Haddad, um ministro 100% sem tabus. Ou quase..
'Em diversas áreas da economia brasileira, estamos em situação limite', escreve o colunista Valter Pomar
Fernando Haddad, ministro da Fazenda, concedeu uma entrevista à jornalista Mônica Bergamo.
A entrevista pode ser lida aqui:
Há, também, trechos da entrevista em vídeo.
Aqui:
https://youtu.be/hvu2mKPsVEg?si=r826DQ9iD_xVWYhj
E aqui:
https://youtu.be/aLn1IrBUH_g?si=g4ZNhBHuTpUjJOI8
Lendo a entrevista, uma dúvida nova somou-se à uma dúvida velha.
A dúvida velha é: por qual motivo atribuir, a um nosso potencial candidato à presidência, a tarefa de fazer cortes e ajustes?
A dúvida nova é: por qual motivo dar notícias ruins bem na véspera do segundo turno das eleições municipais?
Alguma razão deve existir, afinal de contas tanto Lula quanto Haddad não são propriamente inexperientes. Mas como mesmo os mais tarimbados cometem seus erros, sigo em dúvida.
Além das dúvidas citadas, fiquei com duas certezas.
Primeiro: Haddad é mesmo o mais tucano dos petistas. É isso que explica não apenas o diagnóstico que ele faz da situação, como também seu sincericídio quanto a Faria Lima.
Segundo: se depender da política atualmente adotada pela Fazenda, o Brasil passará bem longe de qualquer coisa que se possa chamar de desenvolvimento. Aliás, a palavra “desenvolvimento” nem ao menos comparece na versão editada da entrevista.
Isto posto, alguns comentários sobre a entrevista, que reproduzo na íntegra ao final.
A entrevista abre como de costume: ...as receitas cresceram, mas os gastos estruturais também. Em consequência, a dívida pública aumentou, bem como as dúvidas sobre sua sustentabilidade...
Ao responder, Haddad simplesmente desconsidera que nosso maior “gasto estrutural” - e descontrolado - está relacionado com os juros, com o serviço da dívida, com a Faria Lima.
Esta omissão é fatal e contamina tudo o que vem a seguir.
Para além disso, Haddad parte do pressuposto de que o diagnóstico implícito na pergunta é verdadeiro, ou seja, de que há mesmo um descontrole nas despesas, um “desequilíbrio fiscal”.
Aliás, foi desse pressuposto que nasceram os números mágicos de 70% e 2,5%.
A soma do Tico com o Teco– aceitar como inevitável a sangria financeira e admitir a existência de um desequilíbrio – produz o resultado óbvio: a saída estaria em cortar.
Nós já sabemos o que acontece quando um governo de esquerda tenta fazer isso, como aconteceu na época de Palocci e na época de Levy. Acho que Haddad também sabe, mas ele parece estar mais preocupado com o Estado do que com o governo...
Aliás, quando aconteceu o debate sobre o Novo “Calabouço” Fiscal, um setor do PT alertou os problemas que decorreriam da opção pela contenção de gastos.
Um dos alertas foi: no médio prazo isso vai reduzir a presença do setor público. E isso seria um desastre, pois o país precisa exatamente do contrário: aumentar o investimento público.
Em resposta a esta e a outras críticas, a equipe do Ministério da Fazenda, ou tergiversou, ou apostou que as receitas cresceriam o suficiente para evitar tal cenário.
Na entrevista, Haddad reconhece parte da verdade: “Até aqui, deu certo”, mas a partir de agora precisa cortar na carne.
Um “detalhe” revelador, antes de seguir para a próxima pergunta.
Haddad diz que o “déficit veio para alguma coisa em torno de 1% do PIB, excetuada a despesa extraordinária com queimadas, que é pequena em relação ao orçamento, e com o Rio Grande do Sul [por causa das enchentes]. Despesa da qual me orgulho: a economia gaúcha está em franca recuperação”.
Situações como a das queimadas, das enchentes e, acrescento, dos apagões, não são “extraordinárias”. Em diversas áreas da economia e da sociedade brasileiras, estamos em situação limite. A política de “apagar incêndio” através de recursos que não contam para os limites pode fazer a alegria de algum cabeça de planilha desavisado, mas não resolve de maneira estrutural os problemas do país.
