Habitação, um pesadelo europeu
Pelo teto, às ruas!
Por Sergio Ferrari, de Berna, Suíça - Durante anos, a falta de moradia esteve no centro do debate político europeu, agravada principalmente nos últimos meses em países como Espanha, Portugal e Grécia, entre outros.
De acordo com dados de organizações sindicais espanholas, as perspectivas são sombrias: no continente europeu há 11 milhões de casas vazias, 29 milhões de imóveis literalmente inabitáveis e 1,3 milhão de pessoas sem teto.
A recente crise do custo de vida exacerbou esse problema de longa data, como o próprio Parlamento Europeu admite em um estudo publicado em outubro. As causas são várias: o aumento do custo de construção, bem como os juros da hipoteca. Isso, e o consequente congelamento da construção residencial, dificultam o acesso a imóveis. Segundo analistas críticos, essa situação é agravada porque os investidores utilizam a habitação como meio de investimento – um instrumento de especulação. Além disso, os aluguéis em muitas cidades europeias aumentaram, em parte devido ao aumento da procura de contratos de curto prazo, como os destinados ao turismo (https://www.europarl.europa.eu/topics/es/article/20241014STO24542/el-aumento-del-coste-de-la-vivienda-en-la-union-europea).
Agitação social também em ascensão
Depois de um protesto massivo em Madri em 13 de outubro, no sábado, 19, foi a vez de Valência, quando a plataforma Valencia se afoga mobilizou milhares de manifestantes. No dia seguinte, algo semelhante aconteceu nas Ilhas Canárias. Foi neste último local, apenas meio ano antes, que milhares de pessoas também se manifestaram nas ruas contra o turismo de massa, um dos fatores essenciais dessa crise habitacional. Um artigo recente no jornal espanhol El País aponta que antes da crise de 2008 eram construídas 600.000 casas; atualmente, chegam apenas a 90.000. E ele aponta que "A crise habitacional que encurralou os cidadãos e explodiu a agitação social é em grande parte explicada por um gigantesco desequilíbrio entre a oferta e a demanda: há muito menos casas disponíveis do que o necessário. Essa tensão pressiona os preços para cima".De acordo com o portal imobiliário Idealista, citado numa análise recente da swissinfo.ch, na Espanha o preço por metro quadrado do aluguel aumentou 82% nos últimos dez anos. A um ritmo cinco vezes superior ao salário médio, que cresceu apenas 17% (dados oficiais do Instituto Nacional de Estatística). No que diz respeito às famílias de baixa renda, essa análise conclui que encontrar um lugar para morar tornou-se uma missão impossível devido à escassez de moradias. Esse é um problema premente se levarmos em conta que a habitação residencial representa apenas 2,5% do volume total de imóveis, uma percentagem muito inferior à média de 9,3% no resto da União Europeia (UE).Na ausência de respostas efetivas do governo, esse movimento promovido por sindicatos de inquilinas e inquilinos, bem como associações cidadãs relacionadas, antecipa que o protesto continuará e se multiplicará, ameaçando inclusive entrar em greve –ou seja, o não pagamento–, dos aluguéis se não houver respostas concretas e de curto prazo do governo. Málaga pela Vida se mobilizará nessa cidade do Sul em 9 de novembro, dia em que os sevilhanos também sairão às ruas para exigir que não sejam concedidas novas autorizações para apartamentos turísticos na cidade e que milhares de propriedades que hoje abrigam exclusivamente turistas sejam recuperadas para uso familiar. No dia 23 do mesmo mês será a vez de Barcelona, onde, apesar de uma pequena queda nos preços dos aluguéis durante o segundo trimestre do ano, os organizadores estão exigindo uma redução drástica de 50%.Em Portugal, a problemática imobiliária continua a ocupar a primeira página da agenda social. No dia 28 de setembro, milhares de pessoas saíram às ruas em 22 cidades convocadas por várias organizações, incluindo a plataforma Porta a Porta (Puerta a Puerta), que considera que essa crise não é temporária, mas "crônica e estrutural". A realidade da crise é inegável, a tal ponto que até o nada progressista Fórum Econômico Mundial reconheceu, por exemplo, que na capital Lisboa, o custo da habitação aumentou 120% entre 2012 e 2022 e o aluguel aumentou mais de 30% nos últimos cinco anos. Enquanto isso, os níveis de renda permaneceram relativamente estáveis, o que castiga o poder aquisitivo da população.
