Greve na educação: o Reconhecimento de Saberes e Competências dos TAE para um projeto de inovação e soberania no Sul Global
Essa massa de profissionais intelectualizados não está integrada num projeto nacional de produção de inovação tecnológica
Além dos docentes que estão em greve a mais ou menos dois meses, os Técnico Administrativos em Educação (TAE) estão em greve a quase 100 dias e foi essa categoria que iniciou o forte movimento na educação federal do país por valorização salarial, reestruturação da carreira e recomposição orçamentária nas universidades e institutos federais. Essa categoria é formada por mais de 200 mil servidores públicos federais, em centenas de profissões, que estão unificadas num plano de carreira (PCCTAE) que tem cinco níveis de escolaridade. Hoje, na prática, somente os cargos de ensino médio, técnico profissional e superior ainda não foram terceirizados. Estamos falando de engenheiros, estatísticos, analistas em tecnologia da informação, geólogos, físicos, meteorologistas, oceonólogos, matemáticos, contadores, enfermeiros, médicos veterinários, químicos, físicos, programador visual, maestros regentes, roteiristas, transcritor de sistema braile, técnico em saneamento, técnico em mineração, técnico em estradas, assistentes administrativos e uma longa descrição de centenas de profissionais que você pode conferir aqui: https://www2.unifap.br/drh/manual-do-servidor/atribuicoes-dos-cargos-pcctae/
São trabalhadores corresponsáveis pela produção de pesquisa e inovação, e junto com docentes e estudantes formam a comunidade universitária no sistema federal de ensino. São verdadeiros operários e operárias das “fábricas” de ciência e conhecimento no Brasil, e que além de serem mal pagos, são também mal aproveitados, pois essa massa de profissionais intelectualizados não está integrada num projeto nacional de produção de inovação tecnológica, que por sua vez, é um setor que carece ainda de planejamento e investimentos de outro patamar. É um tema absolutamente determinante para qualquer ambição estratégica de um país que queira defender e fortalecer sua soberania e independência científica no mundo em que vivemos hoje. O plano de carreira dos TAE (PCCTAE) tem artifícios que permitem a valorização salarial, através da qualificação acadêmica, por meio de cursos de graduação, especialização e pós-graduação, envolvendo mestrado e doutorado. Soma-se a isso a recente conquista na mesa de negociação da greve, no qual o atual governo está atendendo um ponto muito importante da pauta da categoria que é o Reconhecimento de Saberes e Competências (RSC). Que poderá reforçar uma majoração remuneratória através do aprimoramento e qualificação dos TAE por meio de cursos e habilidades reconhecidas por critérios que serão discutidos num grupo de trabalho específico para esse fim, que terá seis meses para sua conclusão com implementação em 2026.
A produção de ideias inovadoras para garantir um diferencial de produção na corrida tecnológica para a manufatura de produtos e serviços sofisticados é estratégico na organização mundial do comércio, bem como no atual rearranjo em curso da ordem global dos estados. Não haverá nenhuma chance para o Brasil conseguir ter alguma importância mundial, e portanto, defender a sua própria soberania, se não conseguir superar os interesses de uma elite medíocre e colonial. Passando a desenvolver um projeto ousado que envolva a indústria nacional integrada com a produção de ideias inovadoras em nichos específicos que o futuro aponta como tendência de demanda em escala nacional e internacional. Direcionando através de planejamento estatal uma missão que promova crescimento econômico, valor público, riqueza coletiva, melhores salários, distribuição de renda e sustentabilidade. Atendendo a temas de apelo social e econômico que estão na ordem do dia, que são desdobramentos de problemas criados pelo próprio sistema capitalista, como a necessidade de geração de energia verde, a atenção aos desafios da saúde pública e envelhecimento populacional, as crises climáticas e ambientais, o domínio da inteligência artificial, a produção de semicondutores, soluções para o transporte público, a indústria de defesa e aeroespacial, entre outros temas…
A colaboração entre diferentes atores como universidades, institutos federais, empresas estatais, indústria nacional, bancos públicos, sociedade civil organizada no marco de uma governança participativa e inclusiva, liderada por políticas de estado que consiga reunir recursos e conhecimentos diversos para enfrentar desafios que estão intimamente ligados a defesa da soberania e da independência científica e econômica do país é uma aposta no Brasil e na sua capacidade de gerar talentos profissionais especializados. Todas as grandes empresas e consequentemente nações, que controlam mercados de produtos e serviços de alta tecnologia, conseguiram se posicionar como líderes mundiais através de projetos estratégicos que levaram em consideração a formação de uma força de trabalho de altíssima qualidade profissional, capaz de produzir soluções para grandes temas da humanidade.
