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    Gisele Federicce

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    Houve ao menos 5 falhas graves e violências antes do estupro de grávida por anestesista

    Sequência de falhas e violências obstétricas abriu caminho ao estupro cometido pelo médico Giovanni Quintella Bezerra durante a cesárea

    Um celular no centro cirúrgico flagrou o momento em que Giovanni Quintella Bezerra coloca pênis na boca de mulher durante cesariana (Foto: Reprodução/Vídeo)

    Por Gisele Federicce

    O estupro de uma mulher na mesa de parto pelo médico anestesista da equipe que a atendia só foi possível porque uma série de falhas e violências já haviam sido cometidas durante o atendimento da parturiente. O médico dopou-a e em seguida colocou o pênis na boca dela - o que durou cerca de dez minutos.

    O crime foi comprovado por vídeo feito por técnicas e enfermeiras do Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti (RJ), mas há suspeita de que Giovanni Quintella Bezerra, preso em flagrante, tenha cometido ao menos 30 crimes - dois no mesmo dia do vídeo, domingo (10). Muitos no mesmo hospital e no mês de julho.

    Era um estuprador em série dentro de hospitais, dentro de centros cirúrgicos, a poucos centímetros de outros profissionais. O que nos leva a perguntas inevitáveis: como isso foi possível? Como ninguém percebeu?

    O responsável por violentar uma mulher que sequer podia se defender era um médico anestesista do hospital e da equipe que a devia assistir, acolher e proteger. Este fato por si só indica que houve uma sequência de falhas gritantes de procedimento do hospital e que  foram cometidas outras violências obstétricas previamente contra a mesma paciente, tudo contribuindo para transformar o centro cirúrgico em um lugar seguro para um crime.

    As falhas e violências foram apontados pela médica obstetra Liduina Rocha, mestre em Saúde da Mulher, presidente do Comitê Estadual de Prevenção à Morte Materna no Ceará e integrante do coletivo Rebento, em uma entrevista concedida à TV 247, que contou com a participação da advogada Amanda Claro (assista ao final deste texto):

    Quais foram essas falhas/violências:

    1. Ausência de acompanhante: o direito de acompanhante à parturiente está previsto em lei. E pode ser qualquer pessoa, não precisa ser o pai da criança, nem necessariamente uma mulher. Se um médico, outro profissional ou a instituição dificultar ou mesmo não permitir que isso aconteça, estará infringindo a legislação. São aspectos importantes do cuidado materno respeitoso a garantia da dignidade, privacidade, confidencialidade e uma comunicação eficaz entre a equipe e a parturiente. A presença de uma (ou um) acompanhante garante maior conforto à paciente, além de inibir assédios ou irresponsabilidades. Quintella Bezerra impediu o companheiro de uma de suas pacientes de assistir ao parto do filho e o caso do flagrante aconteceu depois que o pai da criança já havia deixado o centro cirúrgico (falaremos disso no próximo tópico).

    2. Saída de profissionais da sala antes do fim do parto: normalmente, no momento de um parto cesárea, estão presentes no centro cirúrgico oito pessoas: um obstetra e/ou cirurgião, um auxiliar, um instrumentador, um circulante, um anestesista, um neonatologista, um acompanhante e o recém-nascido. O neonatologista, o acompanhante e a criança não devem deixar o local antes da conclusão do processo cirúrgico. Se eles estivessem presentes no caso do flagrante, o estupro não teria ocorrido.

    3. Excesso de anestesia: a parturiente não precisa - e não deve - ser sedada para uma cesárea. É necessário apenas um bloqueio anestésico, para que se perca sensibilidade do umbigo para baixo. A sedação significa perda de memória daquele momento importante e pode até impedir que a mãe segure o bebê após o nascimento. O médico preso por estupro no Rio deixava suas pacientes desacordadas, para que pudesse violentá-las. “A última vez em que estive diante de uma mulher inconsciente em uma cesárea foi em um contexto dramático de uma parada cardiorrespiratória inesperada”, relata a obstetra.

    4. Contato com o bebê: é uma recomendação da Organização Mundial da Saúde que a mulher tenha contato pele a pele com a criança logo depois do nascimento - mais um motivo para que o/a acompanhante não deixe o centro cirúrgico com o bebê antes do fim da cirurgia. É também recomendado que o bebê, quando/se não estiver com a mãe, esteja sempre em seu campo de visão. A perda de vínculo na primeira hora do nascimento, chamada “hora de ouro”, é associada a maior possibilidade de melancolia no pós-parto, de depressão pós-parto, mais dificuldade de vínculo e de amamentação nas semanas seguintes. Foi tirado da vítima do estupro flagrado um momento maior com seu bebê e possivelmente a memória daqueles minutos, por conta da sedação.

    5. Isolamento do anestesista na sala de parto: Bezerra construía uma espécie de cabana com lençóis em seu entorno para que ficasse fora do campo da visão do restante da equipe. Separar a paciente da equipe médica (da cintura para cima) com um lençol é importante para evitar infecções. No entanto, quando o bebê nasce, o recomendável é que este lençol seja baixado, para que ela possa enxergar o nascimento. Para Liduina, “é preciso ter um nível de abstração muito grande” para não perceber o que ocorria ao lado ou em frente. Em um dos depoimentos, uma enfermeira relatou que o anestesista chegou a tratá-la rispidamente e a olhá-la de forma intimidadora quando ela tentou se aproximar, já desconfiada de seu comportamento, em uma das cirurgias.

    E ainda: as instituições hospitalares precisam ter estrutura de Ouvidoria e informar suas pacientes, quando dão entrada, como denunciar nesta instância caso sofram algum tipo de violência durante consultas ou cirurgias - não apenas relacionadas a partos.

    Um levantamento do site Intercept revelou que em nove estados brasileiros foram registrados 1.734 estupros em instituições de saúde entre 2014 e 2019. São 1.239 registros de estupros e 495 de casos de assédio sexual, violação sexual mediante fraude, atentado violento ao pudor e importunação ofensiva ao pudor. O número certamente é maior, tendo em vista a ausência de dados de 18 unidades federativas e o fato de que apenas 10% dos estupros são registrados no Brasil.

    Se os hospitais adotam procedimentos internos contra infecções não há razão para não fazerem o mesmo para evitar o crime de estupro, que acontece em série em todo canto do país.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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