Diante dessa onda de protestos, o governo conservador português anunciou a construção de 33.000 casas até 2030 a um custo de 2 bilhões de euros. É uma decisão considerada morna e insuficiente pelos setores críticos que insistem em suas duas demandas centrais: moradia digna para todos e moradia disponível com urgência e a preços acessíveis.
Problema continental
A UE estima que quase 6% dos habitantes de Portugal não conseguiram pagar regularmente os aluguéis nos últimos 12 meses. Esse percentual chega a 9% na Espanha e explode com 17,7% na Grécia; 16,7% na França e mais de 10% na Holanda. Nos países da UE, o número médio de pessoas com problemas para pagar o aluguel nos últimos meses é de 6,3%. É uma situação que afeta essencialmente jovens e pessoas com baixos salários (https://es.euronews.com/my-europe/2024/10/21/alarma-social-casi-el-15-de-los-jovenes-de-la-ue-tiene-dificultades-para-pagar-el-alquiler).De acordo com o Business Insider Espanha, um site especializado em questões econômicas, "a habitação não é um drama exclusivo da Espanha; é sofrido por grandes cidades em toda a Europa" (https://www.businessinsider.es/donde-suben-alquileres-europa-madrid-cuela-top-precios-1410084).Tomando como referência o índice de custo de aluguel elaborado pela plataforma especializada HousingAnywhere, Madri está no topo do ranking continental. De fato, alugar um imóvel na capital espanhola custava, em setembro deste ano, 17% a mais do que em setembro do ano anterior (107% a mais do que há 10 anos). Isso significa que os inquilinos têm que pagar 233 euros a mais por mês por um aluguel médio de aproximadamente 1.600 euros. Em Barcelona também está próximo desse valor, e em Valência é de 1.450 euros. Na Europa, apenas Roma (com um aumento de 28,2% no último ano) e Haia (21,9%) superam Madri.
Numa conferência do Comité Econômico e Social Europeu (CESE) realizada em Bruxelas em abril passado, essa organização já tinha alertado para o agravamento preocupante da crise da habitação e dos seus efeitos secundários. «Cada vez mais os europeus estão preocupados com a impossibilidade de encontrar moradia digna e a preços acessíveis», afirmou o CESE. Os riscos resultantes são expressos em moradias precárias, pressão financeira e insegurança habitacional, e até mesmo a ameaça de perdê-la. De acordo com o CESE, a habitação a preços inacessíveis pode afetar a saúde e o bem-estar das pessoas, conduzir à desigualdade nas condições de vida e causar custos de saúde mais elevados, menor produtividade e mais danos ambientais.
Por sua vez, a Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho (Eurofound), uma agência da UE, constata que a crise habitacional naquela região afeta particularmente os jovens porque dificulta sua saída da casa dos pais. E aponta que a idade em que pelo menos 50% das pessoas saem da casa materno-paterna passou de 26 anos, em 2007, para 28, em 2019. Entre 2010 e 2019, Espanha, Croácia, Itália, Chipre, Bélgica, Grécia e Irlanda registaram o maior aumento do número de pessoas com idades compreendidas entre os 25 e os 34 anos que continuam a viver com os pais.
Além disso, entre 2010 e 2022, os aluguéis residenciais na UE aumentaram 18%, enquanto o preço de uma casa cresceu 47%. No final desse período, 10,6% da população urbana da UE vivia em famílias que dedicavam mais de 40% do seu rendimento disponível à habitação, limite que define a queda numa situação social frágil (https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/ATAG/2024/762414/EPRS_ATA(2024)762414_ES.pdf).
