.

    Paradoxalmente, as indenizações individuais pagas pela mentora e executora da tragédia em Brumadinho têm apresentado duas faces: por um lado aquece o comércio local - inclusive inflacionando os produtos de primeira necessidade, vestuário e outros - com a correspondente fantasia do consumo de grande parte da população, coisas da 'exumação' das subjetividades promovida pelo 'discurso do capitalista' (Dany-Robert Dufort, no livro: "A arte de reduzir as cabeças"); por outro lado, percebe-se o perigoso abandono dos empregos e subempregos e o aumento considerável do uso de álcool, antidepressivos e benzodiazepínicos, podendo incapacitar posteriormente grande parte da mão de obra necessária tanto aos patrões quanto aos vassalos enquanto forma de subsistência de ambos, nesse inferno de vida sacramentalizada e naturalizada pelo império neoliberal do capitalismo silvestre, com o inevitável surgimento e recrudescimento de alterações mentais graves, hipertensão, diabetes, problemas cardiovasculares-respiratórios, etc. Já constam cinco casos notificados de tentativas de autoextermínio, porém é possível dizer que já são vinte e cinco, embora ainda não notificados oficialmente, conforme dito na última audiência pública da CPI externa da Câmara Federal, realizada em Brumadinho.
    Nem pretendo entrar no campo da Saúde do Trânsito, Limpeza Urbana e Rural e Infraestrutura necessárias imediatas, deixarei aos 'especialistas' da área.

    Especificamente, quanto às Políticas Públicas de Assistência à Saúde Mental, está passando da hora da reflexão coletiva, sob pena de permanecermos na lama e nela naufragarmos, embora já esteja seca.

    Este texto pode ser uma produção paranoide persecutória com a Saúde Mental municipal, conforme dirá certas ilações retóricas diagnósticas convenientes, todavia eu não sou mais um paranoico isolado. Somos vários profissionais e partes de um grupo de paranoicos e paranoicas que aumenta gradativamente a cada dia.

    Lembrando o poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891), do qual o psicanalista Jacques Lacan e o pintor espanhol Salvador Dali se embriagaram na construção de suas teses sobre a paranoia: "O eu é um outro", independentemente de quaisquer 'versões denegatórias' subjetivas e corporais à "la belle indiferença l'hystérie", quiçá do "verleugnung" (desmentido) da castração na posição perversa, quando "o outro não existe".

    Mas o amanhã parece que chegará... Não se sabe exatamente como e quando.

    No mais, caso impere a normatização das Portarias, que seja lida ou relida a Portaria MS n° 3588/2017, artigos 50-J e 50-K. Entretanto, sobre certa epistemologia da ciência, termino descontente, com o filósofo Gaston Bachelard (1884-1962) - "A Epistemologia". Rio de Janeiro, Edições 70, p. 22:

    "Esses filósofos que têm a vocação da imobilidade não podem permanecer estranhos a esta repentina juventude de pensamento e de ação que caracteriza nosso tempo. (...) O homem luta contra forças enormes. Ele enfrenta, em seu drama, forças desconhecidas. Somente uma sabedoria dinâmica, a sabedoria necessária ao despertar diante de um universo novo, pode ser uma força operante, capaz de fazer face a um novo desconhecido. (...) A ciência, portanto, não deixa de ser um estado incessante de criação e inovação: ruptura, repetição, construção, priorizando a diferença, o detalhe, o descompasso entre sujeito e objeto, o fim dos pontos fixos."

    Cortes, recortes, desconstruções.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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