Voltemos à entrevista.
A segunda pergunta foi uma afirmativa: “Mas há apreensão pois a dívida pública cresce”.
A resposta dada por Haddad foi a seguinte: “A Faria Lima está, com razão, preocupada com a dinâmica do gasto daqui para a frente. E é legítimo considerar isso com seriedade. A soma das partes, das rubricas orçamentárias, pode fazer com que o arcabouço fiscal aprovado por este governo não se sustente. O que a Faria Lima está apontando — na minha opinião, com algum exagero em relação ao preço dos ativos brasileiros — é que a dinâmica [dos gastos] para a frente é preocupante. Pode ter impacto na dívida [que a União tem que fazer para financiar seus gastos]. E o governo tem que tomar providências. A Fazenda está com isso na mesa, 100%.”
Talvez por não acreditar no que ouviu, a jornalista insiste: “Com a mesma preocupação?”
Haddad não se faz de rogado e responde: “A mesma preocupação. Desde fevereiro estamos tomando algumas medidas — que não são suficientes para endereçar esse problema para o futuro próximo. E eu tenho conversado com o presidente Lula sobre esse tema específico”.
Tudo bem que o ministro da Fazenda tenha que dialogar com a Faria Lima. Mas o que Haddad comete nessa entrevista me lembra algo que me contaram, certa vez, acerca de uma reunião de Palocci com o setor financeiro: ele foi negociar e voltou vendido. E rendido.
Simplesmente não é verdade que Faria Lima tenha razão para estar preocupada com absolutamente nada. A Faria Lima não está exagerando. Ela está falsificando os fatos. A dinâmica fiscal não é preocupante. A Faria Lima está fazendo terrorismo. Estão no papel deles. O papel do ministro da Fazenda deveria ser o de enfrentar o terrorismo. Mas não. O que Haddad diz, textualmente, é que está 100% com a mesma preocupação da Faria Lima.
Ao responder a pergunta seguinte, Haddad fala da “dinâmica dos gastos e do impacto disso sobre a dívida. O impacto é o efeito monetário da política fiscal. Quando as pessoas perdem a certeza de que o governo está endereçando esses temas, elas começam a cobrar um prêmio de risco em juros”.
Para muita gente, o que foi transcrito anteriormente pode soar meio esotérico. Seja como for, Haddad sempre disse que o Arcabouço Fiscal era essencial, entre outros motivos, porque supostamente ele permitiria baixar os juros. E, com juros baixos, a economia poderia crescer. Ou seja, a política fiscal incidiria positivamente na política monetária.
O que ele está dizendo agora, quase dois anos depois, é a mesma coisa que antes. E vai continuar dizendo a mesmíssima coisa enquanto for ministro, porque pelo visto ele realmente acredita que “as pessoas” cobram juros altos porque “perdem a certeza” de que o governo está mantendo os “gastos” sob controle.
A realidade é outra. O mercado financeiro sempre vai dizer que os gastos estão descontrolados e, enquanto eles tiverem poder, vão cobrar o “prêmio” que puderem arrancar, doa a quem doer.
O papel do ministro da Fazenda deveria ser, na melhor das hipóteses, o de mediar. Mas o que Haddad faz, nesta entrevista, é capitular 100%.Mesmo quando a entrevistadora levanta a bola, ele não aproveita. Pergunta a entrevistadora: “... hoje os juros da dívida pública pagos pelo governo estão em torno de 7%, o dobro do PIB....”.
Responde Haddad: “É esse o problema. Você tem que endereçar corretamente. Tem que dar credibilidade para a dinâmica futura [de gastos e da dívida feita para financiá-los] para trazer esses juros ao patamar adequado. Caso contrário, o teu problema não vai ser de déficit primário [diferença entre arrecadação e gastos do governo], mas de déficit nominal, que inclui o pagamento de juros. Eu sempre disse, e repito: a política monetária e a fiscal têm que estar harmonizadas. Ou você produz um ciclo vicioso do qual é difícil de sair. Onde está a virtude? Em continuar fazendo o que é o mantra da Fazenda: as receitas têm que voltar ao patamar adequado para financiar [os gastos], combatendo jabutis que favorecem grupos específicos, por exemplo”.
