Governo de São Paulo pede 90 dias para apresentar uma proposta sobre o que fazer com o antigo DOI-CODI
A Audiência de Conciliação, realizada na quinta-feira passada (9), no local onde funcionou o antigo DOI-CODI, um dos mais emblemáticos órgãos de repressão política da ditadura militar, foi histórica.
Pela primeira vez, a Justiça, na pessoa do juiz José Eduardo Cordeiro Rocha, da 14ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, pisou naquele lugar, onde, entre 1969 e 1977, segundo dados coletados pela Comissão Nacional da Verdade, quase 7 mil brasileiros foram presos e torturados e 54 deles foram assassinados na tortura.
Antes de iniciar a audiência, o juiz fez questão de conhecer pessoalmente os locais onde ficavam as celas e as salas de tortura e interrogatório, em dois dos quatro prédios que integram aquele complexo arquitetônico, tombado pelo CONDEPHAAT, desde 2014, bem como o sobrado onde morou o comandante do DOI-CODI, na época major Carlos Alberto Brilhante Ustra, com sua esposa, Maria Joseíta, e sua filha, Patrícia, então com 3 anos de idade.
A Audiência de Conciliação foi convocada pelo juiz na ação civil pública, impetrada pelos Promotores de Justiça de Direitos Humanos, Eduardo Ferreira Valério e Anna Trotta Yaryd, do Ministério Público de São Paulo, que pede a transferência do complexo arquitetônico onde funcionou o DOI-CODI, entre as Ruas Tutóia e Tomás Carvalhal, no bairro do Paraíso, em São Paulo, para a Secretaria de Cultura, e a sua transformação num Centro de Memória. A audiência foi realizada num dos prédios do complexo arquitetônico, onde funcionou a OBAN, nos seus primeiros anos, entre 1969 e 1971.
Infelizmente, o Governo do Estado de São Paulo, representado pelas Procuradoras da Fazenda Pública do Estado, Amanda Modotti e Paula Dionigi; pela assessora técnica da Secretaria da Cultura, Maithê Rocha Monteiro; e pelo delegado Gilson Silveira, que representou a Delegacia Geral de Polícia, foram insensíveis, num primeiro momento, aos pedidos da ação, com argumentos frágeis e até mesmo hilários, como o de que um dos planos do governo do Estado para aquele espaço é a instalação de uma sub-sede da Academia de Polícia, onde se ensinaria Direitos Humanos (pasmem) ou de um Centro de Polícia Técnica, desconhecendo que o complexo arquitetônico já está tombado, e que uma liminar do juiz proíbe qualquer intervenção arquitetônica ou administrativa naquele espaço, como a instalação de novos órgãos ou serviços.
Ao ouvir isso, um dos ex-presos políticos comentou baixinho comigo: "Já pensou a manchete: Doria quer transformar antigo DOI-CODI em Loucademia de Polícia". Rimos baixinho.
Outro argumento esdrúxulo apresentado pelas Procuradoras da Fazenda foi de que não era aconselhável a instalação de um Memorial ali porque os visitantes poderiam ter sua segurança ameaçada pelos “presos perigosos” da Delegacia. A Procuradora esqueceu ou fingiu não saber que a carceragem da 36.a DP foi desativada em 2003 e que, desde dessa data, não existem mais presos custodiados ali.
As Procuradoras citaram, ainda, mais um argumento estranho: o de que a Secretaria de Cultura não vê necessidade de um outro Centro de Memória, uma vez que já existe o Memorial da Resistência, no prédio do DOPS, desconhecendo que as situações e os objetivos dos dois Memoriais são totalmente diferentes, bem como a experiência internacional na preservação da memória política.
Como esses argumentos foram enfática e vigorosamente rebatidos, tanto por Ivan Seixas, que falou em nome dos ex-presos políticos presentes, como pelo Promotor, Eduardo Valério, os representantes do governo do Estado, recuaram e pediram o adiamento da ação por 90 dias, para que apresentem uma proposta concreta de acordo, que possa ser aceita, tanto pelo Ministério Público, quanto pelos ex-presos, sobreviventes daquele antro de terror, e familiares dos mortos e desaparecidos.
É importante destacar que dos quatro prédios que integram o complexo arquitetônico tombado, três estão totalmente desocupados, e apenas o prédio principal, onde funciona até hoje o 36º Distrito Policial e onde na parte norte funcionou o DOI-CODI, a partir de 1971, está parcialmente ocupado. Metade dele com a Delegacia e a outra metade, onde ficavam as celas e as salas de tortura e interrogatório, com alguns policiais da Central Especializada de Repressão a Crimes e Ocorrências Diversas (CERCO) da 2ª Delegacia Seccional da Polícia Civil. O lugar onde ficavam as celas, por exemplo, está desocupado. Apenas a antiga cela forte, a solitária, o X-0 é utilizada como depósito de drogas apreendidas e a sala principal de tortura, hoje é um depósito de materiais usados. Nada que não possa ser desativado
Embora a ação peça a transferência de todo o complexo arquitetônico para a Secretaria de Cultura, os ex-presos admitem a possibilidade de uma proposta alternativa, que mantenha ali a Delegacia, mas não a metade norte, onde funcionava o DOI-CODI, e os outros três prédios que já estão desocupados.
Nesses 90 dias, ex-presos políticos, familiares de mortos e desaparecidos e entidades de defesa dos Direitos Humanos organizaram um abaixo-assinado em defesa da criação de um Memorial no antigo DOI-CODI de São Paulo - https://bit.ly/2WU0Buo - e pretendem criar Comitês de apoio à transformação daquele espaço em Memorial, com a participação da OAB, ABI, Comissão de Justiça e Paz e outras entidades, e planejam solicitar uma audiência com o governador João Doria e seus secretários para demonstrar a importância da preservação da memória e a luta contra a tortura e a violência e o arbítrio.
Espera-se que o governador de São Paulo, João Doria Junior, honre a memória de seu pai, João Agripino Dória, que teve seu mandato de deputado federal cassado em 1964 pelo regime militar e exilou-se com a família em Paris e oriente os representantes do governo do Estado a apresentar, daqui a 90 dias, uma proposta concreta que garanta a instalação do Memorial, pelo menos em parte daqueles edifícios, que guardam um pedaço trágico e doloroso de nossa história política.
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