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    Sergio Ferrari

    Jornalista latino-americano radicado na Suíça. Autor e coautor de vários livros, entre eles: Semeando utopia; A aventura internacionalista; Nem loucos, nem mortos; esquecimentos e memórias dos ex-presos políticos de Coronda, Argentina; Leonardo Boff, advogado dos pobres etc.

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    Guerra ou paz, o dilema central da Europa

    Entrevista com o militante pacifista espanhol Jordi Calvo

    Jordi Calvo (Foto: Divulgação)

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    Sergio Ferrari, de Berna, Suíça - O processo acelerado de militarização da Europa nas últimas décadas está levando o continente a um beco sem saída. A guerra Rússia-Ucrânia reforça ainda mais essa tendência, multiplica a espiral bélica ascendente e descreve riscos de consequências inimagináveis, como o uso de recursos nucleares. Vozes da sociedade civil se levantam para exigir a busca de opções pacíficas. "Temos que superar as políticas belicistas hegemônicas na União Europeia hoje, e, para isso, precisamos de uma mudança de foco na segurança continental", declarou Jordi Calvo Rufanges, pesquisador, professor e coordenador do Centro Delàs de Estudos para a Paz, com sede em Barcelona, Espanha, a Brasil 247. Para ele, o resultado eleitoral nos Estados Unidos na última terça-feira não antecipa perspectivas positivas.

    Os números dos últimos quinze anos são eloquentes: entre 2007 e o presente, o orçamento da UE para a segurança e a defesa triplicou. O programa para 2021-2027 inclui 19.5 bilhões de euros por ano (21.25 bilhões de dólares). Sem contar os sucessivos aumentos devido à guerra na Ucrânia e ao apoio militar a Kiev, que, em setembro de 2024, atingiu 39 bilhões de euros (US$ 42.5 bilhões).

    O fracasso da opção bélica

    O processo de militarização da União Europeia, no entanto, "vem sendo cozido em fogo lento há várias décadas e anda de mãos dadas com a proposta de transformar o continente em um ator militar e de poder de primeiro nível no mundo", explica Calvo, um dos cinco pesquisadores do Centro de Delàs que produziram em conjunto com a Rede Europeia contra o Comércio de Armas (ENNAT, sigla em inglês), o relatório Por uma política de paz e de desarmamento na Europa. Propostas para uma Europa da distensão, da paz e da segurança compartilhada. Essa publicação veio à tona na segunda quinzena de outubro deste ano (https://centredelas.org/publicacions/peaceanddisarmamentineurope/?lang=es).

    É paradoxal, reflete Calvo, que esse processo que pretendia fortalecer a defesa e a segurança do continente não tenha conseguido evitar a guerra na própria Europa. E, paralelamente, "esse grande fracasso é acompanhado por uma ameaça preocupante à democracia, com o crescimento da extrema direita, com sua linguagem de ódio, xenofobia e racismo e suas propostas para construir novas fronteiras e expulsar migrantes".

    Para Jordi Calvo, a decisão de militarizar cada país do continente e a União Europeia como um todo cria um quadro que se assemelha muito ao contexto histórico que levou à Segunda Guerra Mundial, "com argumentos e slogans de intolerância e rejeição do ser humano diferente que abriram as portas para esse tremendo conflito militar".

    Atualmente, tudo isso está acontecendo em um cenário político continental marcado pela ascensão de forças de extrema-direita que chegam a governos como na Itália, na Hungria e em outros países ou que se consolidam como um possível governo alternativo, como [Marine] Le Pen na França, ou que se projetam como uma oposição antitudo, no estilo do Vox, na Espanha. Ao mesmo tempo, os partidos de centro e de esquerda, governamentais ou não, foram arrastados para posições conservadoras e passaram a aplicar, da mesma forma que a direita, políticas que ameaçam os serviços públicos e o Estado social (como a saúde pública e a educação), além de reduzir a cooperação para o desenvolvimento. Em outras palavras, percebe-se que os setores mais bélicos e reacionários de nossas sociedades são aqueles que, por enquanto, se impõem no debate cultural e na narrativa ideológica predominante e determinam onde colocar o cursor político. "Como se estivessem preparando tudo para uma hipotética nova guerra. Eu me pergunto se, na realidade, esse não é o objetivo final que eles querem alcançar", diz Calvo com preocupação.

    Mais armas, menos autonomia

    Em sua análise, o militante pacifista identifica um segundo elemento-chave: o fato de que as doutrinas de segurança e defesa foram desenvolvidas sob o preceito de alcançar maior autonomia para a Europa. No entanto, "a atual proposta da União Europeia não fala de nenhuma autonomia real em questões de segurança em relação aos Estados Unidos, além do que aparentemente possa mostrar um orçamento cada vez maior de toda a UE e também de cada um de seus Estados membros".

    Segundo Calvo, a influência dos Estados Unidos e da OTAN não facilitou a construção da paz no Velho Mundo. Pelo contrário, a militarização ilimitada do bloco ocidental promovida pela OTAN aumentou a percepção de ameaça por parte de seus hipotéticos rivais, como a Rússia ou a China. Como resultado, ele argumenta, "o aumento do orçamento militar da UE multiplica os lucros das empresas de armas em ambos os lados do Atlântico".