Leiam novamente o que está respondido acima e procurem alguma reclamação contra os juros artificialmente altos. Não acharão. O “mantra” trata os juros, a dívida e o setor financeiro como variável intocável.
O resultado deste combo é a volta da lógica Palocci: a despesa tem que ser menor do que a receita, assim geramos superávit, desta forma a taxa de juros vai cair e, feito o dever de casa, o setor privado vai comandar o crescimento.
Chega a ser engraçado ver Haddad dizendo que a taxa de juros “vinha caindo até o final de 2023”. Sim, vinha caindo... de um ponto da estratosfera para outro ponto da estratosfera.
Perguntado sobre o que fala com Lula, Haddad dá uma resposta também muito didática: “Falo o seguinte: o mercado está entendendo que a soma das partes —a soma do salário mínimo, saúde, educação, BPC— é maior do que o todo. Ou seja, vai chegar uma hora em que esse limite de 2,5% [de crescimento da despesa em relação ao da receita] não vai ser respeitado. Ainda que a receita responda, o arcabouço fiscal não vai funcionar se a despesa não estiver limitada. Eu falo para o presidente exatamente o que estou falando para você. Que precisa ajustar a despesa. Nós precisamos enfrentar essa questão para as pessoas enxergarem que as somas das partes vai caber no todo”.
Ou seja: o ministro da Fazenda fala para o presidente aquilo que “o mercado” está entendendo. E propõe “ajustar a despesa” para “as pessoas” enxergarem que “a soma das partes vai caber no todo”.
As “pessoas”, como já foi explicado anteriormente, são os grandes detentores da dívida pública.
O problema é que estas “pessoas” sempre entenderam assim; elas sempre quiseram, defenderam e lutaram por um Estado menor.
Aliás, é revelador que Haddad tenha enumerado como “partes” cuja soma é maior do que o todo, exatamente o salário mínimo, a saúde, a educação e o BPC.
É aí que o mercado quer cortar.
Haddad, como se sabe, é um estadista. Por isso ele explicita que sua preocupação não é com o governo Lula, mas com o Estado brasileiro. Palavras dele: “O que eu estou dizendo agora para ele [Lula] é: 'Olha, o senhor é um presidente de quatro, oito anos, não importa. Mas nós estamos cuidando do Estado brasileiro, para além do seu mandato. As pessoas não estão olhando só para 2026. O mercado financeiro olha para 2027, para 2028, para 2029, para 2030. Vê a trajetória da dívida [em alta] e muitas vezes cobra à vista [exigindo juros maiores] o problema [que vai estourar mais à frente e] que ela está antecipando'. É natural. Estou mostrando ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário que nós temos que equacionar estruturalmente as finanças do país. Caso contrário, o mercado, que não está pensando em governo, está pensando na rentabilidade dos seus ativos, antecipa decisões e prejudica o presente. Então, não há como contornar o problema. Você pode fazer isso por um, dois, seis meses. Mas não vai conseguir equacionar”.
Quatro ou oito anos, não importa???!!!
Volto a dizer: qualquer ministro da Fazenda é obrigado a ter alguma empatia com os interesses do grande capital, assim como o diretor de um presídio de alta segurança precisa ter alguma empatia com os que estão sob sua guarda. Mas Haddad exagera na empatia.
Não falo apenas de sua insistência em falar de “pessoas”, para se referir ao mercado financeiro, ao mesmo tempo em que não fala nada, absolutamente nada, acerca das pessoas que serão prejudicadas pelos ajustes nos gastos.
Quando falo do exagero na empatia, refiro-me a tratar como “natural” a chantagem dos interesses de curto prazo do mercado financeiro.
Releiam: “(...) nós estamos cuidando do Estado brasileiro, para além do seu mandato (...) o mercado financeiro (...) Vê a trajetória da dívida [em alta] e muitas vezes cobra à vista [exigindo juros maiores] o problema [que vai estourar mais à frente e] que ela está antecipando'. É natural. (...) temos que equacionar estruturalmente as finanças do país. Caso contrário, o mercado, que não está pensando em governo, está pensando na rentabilidade dos seus ativos, antecipa decisões e prejudica o presente (...)”.
