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    Leda Paulani

    Economista e professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP)

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    Haddad e o 11 de setembro

    Dadas as atuais condições, em meio a um estado de exceção que tem de manter a fachada democrática e colocar as eleições em marcha, não pode haver ninguém mais talhado do que você, Fernando, para enfrentar o desafio em que se transformou a condução deste país

    Haddad e o 11 de setembro (Foto: Reprodução vídeo)

    O dia 11 de setembro é tingido de cinza na História. A lembrança imediata é das torres gêmeas do World Trade Center pegando fogo e desabando, em 2001. Mas para a ala progressista da humanidade, para aqueles que sonham e lutam, e que nunca deixaram de sonhar e lutar por um mundo menos injusto, onde a realização do espírito humano seja uma possibilidade universal, o 11 de setembro lembra principalmente a destruição do sonho socialista de Salvador Allende, em 1973, em nuestra América, esta nossa grande pátria. A partir deste 2018, essa data infausta tem um enorme significado também para o Brasil, e aqui o cinza que é sua roupagem vai se tingir um pouco.

    O anúncio em 11 de setembro pela executiva nacional do Partido dos Trabalhadores da substituição do nome de Luiz Inácio Lula da Silva pelo nome de Fernando Haddad na chapa da coligação "O Brasil Feliz de Novo" produz um sentimento dúbio e contraditório: de um lado, a tristeza cinza de sabermos consumada a injustiça feita ao maior líder da história brasileira, que seria o legítimo candidato; de outro, a esperança colorida pela possibilidade de termos em seu lugar, lutando com ele e como ele, Fernando Haddad. Para quem conhece de perto essa grande figura, essa esperança é ainda maior e mais forte.

    Conheci o Fernando em 1988, na FEA-USP. Ele iniciara, três turmas depois da minha, o mestrado em Economia num momento em que eu já estava no doutorado. Eu não o conhecia ainda, até que um belo dia sou abordada por ele na lanchonete da faculdade: "você é a Leda Paulani, não é?" confirmei que sim e ele imediatamente: "sou Fernando Haddad, li o seu texto sobre o conceito de dinheiro e achei genial". Esse texto, que era o embrião do que viria a ser minha tese de doutorado, eu apresentara num seminário de teses que então havia na pós-graduação e era sobre ele que Fernando me falava.

    Percebemos, a partir daí, uma enorme afinidade intelectual, que nunca mais se desfez. Conversamos por horas, naquele dia e em muitos outros. Eu fui ficando cada vez mais espantada com ele, inicialmente por ter conseguido vencer as barreiras da ANPEC, a poderosa Associação Nacional dos Centros de Pós-graduação em Economia, responsável pela elaboração dos exames de admissão aos principais centros de pós da área no país, e de ter, assim, ingressado no mestrado em Economia da FEA-USP. São barreiras árduas, muito difíceis e quase intransponíveis para quem não é da área. Dado o peso que tem no referido exame o conhecimento de cálculo e estatística, não é tão raro o ingresso de alunos que vêm das engenharias ou de outras áreas das ciências exatas, mas de outras áreas das ciências sociais, como o Direito, de onde ele vinha, era, e continua sendo, quase impossível.

    Passado esse primeiro espanto, outros tantos vieram, com sua excepcional tese de mestrado, com sua determinação em entrar no doutorado da Filosofia da USP, coisa que eu julgava impossível, mas que ele também conseguiu, com sua incomensurável capacidade de absorver conhecimentos e devorar enormes catataus de teorias sociais, filosóficas e econômicas, com a criatividade de suas teses (sua recriação da teoria de classes que aparece em seu último livro é para mim insuperável), com o brilhantismo de sua tese de doutorado na Filosofia, de cuja banca de arguição eu tive a honra de participar.

    A afinidade intelectual transformou-se numa amizade sólida, que já dura 30 anos, e na participação conjunta em muitas outras atividades. Juntos fizemos, por cerca de quatro anos, a revista Praga – estudos marxistas, que foi das experiências intelectuais mais interessantes e agradáveis de que participei. Em meados dos anos 1990, em pleno domínio das ideias e programas neoliberais sob a presidência de FHC, a revista veio preencher uma lacuna. Era uma revista intelectual, mas não acadêmica, uma revista de intervenção, que trazia o que de melhor e mais recente vinha sendo produzido, nacional e internacionalmente, em termos de teoria crítica. E fazíamos tudo isso, meus companheiros e eu, professores da USP e Unesp, Fernando dentre eles, sem nenhum amparo institucional, sem nenhum guarda-chuva oficial que nos abrigasse. O que movia a Praga era simplesmente a disposição militante, vinculados que estávamos todos aos mesmos ideais.

