Holocausto, genocídio ou mortandade?
Seja qual for o termo para definir o que acontece com o povo palestino, ele importa menos frente às vidas ceifadas diariamente, aos montes, em Gaza
Muitas pessoas, aqui no Brasil, parecem mais preocupadas em como caracterizar o que acontece em Gaza, do que com o que acontece em Gaza. Corpos esmagados, estorricados, esquartejados, varados a tiros, pouco importam, ainda que sejam corpos de civis – crianças, mulheres e idosos. Mas, em todo o mundo, recusando-se à indiferença e importando-se com os fatos e o horror, levantam-se vozes pedindo que cesse o que acontece em Gaza.
Quero a minha entre essas vozes, pois quero paz. Agora.
Lula se manifestou, como presidente da República, sobre o que acontece em Gaza. Tornou pública, em acontecimento no exterior, a posição do governo brasileiro – que é, também, para esse fato de importância transcendente, a posição do Partido dos Trabalhadores (PT), o seu partido.
Em 18 de fevereiro de 2024, ele concedeu entrevista a jornalistas em Adis Abeba, na Etiópia, após ter participado no dia anterior da sessão de abertura da 37ª Cúpula da União Africana. Na ocasião defendeu a criação de um Estado Palestino, livre e soberano, reconhecido como membro pleno da ONU, como uma condição para a paz duradoura na região.
Na entrevista, o presidente brasileiro criticou os países que interromperam o envio de ajuda financeira à ONU para apoio aos refugiados palestinos, muitos dos quais perderam suas casas, passam fome e sede e estão doentes e sem remédios.
Lula afirmou que valores “humanistas” são necessários para buscar uma solução para o conflito e que “ser humanista hoje implica condenar os ataques perpetrados pelo Hamas contra civis israelenses e demandar a libertação imediata de todos os reféns. Ser humanista impõe igualmente o rechaço à resposta desproporcional de Israel, que vitimou quase 30 mil palestinos em Gaza, em sua ampla maioria, mulheres e crianças, e provocou o deslocamento forçado de mais de 80% da população”. A essas afirmações, poucos reagiram.
Mas, na entrevista, Lula disse que o que está acontecendo em Gaza “não existe em nenhum outro momento histórico, aliás, existiu, quando Hitler resolveu matar os judeus”. Esta frase, permitam-me o trocadilho, caiu como uma bomba em comunidades judaicas, no Brasil e ganhou repercussão mundial, sendo utilizada politicamente pelo governo de Israel, em busca de “inimigos” externos que o ajudem a coesionar um governo que vai de mal a pior. Imediatamente, acusaram Lula de “negar o Holocausto”, “comparar fatos incomparáveis”.
A negação do Holocausto é apenas uma manipulação, com fins políticos e propagandísticos. A comparação de fatos merece análise.
A Confederação Israelita do Brasil (CONIB) considerou “infundadas as declarações” de Lula, argumentando que “Israel está se defendendo de um grupo terrorista que invadiu o país, matou mais de mil pessoas, promoveu estupros em massa, queimou pessoas vivas e defende em sua Carta de fundação a eliminação do Estado judeu. Essa distorção perversa da realidade ofende a memória das vítimas do Holocausto e de seus descendentes”. A íntegra da nota da CONIB pode ser lida aqui.
Mas a posição de Lula, externada em Adis Abeba e reiterada no Brasil (“o que o governo de Israel está fazendo com a Palestina não é guerra, é genocídio. Se isso não é genocídio, eu não sei o que é”), em nada difere da nota oficial do Partido dos Trabalhadores, publicada quatro meses atrás, em 16 de outubro de 2023, reagindo à acusação feita pelo embaixador de Israel no Brasil, Daniel Zonshine, de que o partido teria perdido “a visão de humanidade”, por sua posição sobre a guerra que Israel declarou contra o Hamas e que, muito além do grupo, vem atingindo todo o povo palestino, na região.