Vou dizer de outra forma: há diferentes formas de “equacionar estruturalmente as finanças do Brasil”. A forma que considera “natural” a lógica da “rentabilidade dos ativos” tem como efeito desestruturar ainda mais a pequena parte do Estado que pode servir ao povo.
Não sei se Haddad vai convencer Lula.
Espero que não.
Mas acho revelador que Haddad apresente Lula como “o campeão do superávit primário em seus oito anos de governo”.
A questão é: há maneiras e maneiras de produzir superávit primário e reduzir a dívida. É possível, por exemplo, combinar superávit com recessão, ou com crescimento baixo ou com crescimento alto.
Haddad parece ter escolhido a mediocridade e vende isso como se fosse um grande sucesso. O Brasil precisa de crescimento muito alto, por décadas, combinado com ampliação do bem-estar. Precisamos de desenvolvimento. Tema que, como já foi dito, não comparece, ao menos na versão editada da entrevista.
Ademais, vamos combinar, o que interessa para a imensa maioria da população não é o superávit primário, mas sim o desenvolvimento, a ampliação do bem-estar social. Uma célebre economista talvez lembrasse que povo não come superávit primário.
Na entrevista, Haddad chega ao ponto de defender Fernando Henrique, negando a existência de uma "herança maldita" e se atrapalhando quando lembrado, pela jornalista, que o próprio Lula usava a expressão "herança maldita".
A entrevista de Haddad é particularmente importante, também, porque mais uma vez alguém da Fazenda diz ao público o que tergiversa ou nega nas conversas privadas.
Perguntado explicitamente sobre vinculação dos gastos de educação e saúde ao aumento da receita, indexação do salário mínimo, BPC e seguro desemprego Haddad diz o seguinte: "O governo, e eu não me excluo, demorou a perceber o grau de disfuncionalidade causado pela alteração de alguns programas. Desde 2021 houve a PEC do Calote [que adiou o pagamento de precatórios], a retirada de filtros do BPC e do Bolsa Família [para a concessão dos benefícios], a ampliação do Fundeb [fundo da educação básica] de R$ 22 bilhões para quase R$ 70 bilhões em 2026 sem fonte de financiamento. Ou seja, muitas das despesas que se pretende cortar foram contratadas antes de o Lula tomar posse. Quando vê isso, o presidente fala assim: 'Pô, mas eu vou cortar dos pobres?'. Percebe a situação?” [Eu digo a Lula] 'Ninguém está dizendo que é fácil. O senhor colocou o pobre no orçamento, ninguém está pedindo para tirar. Mas há questões estruturais que precisam ser resolvidas. Porque são distorções muitas vezes criadas com finalidades eleitorais, particularmente pelo governo anterior. Elas estão no nosso colo. Não tem pra quem dar a batata quente. Então temos que resolver".
Repito aqui o trecho mais mágico: "O senhor colocou o pobre no orçamento, ninguém está pedindo para tirar. Mas...".
Na narrativa que Haddad vai alinhavando, vinculação dos gastos de educação e saúde ao aumento da receita, indexação do salário mínimo, BPC e seguro desemprego entram no mesmo combo das distorções com finalidades eleitorais.
O nome disto é influência do pensamento hegemônico. O mais tucano dos petistas está demonstrando merecer o apelido carinhoso.
Definitivamente, a vida do presidente Lula é difícil. Seu ministro diz publicamente que, “na condição de ministro da Fazenda", "tem a obrigação de informar ao público as preocupações da área econômica. Mas não posso antecipar decisões que vão ser tomadas pelo chefe do executivo”.
Ou seja: o ministro tem a "obrigação" de se reportar “ao público” através da Folha. Leia-se, fazer pressão pública. E o presidente que decida como lidar com a “batata quente”.
Bom, se o ministro considera ter essa obrigação, considero como obrigação dos que discordam disso é vir à público e se manifestar.
Haddad é um cara muito inteligente, sem dúvida. Talvez por isso, ele confie que seria possível cortar, sem mexer com os mais pobres: “Há uma forma inteligente de endereçar o problema. Do mesmo jeito que a gente fez o país crescer 3%, e ninguém acreditava [que isso seria possível]”.
