Hoje (também) é Dia Internacional da Mulher: apodere-se
Como Lewis Carroll sugeria com sua Alice, se temos um dia para celebrarmos nosso aniversário, restam-nos todos os outros para comemorar os desaniversários e, portanto, podemos fazer deles epicentros para as reivindicações lembradas no 8 de março pelas ruas e manifestações de norte a sul de nosso País
Após um 8 de março intenso pelo mundo e no Brasil, não é justo que, novamente, dispensemos nossa retórica lembrando mais um aniversário do épico discurso do “ex-presidente da República” Michel Temer sobre as capacidades femininas de encontrar “desajustes de preço no supermercado” e de criar filhos. Ou a homenagem do presidente Jair Bolsonaro às mulheres sábias que edificam o lar, ou seus argumentos acerca de um quadro ministerial supostamente equilibrado, no qual duas mulheres valem por dez homens cada uma.
Como Lewis Carroll sugeria com sua Alice, se temos um dia para celebrarmos nosso aniversário, restam-nos todos os outros para comemorar os desaniversários e, portanto, podemos fazer deles epicentros para as reivindicações lembradas no 8 de março pelas ruas e manifestações de norte a sul de nosso País.
Hoje também é um dia, então, para nos lembrarmos das causas que nos agregam, sem, contudo, homogeneizar demandas e espaços de fala, ou múltiplas subjetividades.
Enquanto a maioria das narrativas sobre o dia 8 de março passam pelos movimentos feministas nos Estados Unidos e na Europa, o recente enredo vencedor da Estação Primeira de Mangueira serve para nunca esquecer: também precisamos de mulheres – e feminismos – que não estão no retrato, porque as narrativas não são únicas ou homogêneas.
A cientista brasileira Bertha Lutz, dois anos após o evento que deu origem à data comemorativa em 1917 – um grande ato político no cenário revolucionário da Rússia ainda czarista, que adotava outro calendário –, criava a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher no Brasil. As manifestações normalmente invocadas para justificar o Dia Internacional da Mulher e o reconhecimento de suas pautas na década de setenta pela Organização das Nações Unidas-ONU deixam de falar de mulheres como ela que, no Sul Global, apresentavam a necessidade de garantir a diversidade, mesmo no âmbito de grupos per si subrepresentados.
Lutz liderou muitos dos debates feministas que antecederam a própria criação da ONU pela Carta de São Francisco (1945), em relação aos quais escreveu que “o manto está caindo dos ombros das mulheres anglo-saxãs e nós (mulheres latinas) devemos liderar o próximo estágio das batalhas pelas mulheres”.
O feminismo negro, por exemplo, traz à tona dimensões próprias sobre a violência sexual e o acesso ao mercado de trabalho, mas também recupera um passado em que as mulheres brancas da colônia ficavam em suas casas, sendo educadas para o casamento enquanto as inúmeras peças de roupa as aprisionavam, enquanto nossas ancestrais escravas eram coisificadas pelo trabalho forçado e ininterrupto, e pelos seus corpos permanentemente desvelados.
A Xicanisma, ou feminismo chicano, ou latino, salienta as peculiaridades que o passado (e presente) colonial das mulheres latino-americanas trazem para entender as opressões às quais são sujeitas, salientando questões migratórias e raciais como interseccionalidades importantes dentro da discussão acerca da luta de classes, e cada vez mais têm incorporado as demandas trans em sua agenda.
As mulheres com ascendência asiática, a partir do feminismo asiático, buscam evidenciar, também, as subjugações intrínsecas à sua identidade e etnicidade, dentro e fora dos processos de diáspora, que se perpetuam historicamente desde guerras, até a estigmatização do Oriente pelo Ocidente.
Muitos outros matizes da luta feminista poderiam ser lembrados, sobretudo considerando os elementos de gênero e as subalternidades que fazem com que muitas de nós sejam minorias entre minorias. A pluralidade de memórias e sujeitos que formam a história brasileira reforçam a legitimidade desse pluralismo e das falas reivindicadas.
Por outro lado, e o #Elenão e os processos de resistência mais recentes mostraram que as mulheres ocupam espaços decisivos na luta política, tendo sido capazes de acoplar distintos matizes ideológicos femininos, e ressaltando que toda conquista resulta do binômio reivindicação-conquista.
Não precisamos de mais instituições patriarcais ou de concessões por parte das masculinidades que as estruturas criadas e predominantemente ocupadas por homens permitem. Ao invés disso, reconhecer que não, não se trata de empoderamento, já que esses processos não são meramente negociados ou concedidos, mas conquistados.
Assim, o Dia Internacional da Mulher serve para evocar a ideia de que precisamos nos apoderar de todos os espaços.
Nossas batalhas são, portanto, interseccionais, e por isso, sim, somos – e devemos sempre ser – todas feministas. É nesse contexto que cabe lembrar que, se as demandas são várias, o que queremos é agência, ou seja, poder substancial de escolha.
A luta é, também, para que você, bela, recatada e do lar, tenha seu trabalho como dona de casa um dia compensado por uma aposentadoria, porque você escolheu não compor o mercado de trabalho formal, mas é sua força de trabalho doméstico não remunerado que o mantém.
A luta é por que, caso você queira um dia fazer parte deste, tenha as mesmas oportunidades e termos de contratação e condições de trabalho substancialmente análogas às masculinas, de forma que você não venha a aprisionar, como pressuposto para desenvolver uma carreira, outra mulher – provavelmente negra e/ou nordestina – como doméstica ou babá, nos papeis sociais que você tradicionalmente ocuparia.
É para que você, caso seja vítima de violência na rua, não tenha que repartir a culpa com o abusador e, se for doméstica, não seja mantida em uma situação de subjugação, seja pela dependência econômica do seu companheiro, seja porque um delegado ou o Poder Judiciário não a reconhece como sujeito de direitos, porque você é apenas esposa ou mãe.
Para que sua saia longa seja tão respeitada como minha minissaia, minhas calças ou nossa nudez, e sua beleza não a coisifique, e não dê a ninguém, que não a você mesma, qualquer direito sobre seu corpo ou parte dele.
É, finalmente, para que seu recato não seja fruto de um silenciamento que perpetua uma crença intergeracional – inclusive sua e de muitas de nós – de que o espaço público não é seu. Porque ele é. Apodere-se.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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