Na “Resolução do PT sobre a situação na Palestina e Israel” o partido afirma que “apoia, desde os anos 1980, a luta do povo palestino por sua soberania nacional, bem como a Resolução da ONU pela constituição de dois Estados Nacionais, o Estado da Palestina e o Estado de Israel, garantindo o direito à autodeterminação, soberania, autonomia e condições de desenvolvimento, com economia viável para a Palestina, buscando a convivência pacífica entre os dois povos”.
Registra que “o PT historicamente mantém relações partidárias unicamente com a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), assim como com a Autoridade Nacional Palestina sediada em Ramallah” e “condena, desde sua fundação, todo e qualquer ato de violência contra civis, venham de onde vierem. Por isso, condenamos os ataques inaceitáveis, assassinatos e sequestro de civis, cometidos tanto pelo Hamas quanto pelo Estado de Israel, que realiza, neste exato momento, um genocídio contra a população de Gaza, por meio de um conjunto de crimes de guerra”.
A nota pede “um cessar-fogo imediato” e o “cumprimento das resoluções da ONU, especialmente as que garantem a existência do Estado da Palestina e uma relação pacífica com Israel”, alertando “contra os riscos de uma escalada do conflito”. Conclui reiterando que “o mundo não precisa de mais guerras. O mundo precisa de paz” e “convoca sua militância a participar das atividades em defesa da paz, em defesa da solução dos dois Estados (Palestina e Israel) e em defesa dos direitos do povo palestino a uma vida pacífica e com soberania nacional”.
A caracterização do que acontece em Gaza como “genocídio”, e sua denúncia, não é recente, embora tenha obtido repercussão internacional apenas após a entrevista de Lula em Adis Abeba.
É preciso considerar que, em outubro de 2023, quando começou o atrito diplomático com Israel, o Brasil era membro rotativo e presidia o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). Embora a criação de Israel, como um Estado nacional contemporâneo, no pós-Segunda Guerra Mundial, em 14 de maio de 1948, tenha sido produto de uma Resolução da ONU e, um ano após, Israel tenha se tornado o 59º membro das Nações Unidas, o país vem se notabilizando pelo descaso no cumprimento de resoluções da ONU. Isso desgasta politicamente o governo israelense perante a comunidade internacional.
O atrito diplomático do Brasil com Israel foi agravado no mês seguinte. Em novembro, Zonshine foi ao Congresso Nacional brasileiro, onde se encontrou com Bolsonaro. A evidente provocação ao governo pretendia que Lula o convocasse para dar explicações e, no limite, o expulsasse, aprofundando o tensionamento diplomático com o Brasil, e instigando o país a tomar partido, a “entrar na guerra”. A finalidade era desqualificar a posição brasileira sobre o conflito, alegando que o país seria “parte” no conflito. O objetivo da manobra era induzir o rompimento de relações diplomáticas com Israel e, com isso, igualar o Brasil, diplomaticamente, na América Latina, a Bolívia, Honduras, Chile e Colômbia, que romperam com Israel. A provocação foi neutralizada e aquela manobra falhou.
Mas o atual governo de extrema direita de Israel não desiste do seu objetivo estratégico de fragilizar a posição pró-paz do Brasil, distorcendo e alterando o significado dessa posição, conforme manifestou Israel Katz, seu ministro de relações exteriores e uma das principais lideranças do atual governo de Israel. Não por desinformação, mas porque convém ao propósito do seu governo deformar a posição do governo brasileiro, Israel Katz atribui a Lula algo que o presidente da República nunca disse.
A palavra holocausto não foi mencionada, nem na Etiópia, nem no Brasil. Nem está na Resolução do PT de outubro de 2023. Exagerando deliberadamente a interpretação conveniente ao governo israelense, Katz qualificou de “promíscua” e “delirante” a fala de Lula e o declarou persona non grata a Israel. É tão evidentemente exagerada e distorcida essa interpretação, que chega a ser constrangedor ter de argumentar que apelos à paz, ao entendimento e ao acatamento da Resolução da ONU, sobre a coexistência de dois Estados soberanos na região, não são delírio nem promiscuidade.
O sentido e o significado político das manifestações a favor do cessar-fogo e da construção da paz, tanto a do PT quanto a do presidente Lula, são claras como a luz do sol: dois Estados soberanos e paz. O Brasil segue credenciado a prosseguir em seu papel de potencial mediador, entre os protagonistas da paz que, um dia, há de vir para a região.