Sem querer empanar seu (dele) otimismo, um dos problemas é que Haddad não percebe que o crescimento obtido veio, em parte, da mesma fonte que ele agora quer cortar. Leiam a sequência abaixo.
Pergunta: Mas cresce justamente pela expansão do gasto público...
Resposta: "[interrompendo] Não, não é verdade. O impulso fiscal desse ano é menor do que o do ano passado. Como é que então vai explicar o crescimento pelo gasto? As pessoas estão desconsiderando que nós estamos fazendo a maior reforma tributária da história desse país. A maior reforma de crédito da história desse país. Que nós estamos reformulando o setor de seguros. Que o crédito vai expandir mais de 10%, acima das receitas. Por que setor após setor tem encontros com o presidente da República no Palácio do Planalto pra anunciar investimentos da ordem de R$ 90 bilhões, R$ 120 bilhões, se a incerteza é tão grande? Será que é?"
Por qual motivo negar ou minimizar a influência do investimento público nas taxas de crescimento? Aliás, porque aceitar, sem mediações, o termo "gasto"?
A resposta é: para melhor justificar os cortes, é preciso apresentar como “gasto” inclusive aquilo que na verdade é investimento. Do contrário, ficaria evidente que o corte nos investimentos vai prejudicar o crescimento (sem discutir a qualidade deste investimento).
Como reconhece Haddad, o “papel do ministro da Fazenda não é só (sic) apresentar uma planilha para o presidente”: é preciso “convencer a opinião pública”.
Haddad tem perfeita noção dos efeitos que podem decorrer de cortes nos "gastos". Vejamos o que ele diz, na entrevista, a respeito disso: “o que mais protege os mais pobres é crescimento com baixa inflação. Sem crescimento, não tem como fazer ajuste nenhum em um país como o Brasil. É inviável politicamente. Temos então que combinar tudo isso. Às vezes o caminho é um pouquinho mais longo do que um economista ortodoxo gostaria. Mas ele é mais saudável do ponto de vista político, econômico e social. Olha o que está acontecendo na Argentina: 60% das pessoas [vivem hoje] abaixo da linha da pobreza. Não sei quantas passam fome. Uma coisa é o [presidente da Argentina, Javier] Milei fazer isso. Outra coisa é o Lula fazer isso”.
A primeira coisa a destacar no raciocínio acima é a frase "sem crescimento não tem como fazer ajuste". Do jeito que está dito, é como se o objetivo fosse o ajuste; e não o crescimento, o desenvolvimento, o bem estar, o que quer que seja.
A segunda coisa a destacar é a comparação com a Argentina.
O raciocínio segundo o qual "uma coisa é o [presidente da Argentina, Javier] Milei fazer isso. Outra coisa é o Lula fazer isso”, do jeito que foi apresentado, pode levar a concluir que a diferença estaria na brutalidade do ajuste, não na sua natureza. E o que diferencia Milei de Lula não é apenas o como, mas também e principalmente o quê se está fazendo.
Provavelmente Haddad (e seus apoiadores) vão concordar com isso que acabei de dizer e debitar minha crítica à má interpretação. Mas, lendo e relendo a entrevista, encontro inúmeros trechos que confirmam que o uso do cachimbo está deixando a boca torta.
Para terminar esta glosa, cito a seguinte pergunta feita por Monica Bergamo: “que gastos são "imexíveis" para o presidente Lula?”Haddad responde que “não existe tabu para a área técnica”.
Não tem tabu, mas tem torcicolo: a área "técnica" não consegue olhar em direção ao gastos impostos pelas "pessoas" do mercado financeiro. E se não derrotarmos estas "pessoas", não teremos bem-estar, não teremos soberania, não teremos desenvolvimento.
Mas seguramente teremos tucanos e calabouços.
Segue a transcrição da entrevista
(como foi feita na base do copia e cola, pode ter algum erro)
Há quase dois anos o senhor parece exclusivamente correr atrás de receitas. Elas cresceram, mas os gastos estruturais também. Em consequência, a dívida pública aumentou, bem como as dúvidas sobre sua sustentabilidade. Há limites técnicos e políticos tanto para novo aumento de receitas quanto para a reestruturação dos gastos. Que cartas o senhor ainda tem na manga para enfrentar o problema?