Vamos citar alguns exemplos, para o leitor ter a dimensão da discussão que estamos propondo.
A internet como conhecemos hoje, só existe, por conta de um projeto inovador da DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency), uma agência do Departamento de Defesa do Governo dos EUA. Através de financiamento e colaboração de profissionais de várias universidades norte-americanas com centros de pesquisa, a DARPA impulsionou a ARPANET, que se tornou a base para a infraestrutura da internet. Podemos citar também, a criação de um ecossistema de inovação na região do Vale do Silício, que também só foi possível, através de políticas públicas do governo americano que ofereceu capital de risco, orientação estratégica e construiu um dos pólos mais importantes do mundo de produção de tecnologia de ponta. Empresas como a Google, SpaceX, Microsoft, Apple entre outras, só puderam existir, por conta de iniciativas do governo norte americano que através da Força Aérea, o Exército, a Marinha, a NASA, a National Science Foundation e, mais notavelmente, a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada do Departamento de Defesa (ARPA ou DARPA) apoiaram agressiva e persistentemente tecnologias essenciais para operar uma revolução tecnológica e controlar esse mercado no mundo.
No final do ano passado a União Europeia publicou um relatório sobre investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) no mundo, mostrando que 84% das empresas que mais investem estão concentradas nos EUA, UE, China e Japão.
Ver em: https://publications.jrc.ec.europa.eu/repository/handle/JRC135576
Segundo esse relatório, o país que mais aumentou o seus investimentos em P&D na última década foi a China, passando de 3,8% do total para 17,8%, destaque para um dado muito importante, 85% desses investimentos foram feitos por empresas chinesas, ficando as empresas estrangeiras multinacionais com um papel marginal nesse quesito. Ainda segundo o relatório, o Brasil tem somente 5 empresas entre as 2500 que mais investem em P&D, entre elas está a Petrobras (1455º lugar). Na última década fomos o país que mais se tornou dependente de P&D junto com a Grécia, o que é um dado gravíssimo que expressa nossa imensa fragilidade no que diz respeito a defesa de nossa soberania nacional. No gráfico abaixo é possível ver como a China vem equiparando seus índices de inovação tecnológica em relação aos EUA no último período.
As políticas públicas para formar e/ou atrair “cérebros”, ou seja, profissionais altamente qualificados é uma das disputas mais importantes travadas hoje na geopolítica mundial entre as nações que estão na fronteira do desenvolvimento tecnológico. Os EUA têm facilitado a autorização de imigrantes com mestrado e doutorado, mesmo sem oferta de emprego, o fornecimento do Green Card (Visto EB-2 NIW) nesse caso, é agilizado para pessoas que têm habilidades excepcionais, que têm algum tipo de reconhecimento em sua área de atuação e com publicação de trabalhos em veículos de relevância. Em 2020, durante o governo Bolsonaro, o número de trabalhadores brasileiros que possuem alta qualificação que pediram visto para trabalhar nos EUA, teve um aumento de 10,5% em relação a 2019, foi um recorde que significa mais de 3 mil pessoas. De acordo com o departamento de imigração norte americano, em 2019 e 2020, o número de pedidos de profissionais brasileiros por vistos permanentes EB1 e EB2 cresceu 135% em relação a 2015 e 2016.