A extrema direita brasileira, em conexão com seus pares em Israel, fez estardalhaço em redes sociais, reproduzindo o governo israelense. Usa o episódio para disputar o apoio da opinião pública, buscando tirar o foco das investigações sobre os ataques ao Estado Democrático de Direito, perpetradas em 8 de janeiro, das investigações policiais sobre próceres do governo bolsonarista, e das tentativas de deslegitimar o resultado das eleições de 2022. Repete o diapasão do chanceler israelense, prontamente refutado pelo ministro brasileiro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, que desautorizou a versão de “negação do Holocausto” atribuída ao presidente Lula. Para Mauro Vieira, é “algo insólito e revoltante” uma Chancelaria “dirigir-se dessa forma a um Chefe de Estado de um país amigo”.
Ainda assim, representantes da extrema-direita pediram o impeachment de Lula no Congresso Nacional. Buscam, com o barulho midiático, além de prestar serviços e atender às pretensões israelenses de neutralizar diplomaticamente o Brasil, deslocar o foco do problema político que a incomoda nesse momento: a iminência de prisão de sua máxima liderança nacional, o ex-presidente da República.
Vale o registro de que a extrema-direita conseguiu o apoio de setores da direita que se pretende democrática. Alguns parlamentares, incluindo o presidente do Senado, engoliram a versão de que Lula teria “negado o Holocausto”. Alguns vieram a público, até mesmo em tribunas do Congresso Nacional, pedindo que Lula se retratasse para, segundo creem, “corrigir” o que consideram um “erro diplomático” do governo brasileiro.
Com essas ações, uma parte da oposição ao governo brasileiro pretendeu dar curso a um debate público não com o que Lula disse, mas com o que a extrema direita e a direita atribuíram a Lula. Ou seja, um falseamento da posição política daquele a quem se considera um oponente, feito por gente que se considera democrata. Não vale, na democracia, falsear a posição do outro. Mas querem que valha, pois lhes convém.
A distorção da posição do governo brasileiro levou a uma compreensão que considero equivocada, até mesmo de algumas lideranças do próprio PT e também de setores democráticos ligados à comunidade judaica no Brasil.
Em artigo na Folha de S. Paulo (“Lula ofende judeus que votaram nele”) o jornalista e escritor Arnaldo Bloch reproduz a tese de que Lula teria negado o Holocausto e que caiu “na esparrela de estabelecer paralelos entre a campanha militar em Gaza”. Arnaldo Bloch não cogita, contudo, de que seu entendimento, fundado na distorção da posição de Lula, pode estar, ainda que inadvertidamente, sendo posto a favor dos que estão no poder em Israel – cuja coalização, liderada por Benjamin Netanyahu, o próprio autor considera “radical” e de “trajetória corrupta”.
A manipulação da fala de Lula em Adis Abeba é promovida pela extrema direita como diversionismo, como muitos alertaram. Mas é também um episódio recorrente de alteração, buscando ressignificar em sentido oposto, algumas de suas declarações, para indispô-lo junto à opinião pública, ou com comunidades específicas. Tal é o caso. O objetivo é sempre o mesmo: fragilizar sua liderança. O que foi efetivamente dito por Lula, pouco importa para esse propósito.
Há mais de uma década, em novembro de 2012, Eduardo Galeano escreveu sobre Gaza e suas relações com Israel (“Quem deu a Israel o direito de negar todos os direitos?”). Não falou em genocídio, mas já indagava e respondia: “De onde vem a impunidade com que Israel está executando a matança de Gaza?” Desde então, nada mudou, conforme enfatizou Artur Scavone, em artigo no site A Terra é Redonda, afirmando que o país “é uma base avançada militar atômica – não declarada – no Oriente Médio do império financeiro, industrial e militar norte americano para preservar o acesso deste ao petróleo e gás, elementos decisivos para a manutenção do dólar como moeda universal e manter seu poderio econômico”.