Vamos lembrar alguns indicadores importantes. A deterioração da base fiscal do Estado começou lá atrás, em 2015. Perdurou e piorou até 2023. Recebi um orçamento do governo anterior com previsão de receitas na casa de 17% do PIB, o pior da série histórica. A despesa estava na casa de 19,5% do PIB. A maquiagem de 2022 passou a impressão para a sociedade de que tínhamos um equilíbrio fiscal. Mas ele foi construído com base no calote de precatórios e em privatizações açodadas que geraram receitas que não se repetiriam nos anos seguintes. O que fizemos? Nós estabelecemos um teto de gastos determinando que a despesa não pode crescer acima de 70% da receita. E dentro do limite de 2,5%. A diferença vai recompor as contas públicas deterioradas. Até aqui, deu certo. O déficit veio para alguma coisa em torno de 1% do PIB, excetuada a despesa extraordinária com queimadas, que é pequena em relação ao orçamento, e com o Rio Grande do Sul [por causa das enchentes]. Despesa da qual me orgulho: a economia gaúcha está em franca recuperação. Então a meta deste ano está sendo mantida. E se não fossem dois episódios da política —como você coloca bem em sua pergunta— , que foi [o Congresso] estender a desoneração da folha [de pagamentos de salários] aos municípios de até 156 mil habitantes e o Perse [programa de retomada do setor de eventos que previa isenções], nós estaríamos hoje em equilíbrio fiscal.
Mas há apreensão pois a dívida pública cresce.
A Faria Lima [avenida de SP onde se concentram agentes do mercado financeiro] está, com razão, preocupada com a dinâmica do gasto daqui para a frente. E é legítimo considerar isso com seriedade. A soma das partes, das rubricas orçamentárias, pode fazer com que o arcabouço fiscal aprovado por este governo não se sustente. O que a Faria Lima está apontando —na minha opinião, com algum exagero em relação ao preço dos ativos brasileiros — é que a dinâmica [dos gastos] para a frente é preocupante. Pode ter impacto na dívida [que a União tem que fazer para financiar seus gastos]. E o governo tem que tomar providências. A Fazenda está com isso na mesa, 100%.
Com a mesma preocupação?
A mesma preocupação. Desde fevereiro estamos tomando algumas medidas —que não são suficientes para endereçar esse problema para o futuro próximo. E eu tenho conversado com o presidente Lula sobre esse tema específico.
Da dívida pública?
Da questão da dinâmica dos gastos e do impacto disso sobre a dívida. O impacto é o efeito monetário da política fiscal. Quando as pessoas perdem a certeza de que o governo está endereçando esses temas, elas começam a cobrar um prêmio de risco em juros.
E alto: hoje os juros da dívida pública pagos pelo governo estão em torno de 7%, o dobro do PIB.
É esse o problema. Você tem que endereçar corretamente. Tem que dar credibilidade para a dinâmica futura [de gastos e da dívida feita para financiá-los] para trazer esses juros ao patamar adequado. Caso contrário, o teu problema não vai ser de déficit primário [diferença entre arrecadação e gastos do governo], mas de déficit nominal, que inclui o pagamento de juros. Eu sempre disse, e repito: a política monetária e a fiscal têm que estar harmonizadas. Ou você produz um ciclo vicioso do qual é difícil de sair. Onde está a virtude? Em continuar fazendo o que é o mantra da Fazenda: as receitas têm que voltar ao patamar adequado para financiar [os gastos], combatendo jabutis que favorecem grupos específicos, por exemplo.
Em que patamar do PIB o senhor acha que a receita deve ser estabelecida?
Na casa de 19% do PIB. E a despesa, obviamente, tem que ser menor do que 19% do PIB, para gerarmos superávit. Se conseguirmos fazer isso, a taxa de juros vai voltar a cair, como vinha caindo até o final de 2023.
E o que o senhor está falando com o Lula?
