Globo de Ouro para Fernanda Torres mostra que crimes da ditadura não podem ser esquecidos nem anistiados
Ainda Estou Aqui resgata a memória de Eunice Paiva e nos mostra que anistia é a pior solução para os que assassinam e subvertem a democracia, diz Aquiles Lins
A vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro de melhor atriz pelo filme Ainda Estou Aqui transcende a celebração de um feito histórico para o cinema brasileiro. O prêmio é, acima de tudo, um convite à reflexão sobre a importância de preservar a memória e buscar justiça pelos crimes cometidos durante a Ditadura Militar brasileira.
Na obra dirigida por Walter Salles, Fernanda interpreta Eunice Paiva, advogada e viúva do deputado federal Rubens Paiva, morto sob tortura em 1971 após ser sequestrado por agentes do regime. A premiação não apenas reconhece o talento de Fernanda Torres, mas também dá visibilidade a uma história que o Brasil ainda luta para enfrentar. Eunice Paiva simboliza a resiliência em meio à dor e a busca incansável por justiça, mesmo diante de um Estado que se recusou a reconhecer seus crimes por décadas. O discurso de Fernanda Torres ao receber o prêmio reflete a força da arte como resistência. A atriz dedicou a premiação à mãe, Fernanda Montenegro, que há 25 anos venceu o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro com Central do Brasil, também dirigido por Walter Sales.
A celebração de Ainda Estou Aqui em uma premiação internacional como o Globo de Ouro é um lembrete de que a cultura pode ser uma ponte para revisitar o passado e iluminar os erros que não podem ser repetidos. Enquanto o país não se comprometer plenamente com a justiça e a reparação, as feridas da Ditadura continuarão abertas.
O reconhecimento internacional do filme, impulsionado pelo talento de Fernanda Torres e pela coragem das histórias que ele conta, é um passo importante para que o Brasil não se esqueça de seu passado e para que a sociedade reforce seu compromisso com os direitos humanos e a democracia.
Importância da memória
A Ditadura Militar brasileira (1964-1985) deixou um rastro de violência que ainda ecoa na sociedade. Apesar das inúmeras evidências de tortura e assassinatos políticos, a Lei da Anistia de 1979 blindou os responsáveis de qualquer julgamento, legando-nos uma ferida aberta que impede o país de avançar plenamente na consolidação de sua democracia.
Nesse contexto, trabalhos como o de Marcelo Rubens Paiva e produções cinematográficas como Ainda Estou Aqui desempenham um papel crucial. Eles dão voz às vítimas e às famílias, preservando memórias que o tempo e a negligência institucional tentam apagar. Mais do que relatos históricos, são lembretes da urgência de um debate nacional sobre a responsabilização de quem violou direitos humanos.
Instituída em 2011 pela presidente Dilma Rousseff, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) documentou graves violações contra os direitos humanos cometidas pelo regime militar, identificando responsáveis e resgatando histórias de centenas de vítimas. Embora seu relatório final tenha sido um marco, os avanços na reparação às famílias e na responsabilização dos agentes da repressão permanecem tímidos. O caso de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado, expõe as lacunas de um país que ainda convive com os fantasmas do autoritarismo. Sua história só veio à tona oficialmente mais de 40 anos após sua morte, revelando o impacto do silêncio e da impunidade na consolidação da verdade histórica.
A luta de Eunice Paiva não foi em vão. Hoje, familiares de vítimas de crimes cometidos pela Ditadura Militar já podem ir ao cartório e solicitar a retificação da certidão de óbito para constar que seus entes foram vítimas de “morte não natural, violenta, causada pelo Estado a desaparecido no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado em 1964”. Ainda Estou Aqui nos mostra que anistia é a pior solução para os agentes do estado que assassinam e subvertem a democracia.
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