Em 2021, o ministério do trabalho de Taiwan proibiu todas as empresas que atuam no país de publicar vagas de empregos na China, especialmente em relação a empresas ligadas à fabricação de circuitos integrados e semicondutores. Essa medida teve o objetivo de impedir a fuga de cérebros do país, num momento onde o governo Chines desenvolve um projeto agressivo para desenvolver sua própria indústria de semicondutores para construir uma cadeia de fornecimento auto suficiente. Ver em: https://asia.nikkei.com/Business/Tech/Semiconductors/Taiwan-bans-recruitment-for-jobs-in-China-to-combat-brain-drain Para termos uma noção do atraso que vive o Brasil e a América Latina em relação a produção de semicondutores e circuitos integrados, em 2020 o governo Bolsonaro iniciou o processo de liquidação do Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (CEITEC), uma empresa pública de microeletrônica ligada ao Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação, criada no governo Lula em 2008 para fabricação de chips e circuitos integrados. A CEITEC era a única empresa latino americana com duas “salas limpas”, que são ambientes altamente controlados, essencial para a fabricação de chips. Com esse fechamento, perdeu-se todo conhecimento acumulado em 10 anos de atividades para empresas estrangeiras, um desperdício absurdo no aproveitamento de profissionais e elaboração científica. Em 2023, o governo Lula publicou o decreto Nº 11.768 de novembro de 2023, revertendo o processo de dissolução societária da CEITEC, ver em: https://static.poder360.com.br/2023/11/Ceitec-DOU-6-NOV-2023.pdf
A publicação desse decreto foi muito importante, e demonstra que o atual governo está dando sinais de preocupação com investimentos em P&D. Com a compreensão do seu significado para inserção soberana e independente do Brasil no sistema mundial de estados, numa vaga histórica de frenética disputa pela liderança de fronteiras tecnológicas que está chegando num nível de tensão máxima, sendo um dos principais motivos da disputa hegemônica do poder global e da possibilidade de expansão de conflitos e guerras regionais que já vem se desenvolvendo.
A greve da educação federal protagonizada por trabalhadores de alto potencial e qualificação acadêmica, é uma grande oportunidade para abrirmos o debate em relação a uma das principais conquistas da greve, que é o RSC - Reconhecimento de Saberes e Competências dos TAE. O grupo de trabalho que vai discutir esse tema segundo a proposta ofertada, não pode somente ficar restrito em pensar em critérios para democratizar o acesso à valorização salarial via capacitação.
Tem que pensar grande! É preciso discutir a carreira TAE, no marco de um projeto ousado de investimentos agressivos em inovação tecnológica industrial e de serviços. Numa integração de instituições e recursos, que envolva capital humano de alta performance aliado a produção de soluções para o desenvolvimento de uma indústria nacional sofisticada, complexa e de alta produtividade, que possa garantir empregos com bons salários e uma renda per capita semelhante à de países como Coreia do Sul, que está muito à frente do Brasil em relação a produção de conhecimento e tecnologia de ponta. Enquanto a renda per capita dos sul coreanos já está em torno de 30 mil dólares, o Brasil não chegou nem a 10 mil dólares ainda.
Os mais de 200 mil profissionais do Plano de Carreira dos Cargos dos Técnico Administrativos em Educação ( PCCTAE) só terão uma valorização significativa e muito além do que estamos conquistando nessa greve, se o estado brasileiro mudar a rota do desenvolvimento. O Brasil precisa deixar de ser um país produtor de commodities baratas, para ser uma nação que passe a liderar fronteiras tecnológicas incorporando o conhecimento produzido nas universidades e institutos federais a um projeto de desenvolvimento econômico soberano, essa é a única forma de garantir um tecido produtivo gerador de empregos de qualidade com bons salários. Caso contrário, não haverá valorização dos TAE nem mesmo com o RSC, o PCCTAE vai continuar sendo uma carreira “ ônibus”, onde muitos profissionais entram e saem na próxima parada.
A luta dos TAE precisa avançar para outro nível da luta política no país que vai além de uma exigência por recomposição salarial e carreira, é preciso assumir a defesa de outro projeto de sociedade e outra concepção de estado que se enfrenta conscientemente contra as ideias neoliberais e a mediocridade colonial conservadora da extrema direita. O aprimoramento da educação profissional precisa encontrar respaldo em oportunidades no desenvolvimento econômico do país, caso contrário não vai acontecer a valorização salarial e da carreira que os TAE merecem. Sem um sistema produtivo para abrigar talentos notáveis, vamos seguir promovendo a fuga de cérebros da educação federal. Vamos continuar formando mão de obra para outros países e/ou para outros objetivos, perdendo a oportunidade de traduzir esse acúmulo de conhecimento e capital humano em produção de produtos e serviços complexos, como também não vamos produzir soluções e ideias inovadoras para responder a demandas econômicas e sociais do povo brasileiro.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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