Falo o seguinte: o mercado está entendendo que a soma das partes —a soma do salário mínimo, saúde, educação, BPC— é maior do que o todo. Ou seja, vai chegar uma hora em que esse limite de 2,5% [de crescimento da despesa em relação ao da receita] não vai ser respeitado. Ainda que a receita responda, o arcabouço fiscal não vai funcionar se a despesa não estiver limitada. Eu falo para o presidente exatamente o que estou falando para você. Que precisa ajustar a despesa. Nós precisamos enfrentar essa questão para as pessoas enxergarem que as somas das partes vai caber no todo.
E que despesas ele então concorda em ajustar?
Ele tomou providências em relação ao orçamento do ano que vem. O que eu estou dizendo agora para ele é: 'Olha, o senhor é um presidente de quatro, oito anos, não importa. Mas nós estamos cuidando do Estado brasileiro, para além do seu mandato. As pessoas não estão olhando só para 2026. O mercado financeiro olha para 2027, para 2028, para 2029, para 2030. Vê a trajetória da dívida [em alta] e muitas vezes cobra à vista [exigindo juros maiores] o problema [que vai estourar mais à frente e] que ela está antecipando'. É natural. Estou mostrando ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário que nós temos que equacionar estruturalmente as finanças do país. Caso contrário, o mercado, que não está pensando em governo, está pensando na rentabilidade dos seus ativos, antecipa decisões e prejudica o presente. Então, não há como contornar o problema. Você pode fazer isso por um, dois, seis meses. Mas não vai conseguir equacionar.
E o presidente se convenceu?
Nós estamos conversando. Estamos tendo mais tempo para isso, até em função do recesso do Legislativo por causa das eleições. O presidente foi o campeão do superávit primário em seus oito anos de governo [anteriores, de 2002 a 2010]. Foi a pessoa que mais reduziu a dívida pública, e tem orgulho disso. Agora, é óbvio que o que ele herdou do governo Bolsonaro é completamente diferente do que o que ele herdou do [governo] Fernando Henrique Cardoso.
Aquela herança maldita do governo FHC, portanto, não era assim tão maldita?
Eu nunca usei essa expressão. Tem que cobrar de quem usou.
O Lula usou.
Eu realmente não sei. Mas nada é comparável ao que aconteceu de 2015 para cá.
O presidente Lula não parece disposto a mexer na vinculação dos gastos de educação e saúde ao aumento da receita, na indexação do salário mínimo, no BPC, no seguro desemprego. Ou seja, em um conjunto de gastos que só cresce e que é apontado como causador do problema estrutural da dívida.
O governo, e eu não me excluo, demorou a perceber o grau de disfuncionalidade causado pela alteração de alguns programas. Desde 2021 houve a PEC do Calote [que adiou o pagamento de precatórios], a retirada de filtros do BPC e do Bolsa Família [para a concessão dos benefícios], a ampliação do Fundeb [fundo da educação básica] de R$ 22 bilhões para quase R$ 70 bilhões em 2026 sem fonte de financiamento. Ou seja, muitas das despesas que se pretende cortar foram contratadas antes de o Lula tomar posse. Quando vê isso, o presidente fala assim: 'Pô, mas eu vou cortar dos pobres?'. Percebe a situação?
E então?
[Eu digo a Lula] 'Ninguém está dizendo que é fácil. O senhor colocou o pobre no orçamento, ninguém está pedindo para tirar. Mas há questões estruturais que precisam ser resolvidas. Porque são distorções muitas vezes criadas com finalidades eleitorais, particularmente pelo governo anterior. Elas estão no nosso colo. Não tem pra quem dar a batata quente. Então temos que resolver".
Mas o que será feito, afinal?
Eu estou aqui na condição de ministro da Fazenda que tem a obrigação de informar ao público as preocupações da área econômica. Mas não posso antecipar decisões que vão ser tomadas pelo chefe do executivo.
E como fazer isso sem mexer com os mais pobres?
Dá para fazer. Há uma forma inteligente de endereçar o problema. Do mesmo jeito que a gente fez o país crescer 3%, e ninguém acreditava [que isso seria possível].
Mas cresce justamente pela expansão do gasto público...
[interrompendo] Não, não é verdade. O impulso fiscal desse ano é menor do que o do ano passado. Como é que então vai explicar o crescimento pelo gasto?
As pessoas estão desconsiderando que nós estamos fazendo a maior reforma tributária da história desse país. A maior reforma de crédito da história desse país. Que nós estamos reformulando o setor de seguros. Que o crédito vai expandir mais de 10%, acima das receitas.