    E de muitas outras aventuras participamos juntos. Nossa amizade conjunta com o Prof. João Sayad levou-nos à prefeitura de São Paulo, na gestão de Marta Suplicy, Sayad como secretário de finanças, Fernando como subsecretário, eu como assessora chefe do gabinete do secretário. Quase nada foi feito na prefeitura nos dois primeiros anos dessa gestão sem a presença desse trio, ou de algum de seus integrantes. Ao Fernando coube as tarefas mais difíceis, por exemplo, negociar com uma enorme fila de credores, de vendedores de alface a grandes empreiteiras, o enorme déficit deixado pelo desastre Maluf/Pitta, que destruíra as finanças da cidade (tratava-se, valores da época, de R$ 1,0 bilhão não pagos num orçamento de R$ 10 bilhões). Juntos estudamos e elaboramos, com o apoio decidido de Sayad, o projeto do IPTU progressivo, que permitiu fazer justiça tributária na cidade (ao menos no que estava ao alcance das finanças municipais); juntos sobrevoamos a cidade a convite do então Secretário de Habitação, o hoje deputado Paulo Teixeira do PT, de onde nasceu, da cabeça do Fernando, essa ideia maravilhosa dos CEUS, os Centros de Educação Unificados, que mudaram para melhor a paisagem urbana e humana das tristes periferias de São Paulo.

    Em todo esse período na Prefeitura o meu espanto com ele só cresceu. Nunca entendi como conseguia saber de tudo, conhecer tudo, em tantos detalhes e ter tantas ideias criativas e viáveis para resolver todos os problemas. Mas ele não tinha só as ideias, ele era capaz de colocá-las em prática, com enorme capacidade executiva, e sempre muito querido por seus comandados, simpático e afável que sempre é.

    Em seu período no Ministério da Educação nos afastamos um pouco. Eu andava brava demais com a política econômica de Lula, comandada por Palocci, que tinha encastelado nos principais cargos da gestão econômica próceres do liberalismo e da ortodoxia econômica que passei a vida combatendo. Numa das vezes que fui a Brasília, fui jantar com ele. Ele andava animadíssimo com a possibilidade de aprovação do Prouni no Congresso, abrindo-se a possibilidade de realizar uma ideia dele que eu conhecera num almoço no clube dos professores da USP, uma década antes. Eu de pé atrás, dizendo que com os recursos (de isenção tributária) envolvidos no Prouni ele poderia aumentar em muito as vagas de universidades públicas. Ele me disse, vamos fazer isso também, você vai ver. E de fato ele fez, criou 21 novas universidades federais e mais de duas centenas de novos campi país afora, interiorizando o ensino superior e mudando a paisagem de tantos lugares do Brasil profundo, ajudando assim a reduzir, por essa via, a obscena desigualdade regional que ainda temos.

    A revolução na educação universitária que foi feita, mais do que dobrando o número de estudantes universitários e abrindo essa possibilidade de emancipação às classes mais baixas de renda não poderia ter sido feita sem a atuação conjunta de Prouni, Fies e novas universidades federais, associados todos ao ENEM e às políticas de cotas. Fernando estava certo mais uma vez e essa talvez tenha sido, de todas as transformações colocadas em marcha pelos governos de Lula e Dilma, a mais importante, porque aquela que mais condições tem de permanecer como transformação estrutural, com capacidade de chacoalhar as estruturas sociais. As posições à esquerda, eu dentre elas, sempre reclamamos que os governos do PT não fizeram transformações estruturais, que mantiveram e acabaram por patrocinar uma regressão no perfil da oferta do país, por conta da desindustrialização e dos continuados benefícios à riqueza financeira que o apego à política monetária liberal acabou por patrocinar. Mas essa revolução universitária muda um pouco esse panorama e ela foi a realização das ideias e da capacidade executiva do Fernando, de seu enorme talento como homem público, e de sua integridade.

    Voltei a estar junto com Fernando na Prefeitura, como sua secretária de planejamento. Outro período de enormes desafios, dos quais tentei me desincumbir da melhor forma que pude e ajudá-lo naquilo que me foi possível. Consegui trazer para a Sempla as cabeças jovens mais brilhantes que eu conhecia, muitas delas largando tudo, perdendo dinheiro, pelo prazer de ir trabalhar num governo sob o comando dele, pela esperança que sua gestão representava para a cidade. Considero sua gestão, da qual saí por razões pessoais em março de 2015, a melhor que a cidade já teve, a mais avançada, aquela que buscou colocar São Paulo no nível das maiores e mais importantes capitais do mundo em termos de mobilidade, de plano diretor, de resgate do espaço público. São Paulo, sem uma gestão como essa, não é uma cidade, é um consórcio nefasto e fascista de cidadelas privadas, onde se tenta sempre excluir ao invés de incluir. Infelizmente o ovo da serpente já estava sendo chocado há muito tempo, com a tentativa de destruir, com mídia, com lawfare e com tudo, as forças democráticas, que com todos os seus percalços, alguma mudança estavam conseguindo impor às funestas e carcomidas estruturas sociais que marcam a ferro e fogo o país desde seu nascimento. Fernando perdeu a reeleição para uma fraude chamada João Dória.

    Em todos esses 30 anos de amizade, sempre que eu disse ao Fernando que ele não iria conseguir alguma coisa, ele me desmentiu. Então eu digo agora: "não vai dar, amigo, você não vai conseguir; é pena, pois, dadas as atuais condições, em meio a um estado de exceção que tem de manter a fachada democrática e colocar as eleições em marcha, não pode haver ninguém mais talhado do que você para enfrentar o desafio em que se transformou a condução deste país ".

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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