Parece que os altos escalões ouviram a mensagem, embora no momento as respostas tenham sido, fundamentalmente, retóricas e institucionais, sem efeitos positivos imediatos. Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, acaba de criar a pasta de Energia e Habitação e nomeou o dinamarquês Dan Jorgensen para assumir o comando. Jorgensen, um dos 25 comissários ou ministros que devem ser ratificados pelo Parlamento Europeu em novembro, está encarregado de elaborar um plano de habitação acessível e uma nova estratégia destinada a aumentar a oferta de imóveis, reduzir os custos de construção e melhorar a produtividade e o desempenho ambiental do setor. Devido a que o orçamento de longo prazo da UE será negociado apenas em 2027, e com essa carteira ainda não substancialmente financiada com fundos próprios, Jorgensen precisará procurar maneiras de ajudar os Estados-membros a duplicar seu investimento em moradias populares no contexto da política de Coesão Europeia. E terá que colaborar com o Banco Europeu de Investimentos para priorizar moradias acessíveis e sustentáveis. No entanto, esse desafio parece longe de ser conquistado em um continente que precisaria de entre 50.000 e 57.000 milhões de euros por ano, durante vários anos, para resolver sua aguda crise habitacional.
Alternativas possíveis
Além dos recentes protestos que continuam ganhando amplitude em vários países da União Europeia exigindo mudanças fundamentais na política global de habitação, diversos atores da sociedade civil vêm se mobilizando em busca de propostas alternativas para amenizar o impacto das crises.
No início de outubro, por ocasião do décimo aniversário da CoHabitat, representantes de meia centena de organizações e do mundo acadêmico de vários países se reuniram em Genebra, na Suíça. A CoHabitat é uma rede internacional que reúne inúmeras associações comunitárias que defendem o direito à moradia e buscam garantir soluções coletivas e não especulativas nesse setor (https://www.co-habitat.net/es/about).Como parte dessa celebração, o Prêmio Mundial do Habitat 2023-2024 foi concedido a quatro experiências inovadoras. Duas das iniciativas premiadas estão localizadas fora da Europa e receberam a medalha de ouro: um Centro Urbano de Jacarta, na Indonésia, que organiza e defende os moradores de kampungs, bairros informais daquela megalópole, e a Federação Senegalesa de Habitantes, que promove soluções coletivas para quase 2 milhões de habitantes em bairros populares da capital, Dakar, vítimas de inundações contínuas.As duas instituições europeias que receberam o Prêmio Prateado são a cooperativa catalã Sostre Cívic e a cooperativa suíça La Cigüe, em Genebra. A primeira é promotora de 17 projetos para 236 casas e, juntamente com outras organizações aliadas, apresenta-se como uma alternativa realista, durável e ética à propriedade individual e ao mercado. Aspira que em 30 anos 10% das casas na Catalunha sejam administradas por cooperativas. A segunda é um esforço participativo, independente e sem fins lucrativos, que, desde 1986, oferece aos estudantes daquela cidade a opção de um quarto, geralmente em imóveis compartilhados em bairros populares.
O acesso à moradia é um direito humano essencial. As Nações Unidas reconhecem que toda pessoa tem direito a uma moradia adequada e que o Estado deve tomar medidas razoáveis, dentro dos recursos à sua disposição, para alcançar a realização progressiva desse direito à moradia. No entanto, em um sistema global governado pelo mercado e em nações onde o Estado Social está caindo no abismo, a lógica se confunde e os conceitos se diluem. É assim que a habitação perde sua substância de direito e se torna, predominantemente, apenas mais uma mercadoria. As crescentes mobilizações na Europa –assim como em outras áreas do mundo– por moradias acessíveis e dignas nada mais fazem do que renovar o debate subjacente e reorientar a bússola social. E recordam que o teto nas cidades, tal como a terra no campo, constitui as colunas, os suportes e as próprias raízes da vida humana. Pelo teto, às ruas!
Tradução: Rose Lima.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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