Eduardo Galeano dedicou seu artigo, crítico a Israel, “a meus amigos judeus, assassinados pelas ditaduras militares latino-americanas que Israel assessorou”.
Assim como o escritor uruguaio, eu tenho amigos palestinos e tenho, em maior número, amigos judeus. Com vários amigos palestinos, ou adeptos da causa palestina, e com dezenas de amigos judeus e judias, ou filhos de judeus, alguns que não vivem mais, como Alberto Goldman e Jacob Gorender, compartilhei lutas políticas por um Estado democrático de direito, que conquistamos em 1988 e que ambos, como eu, queriam socialista, no Brasil.
O sobrinho de uma dessas amigas foi morto na invasão de 7 de outubro de 2023, realizada pelo Hamas. De acordo com Arnaldo Bloch, o Hamas é uma organização político-militar que “prega, em seus estatutos, a morte de todos os judeus do mundo” e reproduz o antissemitismo “sistêmico disseminado na Europa imemorial e levado ao paroxismo pela mente doentia de Hitler” fundado nos “ideais de pureza racial calcados numa falsa correlação eugênica com a Antiguidade clássica” e na “ideia de uma degenerescência associada aos judeus, que data dos primeiros séculos da Era Comum” passando “pela Inquisição, pelos ‘pogroms’ no Leste Europeu e por processos como o caso Dreyfus”.
Um desses meus amigos, um “judeu da diáspora”, que teve os avós paternos metralhados por nazistas na Bessarabia, cogitou que Lula poderia dizer: “Já estive no Museu do Holocausto e abomino este nefasto quadrante da história. Você, Netanyahu, deveria também abominar o que está fazendo na Faixa de Gaza. Até que cesse-fogo em Gaza, você é persona non grata aqui no Brasil”. Argumentei que Lula nunca pronunciou a palavra holocausto. Ele rebateu reconhecendo que não a pronunciou, mas que “a ferida abre quando se menciona Hitler e as mortes de judeus” e que a menção ao Museu do Holocausto é pertinente, pois foi para lá que o Chanceler israelense “levou o nosso embaixador para fazer o espetáculo que fizeram”.
O cessar-fogo é desesperadoramente necessário em Gaza, urgentemente. Os números são conhecidos, mas vale reiterar que desde o início da guerra são cerca de 30 mil mortos.
A responsabilidade pelo que acontece em Gaza é, a meu ver, dos intolerantes, fundamentalistas, autoritários, sectários e belicistas de ambos os lados. As mortes de Yitzhak Rabin, no lado israelense (1995), e de Yasser Arafat no lado palestino (2004), são marcos das últimas décadas, que impediram o prosseguimento dos esforços políticos pelo entendimento e a paz na região. Desde a virada do século XX para o XXI, a política cedeu lugar à guerra.
No artigo citado de Artur Scavone há um alerta de que “não há santos na região, nem é santo o Hamas, nem é santo o governo de Israel” e que se Israel se transformou em um “porta-aviões no Oriente Médio” para defender os interesses do império norte-americano, “alguns dos países de tradição islâmica não se alinham necessariamente e de fato ao Hamas ou à causa palestina”, corroborando a perspectiva de que não é possível analisar o conflito sem considerar a geopolítica regional, em que a Arábia Saudita e o Irã disputam a hegemonia.
Se os sauditas aceitam dialogar com Israel, o Irã apoia financeiramente grupos que a desestabilizam politicamente, como o Hamas, o Hezbollah e o que reúne os Houthis. Embora essa disputa se expresse por meio de ingredientes religiosos, como as diferentes denominações islâmicas, e político-ideológicos, sobre formas e regimes de governo, é na economia que está o seu fator decisivo: o petróleo e seu controle. Nesse contexto, se o Alcorão, a Torá e mesmo a Bíblia, são referências onipresentes na vida cotidiana, é bem modesta sua influência nas decisões de Estado, nas ações de governos e nas organizações políticas.