Por que setor após setor tem encontros com o presidente da República no Palácio do Planalto pra anunciar investimentos da ordem de R$ 90 bilhões, R$ 120 bilhões, se a incerteza é tão grande? Será que é?
O senhor mesmo manifesta preocupação.
Uma coisa é manifestar preocupação. A outra é dizer que nada está sendo feito. Eu gostaria que a velocidade fosse maior? O ministro da Fazenda, se pudesse, fazia um ajuste no primeiro mês do governo para ficar sossegado nos outros três anos e onze meses. Mas as coisas não funcionam assim. Elas têm que ser construídas politicamente. O papel do ministro da Fazenda não é só apresentar uma planilha para o presidente. Isso é o mais fácil. Você chama qualquer economista da Liga das Senhoras Católicas que ele te apresenta uma planilha. Corta aqui, corta ali. Mas vai convencer a opinião pública. Vai aprovar no Congresso. O outro ponto é o seguinte: o que mais protege os mais pobres é crescimento com baixa inflação. Sem crescimento, não tem como fazer ajuste nenhum em um país como o Brasil. É inviável politicamente. Temos então que combinar tudo isso. Às vezes o caminho é um pouquinho mais longo do que um economista ortodoxo gostaria. Mas ele é mais saudável do ponto de vista político, econômico e social. Olha o que está acontecendo na Argentina: 60% das pessoas [vivem hoje] abaixo da linha da pobreza. Não sei quantas passam fome. Uma coisa é o [presidente da Argentina, Javier] Milei fazer isso. Outra coisa é o Lula fazer isso.
Que gastos são "imexíveis" para o presidente Lula?
Não existe tabu para a área técnica. Mas não posso antecipar a avaliação que ele está fazendo. Ele conhece o contexto e está atento. Está com isso na cabeça. Lula tem um plano de governo, tem um plano para o Brasil. Ele é comprometido com esse país.
Todos dão como certo que não existirá nenhum tipo de ajuste no Brasil em 2026 por ser um ano eleitoral. Daí a expectativa de que ele seja feito agora.
Pois é.
Daí a nossa pergunta.
E eu estou respondendo. O que eu não posso é antecipar uma decisão que não me cabe.
O presidente se comprometeu com algumas propostas que aumentam gastos, como a isenção de imposto de renda para a faixa de até R$ 5.000. Ela será dada inclusive para quem ganha mais do que isso, até este valor? Ou será dada apenas a quem recebe exatamente isso?
Não, porque aí quem ganha R$ 5.001,00 paga quanto? Entende? Não dá para funcionar assim. São vários cenários. Estamos levando ao presidente todos os exercícios que ele pede.
Aprovada essa isenção, será necessário buscar uma receita para cobrir os custos. De onde ela virá? Taxando lucros e dividendos, o que pode atingir empresas do Simples e PJs?
A reforma da renda será feita com neutralidade, como aconteceu com a reforma do consumo.
Se dá para um, tem que tirar do outro?
É isso. De onde saiu, para onde vai. Com que escadinha, com que prazo.
De novo: não posso antecipar decisões. O papel da Fazenda é levar cenários e prós e contras para o presidente. "Esse cenário tem esse custo político". Vamos fazer a reforma da renda. Mas o modelo ainda não está definido.
A primeira etapa da reforma da renda será mesmo enviada ao Congresso depois das eleições municipais?
Eu penso que temos agora que resolver antes a questão da reestruturação da despesa. Isso vem na frente de qualquer outra coisa.
Já conseguimos recompor uma boa parte da base fiscal com o que tinha sido perdido [em isenções]. A desoneração da folha [de pagamento de salário das empresas] está com prazo para acabar. O Perse está com prazo para acabar. A isenção de fundos fechados e offshore acabou. São coisas contratadas para sempre. É receita ordinária, e não extraordinária. Nós não estamos vendendo estatal a preço de banana para fazer caixa.
E a próxima etapa, que estou discutindo com Lula, é a da reestruturação [dos gastos]. É a questão mais premente, que está na ordem do dia. E nós temos que dar resposta a isso.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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