    Por outro lado, argumenta o relatório, o Novo Conceito Estratégico da OTAN aprovado em 2022 atualiza o conceito militar de dissuasão e enumera os meios a serem desenvolvidos para implementá-lo: "A postura de dissuasão e defesa da OTAN é baseada em uma combinação apropriada de meios de defesa nuclear, convencional e antimísseis, complementada por meios espaciais e cibernéticos". A OTAN antecipa que "Fortaleceremos significativamente nossa postura de dissuasão e defesa para privar qualquer adversário em potencial de qualquer oportunidade de agressão. Para isso, garantiremos uma presença significativa e persistente em terra, no mar e no ar, inclusive por meio de defesa antiaérea e antimísseis integrada e reforçada".

    A impressionante fortaleza militar europeia continua em construção, embora a permeabilidade de suas fronteiras terrestres e marítimas, bem como a proximidade de cenários de guerra –seja na Ucrânia ou no Oriente Médio– revelem sua fragilidade. Especificamente no que diz respeito à Palestina, o Centro Delàs publicou há alguns meses o seu relatório A Banca Armada e a sua corresponsabilidade no genocídio em Gaza. O financiamento das empresas que fabricam as armas usadas nos massacres contra a população palestina. Ele se concentra nos negócios de bancos e empresas de armas que estão lucrando com a ofensiva israelense contra Gaza (https://centredelas.org/publicacions/bancaarmadaigenocidi/?lang=en).

    Promover o paradigma de paz com justiça

    A segurança do continente europeu está nas mãos da OTAN desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Mas, esse modelo não conseguiu criar um verdadeiro quadro de segurança, reitera Jordi Calvo. Ele enfatiza que, após a dissolução da União Soviética, a OTAN aproveitou a fraqueza de seu inimigo tradicional para incorporar ex-aliados da Rússia à organização militar atlântica, "eliminando assim qualquer possibilidade de avançar para a construção da Casa Comum Europeia da qual falou Mikhail Gorbachev, o último líder soviético e promotor da dissolução da URSS". E, assim, "desperdiçou-se aquele que teria sido o melhor momento para desenhar consensualmente um cenário de paz".

    Nesse sentido, diz o coordenador do Centro Delàs, continuar apostando na intensificação dos meios militares para alcançar a paz na Europa não faria diferença com o modelo proposto até agora sob a tutela da OTAN. Embora a autonomia europeia seja essencial, o atual paradigma defensivo da União Europeia não propõe nenhuma autonomia militar real dos Estados Unidos.

    A recente vitória eleitoral de Donald Trump "certamente servirá para justificar novos aumentos nos orçamentos militares europeus sob a premissa de uma ruptura improvável de Trump com seus aliados da OTAN", diz Calvo. Com o possível resultado de que "uma parte considerável desses aumentos será usada para a aquisição de armas dos EUA. Esse tem sido, talvez, o principal objetivo dos presidentes estadunidenses que exigiram reiteradamente que os Estados europeus alocassem 2% de seus respectivos PIBs aos gastos militares", completa.

    Apesar das nuvens pesadas que marcam a geopolítica mundial hoje, a busca por opções tornou-se quase uma obsessão para amplos setores da sociedade civil europeia –e mundial– que acreditam que existem alternativas pacíficas possíveis e necessárias. Como as 300 organizações espanholas que participam da Campanha Não à militarização, não à guerra, um movimento que busca se espalhar para o resto do continente. Nesse mesmo contexto, o Centro Delàs esclarece por meio de seu coordenador que "Somos pacifistas, demonstramos isso há 25 anos. Somos contra qualquer guerra, assim como nos manifestamos contra a agressão da Rússia contra a Ucrânia".

    Jordi Calvo argumenta que há possibilidades de uma visão diferente da segurança para a Europa. Por exemplo, implicaria promover a abordagem de Segurança Humana que propõe uma segurança focada no desenvolvimento das pessoas, não na segurança nacional (de Estado). Deve basear-se na cooperação, no multilateralismo, nos direitos humanos e na consolidação da paz. Ou a abordagem de segurança feminista, que propõe acabar com a marginalização das mulheres, acrescentando gênero como categoria de análise para construir segurança com base nos princípios de cuidado e respeito em um quadro inclusivo e ecofeminista. Sem subestimar, além disso, a segurança verde para a Europa, que busca superar o antropocentrismo em direção a uma proteção ecologicamente sustentável do meio ambiente como um todo, da biosfera".

    Perguntamos: São apenas conceitos ou constituem pistas concretas para uma mudança fundamental no atual paradigma militarista? Calvo responde enfaticamente: "Precisamos de vontade política e uma mudança de abordagem para a segurança europeia, [que] deve incorporar uma visão de uma cultura de paz que nos permita superar a atual segurança belicista e militarizada". No horizonte, e como um desafio, tanto para o Centro Delàs quanto para muitos outros movimentos pacifistas continentais, trata-se de apostar em uma paz positiva, com justiça estrutural, que promova uma nova cultura não violenta e alcance o fim dos conflitos por meios pacíficos. Calvo sugere a melhor maneira de conseguir isso: "Na prática, significa afastar-se da dominação e da hegemonia do poder e promover a comunicação, a coordenação e a empatia entre os povos, com justiça global, internacionalismo, cooperação, intercâmbios de comércio justo e descolonização real, sem patriarcado".

    Quanto às relações internacionais concretas, a tarefa de construir a paz, explica Calvo, significa "quebrar esquemas, falar novamente da Grande Europa, abandonar as vias militares e construir um projeto de convivência que inclua a todos, incluindo a Rússia". O que está em jogo, conclui o militante pacifista valenciano, "é a própria sobrevivência do continente e do planeta e poder oferecer às nossas filhas, filhos, netas e netos uma perspectiva de vida sem guerra".

    Tradução: Rose Lima.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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