A guerra como “continuação da política por outros meios” é um ensinamento bem conhecido, formulado no livro Da Guerra, por Carl Clausewitz (1780-1831), o general prussiano que dirigiu a Escola Militar de Berlim. Ele ensinou também que “a guerra está, sempre, subordinada à política” dela não se separando, portanto, em nenhuma circunstância. Mas Carl Clausewitz não separava a política da ética, considerando que “nenhuma guerra pode ser vencida” sem, dentre outros aspectos, “o estabelecimento dos limites éticos ao uso da força”, pois “a destruição física do inimigo deixa de ser ética, quando ele pode ser desarmado em vez de morto”. Mas hoje, em Gaza, a política parece não estar no comando. Está. Mas, aos olhos do mundo, parece que não.
O que Lula pede, no fundo, é que a política, como exercício do entendimento em bases éticas, volte ao centro das negociações entre israelenses e palestinos.
“Ah, mas Lula falou em genocídio”. Sim, falou. Mas é preciso colocar essa palavra em seu contexto. Lula a utilizou como as pessoas a utilizam atualmente, nas conversas sociais.
A esse respeito é preciso ponderar que, até a emergência da pandemia de covid-19, aqui no Brasil raramente se ouvia o termo genocídio, fora de comunidades acadêmicas, notadamente a de antropólogos, ainda que o genocídio seja tipificado como crime pelo Decreto Federal nº 30.822, de 6 de maio de 1952, assinado pelo presidente Getúlio Vargas. O documento ratifica a “Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio”, aprovada pela ONU na Assembleia Geral das Nações Unidas em 11 de dezembro de 1948.
A Convenção atribui ao termo, proposto no livro O poder do Eixo na Europa ocupada (1944) pelo jurista judeu polonês Raphael Lemkin (1900-1959), que teve quase todos os membros da família assassinados por nazistas, um significado preciso, que corresponde ao que é aceito pela comunidade científica atualmente, como sendo o extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso. Raphael Lemkin foi, portanto, o primeiro a utilizar o Holocausto como exemplo dessa “destruição de populações ou povos”. Para ele “quando uma nação é destruída, não é algo como a carga de um barco que é destruída, mas uma parte substancial da humanidade, pois sua herança espiritual é compartilhada por toda a humanidade”.
Entre antropólogos brasileiros, porém, também o extermínio de povos indígenas é empregado com esse propósito conceitual e histórico, pois são muitas dezenas os povos vítimas de genocídio, desde a invasão portuguesa. Entre eles, os Aimorés, Caetés, Canindé, Carijó, Cariri, Caractiú, Icó, Panati, Guanaré, Timbiras, Charrua, Guarani, Omágua, Potiguar, Tamoio, Cumá, Tupinambá, Tupiniquim, Tucuju. São tantos que o número de genocídios, ninguém sabe ao certo.
Foi, no entanto, no período da pandemia de covid-19 que o termo “genocídio” se popularizou entre nós. Foi empregado para designar a estratégia do governo de Bolsonaro para enfrentamento da pandemia, mas este o rejeitou. A rejeição funcionou para que a oposição fincasse pé. O termo se popularizou. Porém, na linguagem popular, o significado de genocídio passou a corresponder ao que melhor se poderia qualificar como “mortandade”, ou “matança”. Quando escreveu Os sertões, sem o termo genocídio à disposição para caracterizar as ações da República contra o Arraial de Canudos, extinguindo Antônio Conselheiro e sua gente, Euclides da Cunha foi sucinto: “um crime”. Mas, como se estima em cerca de 25 mil o número de mortos, incluindo os soldados mortos, nos dois anos em que durou o conflito, historiadores vão além e reconhecem ter sido um genocídio.
O que acontece em Gaza não é um Holocausto, pois ao contrário do que supõe o senso comum, a História não se repete – a despeito do que Marx escreveu, ironizando Hegel, de que “todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa”. Nem tragédia, nem farsa. Fatos históricos são singulares, únicos e, portanto, nunca se repetem.
Marx sabia disso (aviso a leitores apressados e doutrinaristas: Marx contém ironia, cuidado). Por essa razão, como fato histórico de relevância para toda a humanidade, o Holocausto precisa ser tratado com o significado monstruoso e profundo que tem. Não é mesmo, portanto, qualquer matança, por mais que doa muito, que pode ser considerada um fato histórico equivalente ao Holocausto. Singular, único e irrepetível.
