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    Antonio Lassance

    Antonio Lassance é doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB)

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    Golpismo sim, senhor

    As manifestações do dia 15 são uma marcha golpista, antidemocrática, hipócrita, financiada empresarialmente e comandada por aqueles que perderam a eleição

    As manifestações do dia 15 são uma marcha golpista, antidemocrática, hipócrita, financiada empresarialmente e comandada por aqueles que perderam a eleição (Foto: Antonio Lassance)

    (originalmente publicado na Carta Maior)

    Era uma vez uma manifestação que se dizia em defesa do Brasil, da democracia e contra a corrupção. Aconteceria em várias capitais do país e reuniria todos os cidadãos de bem, honestos e interessados em lutar contra os desmandos e malfeitos que tomavam conta do país.

    Era um movimento apartidário, de pessoas indignadas que abominavam a política como ela é e que resolveram tomar uma atitude em defesa da moral e dos bons costumes na política e na sociedade.

    Palavras de ordem pediam a renúncia ou afastamento (o que hoje se chama pelo nome técnico de impeachment) de quem ocupava a Presidência da República. Uma minoria mais afoita pedia abertamente um golpe militar para varrer a sujeira que contaminava as instituições.

    A imprensa golpista deu a essa iniciativa e a seu espírito aguerrido a mais ampla divulgação - antes, durante e depois. Celebridades se manifestaram, como que tomadas por imperioso e urgente esforço de emprestar um pouco de seu brilho àquele espetáculo.

    Empresários benevolentes patrocinaram os gastos como quem paga um banquete caro, mas que vale a pena pelo que pode proporcionar num futuro próximo.

    O evento foi um sucesso de público e crítica. Levou milhões às ruas. Se não levou, a imprensa golpista falou que levou e reproduziu imagens de aglomerações de centenas e mesmo milhares de pessoas que fariam os milhões parecerem verdade. Até mesmo expressões do tipo 'o país inteiro está com a gente' e 'ninguém aguenta mais' tornariam-se mentiras muito sinceras.

    Um detalhe importante é que as pessoas se manifestavam por meio de cartazes que diziam 'queremos governo honesto', 'verde e amarelo, sem foice e sem martelo' e também pediam políticos no xadrez - não todos, só os que incomodavam. Afinal, é para isso que servem as prisões, para colocar lá as pessoas que não toleramos, não é mesmo?

    A primeira daquelas marchas aconteceu há cerca de meio século - tempo suficiente para que muitos jamais tenham ouvido falar dela e outros a releguem ao esquecimento. Tempo suficiente para que a fórmula gasta possa ser reprisada sem que alguém pense já ter visto esse filme.

    A primeira dessas manifestações ocorreu em São Paulo, a 19 de março do ano de 1964. A marcha apartidária era organizada por políticos reacionários de partidos de direita.

    O combate à corrupção tinha o apoio entusiasmado do governador de São Paulo, Adhemar de Barros, talvez o primeiro político brasileiro associado ao epíteto "rouba, mas faz".

    Foi apelidada de Marcha da Família com Deus, pela Liberdade, um slogan impositivo e bastante eficiente; afinal, quem não está com Deus, pela família e pela liberdade bom sujeito não é.

    Nas manifestações de 1964, quando as pessoas 'de bem' chegavam, ao invés de Deus, família e liberdade, se deparavam com cartazes um pouco diferentes, do tipo 'tá chegando a hora de Jango ir embora', 'Brizola no xadrez' e 'intervenção militar, já!'. Faz parte da democracia cada um dizer o que quer, não é mesmo?

    O espírito cívico e democrático do evento foi saudado como o primeiro passo para um golpe que, em 1º de abril daquele ano, instaurou uma ditadura. O trabalho de limpar o país da corrupção foi tão bem feito que nos deixou de legado, como maiores referências da política nacional de então, figuras como Paulo Maluf, José Sarney e Antônio Carlos Magalhães.

    Em prol da liberdade se fez o Estado de sítio, a censura e a tortura em larga escala. Os que invocaram o nome de Deus transformaram os verbos roubar, matar e odiar em política de Estado.

    A velha história de sempre se repete, ou quase. Da mesma forma como um filósofo barbudo e genial do século XIX nos alertava: da primeira vez, como tragédia; da segunda, como farsa.

    Sabedores que somos da tragédia que se abateu sobre o país quando o golpismo e a intolerância se fingiram de espírito cívico e democrático, não devemos ter com a manifestação do dia 15 qualquer condescendência. Meias palavras servem apenas para raciocínios pela metade.

    Que eles todos, sem exceção, sejam tratados da forma como bem merecem e homenageados pelo papel histórico que pretendem cumprir, como todos aqueles que marcharam contra Jango em 1964.

    As manifestações do dia 15 são uma marcha golpista, antidemocrática, hipócrita, financiada empresarialmente, comandada pelos partidos que perderam as eleições e coalhada de gente irritada que quer apenas desabafar, mas não faz a menor ideia dos interesses que estão por trás do convite que receberam para protestar.

    Falar de impeachment não é golpismo, certo? Certíssimo. Mas falar de impeachment de uma presidente da República eleita sobre a qual não pesa, em qualquer inquérito, a mínima evidência de qualquer envolvimento com crimes de corrupção é golpismo sim, senhor. Golpismo da pior espécie.

    As manifestações de 2015 pelo impeachment são tão democráticas e inofensivas para as instituições quanto foram aquelas que serviram de mote para o golpe de 1964.

    Quinze de março é dia do desfile da hipocrisia. Feito por gente que quer o impeachment de Dilma, mas gastou seu tempo no Congresso, nesta última semana, defendendo Eduardo Cunha (presidente da Câmara) e Renan Calheiros (presidente do Senado) contra a ação do Procurador-Geral da República no escândalo da Lava Jato.

    O senador Aécio Neves diz que o ato, do qual fala como um verdadeiro porta-voz, é contra o estelionato eleitoral, assunto no qual é um especialista, basta ver os resultados de seu choque de gestão em Minas Gerais. Se for isso mesmo, no domingo se pedirá, em São Paulo, a cabeça do governador Geraldo Alckmin; em Curitiba, a de Beto Richa; no Rio Grande do Sul, a de José Ivo Sartori.

    As manifestações de domingo são tão apartidárias quanto o ilustre candidato a vice-presidente na chapa de Aécio Neves, o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), que já confirmou presença. São tão éticas e probas quanto era o ex-senador Demósthenes Torrres (DEM-GO), que ainda não confirmou presença, anda até meio sumido, mas certamente torce pelo sucesso de mais essa empreitada.

    Dessa vez, a marcha do dia 19 de março cairá no dia 15, mas saberemos, assim como há 50 anos, o tamanho do golpismo no Brasil. E teremos a chance de ver sua face mais obtusa e saliente. Pena que não a fizeram já no ano passado. Poderiam ter comemorado bodas de sangue.

    A tragédia golpista se repete agora como farsa golpista. Marte, o deus da guerra, virá platinado por um rio de panelas de alumínio, tão vazias de espírito cívico e democrático quanto as cabeças dos que as empunharão. Quanto mais ocas, mais estridentes.

    Dia 15 passará para a posteridade como o dia em que a oposição, cansada de perder eleições, teve uma vitória de Pirro, mas saiu derrotada ao assumir de vez seu espírito antidemocrático, golpista, hipócrita e irresponsável diante das instituições do país.

    Aqueles que querem fazer parte da história do golpismo no Brasil poderão estrelar seu álbum de fotos. Que façam bom proveito de seu domingo.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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