Se o que acontece em Gaza não é um genocídio, como caracterizar o que acontece em Gaza? Lula já advertiu que, “se isso não é genocídio, eu não sei o que é” um genocídio. Respeite-se, então, judeus que afirmam estar o Estado de Israel apenas empreendendo uma “campanha militar” defensiva contra o Hamas – ainda que em Gaza essa perspectiva não seja aceita.
Ainda assim, são cerca de 30 mil mortos naquele território, em quatro meses, entre outubro de 2023 e fevereiro de 2024. São aproximadamente 211 mortos por dia, nove por hora, três a cada 20 minutos. É um estarrecedor ritmo de abatedouro. Em qualquer bom dicionário, esse cenário caracteriza uma mortandade, entendida como um massacre de homens ou animais em grande número. Uma matança, carnificina, ocídio, morticínio, açougada, chacina. Decerto que, como fato histórico, não cabe fazer qualquer tipo de comparação, com qualquer outro episódio marcado por carnificina similar.
Mas se, como fato histórico, reitero, não cabe comparação, parece inescapável a qualquer observador atento e não implicado diretamente nos fatos, como é o meu caso (e, até onde sei, de Lula), ver um ou mais elos em matanças sistemáticas, em mortandades em que os que morrem são vítimas de sua condição étnica ou por estarem fisicamente em determinado território. Constatar “elementos em comum”, elos em fatos históricos não corresponde a igualá-los como fatos históricos. Foi a esses elementos em comum, a esses elos entre fatos históricos que não apenas Lula, mas todos mundo que se manifesta sobre o que está acontecendo em Gaza se referem. Vamos combinar que a má vontade com Lula tem sido enorme. Escrevi sobre essa má vontade, em outra circunstância e por outras razões (“Mídia corporativa ‘comprova’ que Lula não sabe nadar”).
Matança, carnificina, ocídio, morticínio, açougada, chacina. Pronto, para quem busca ansiosamente um termo para caracterizar o que acontece em Gaza, basta escolher um desses. Vou repetir: matança, carnificina, ocídio, morticínio, açougada, chacina. Mas, seja qual for o termo, ele importa menos – na verdade, importa nada –, frente às vidas ceifadas diariamente, aos montes, em Gaza. Isto é o que importa, crucialmente.
É preciso paz. Agora. Mas não qualquer paz, nem a paz dos cemitérios. Cabe construir a paz com zelo e respeito mútuo, pondo o ódio de lado e pensando nos filhos e netos e bisnetos de Gaza. Identificar e enfrentar os obstáculos à paz na região, tanto em Israel quanto na Palestina é a tarefa complexa, gigantesca, que a História coloca, desafiadoramente, sobre os ombros das lideranças políticas israelenses e palestinas.
Serão capazes de avançar? Serão capazes de consolidar dois Estados soberanos na região e criar um mercado comum entre os dois países? Moeda única? Livre trânsito de mercadorias e pessoas? (sim, o capital sempre dá um jeito de fazer livre trânsito, isso nem é preciso defender…) Talvez, sonhando bastante, uma única Liga de Futebol? Universidades? Sistemas de saúde, educação e seguridade social?
Como dizia minha mãe, “vai, filho, sonha! Sonhar não paga imposto!”. Sonho mesmo. Meu sonho não acabou, não.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) está convocando a XX edição do Acampamento Terra Livre. Acontecerá em Brasília, de 22 e 26 de abril de 2024. Abril é o mês da invasão e do “longo genocídio” dos “parentes”. Os indígenas, como o leitor percebeu, sabem o que é genocídio e bem que poderiam dar mais uma lição ao mundo, fazendo a defesa do diálogo para chegar a soluções pacíficas, por meio da política, entendida como a continuidade ética da guerra.
Com autonomia, voz, identidade, altivez. Soberanamente, não soberbamente. Como precisa ser em Gaza, como deve ser no Brasil, recusando genocídios ativamente, lutando para construir uma vida de paz, terra e pão.
*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros, de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica).
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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