Ida e volta: os deslocados do planeta
O deslocamento forçado de pessoas e a ascensão da extrema direita evidenciam um mundo cada vez mais intolerante e cruel com seus próprios sobreviventes
Franz Kafka parece pouco para traduzir o que se passa nos Estados Unidos de Trump, na Europa, na África e em vários pontos do planeta. Não se trata de um fenômeno inaugural. Mas, com o acirramento das disputas, surge em toda parte, mais do que como anomalia: como se no atual milênio houvéssemos decidido extrapolar nas características dos defeitos humanos. Otto Maria Carpeaux, num artigo para a Revista Senhor (maio de 1959, Ano I, No 3), a respeito do autor, faz comentários sobre sua trajetória e morte, de início completamente desconhecido. A posteridade o descobre e enfatiza a sua importância, ele que foi vítima de um tempo que transformou milhares de indivíduos em “displaced persons”. Kafka nasceu na então Tchecoslováquia, judeu, de língua alemã e, na verdade, não se reconhecia exatamente em nenhuma nacionalidade. E Carpeaux, austríaco, transferido para o Brasil com mais de quarenta anos, por força da expansão nazista, radicou-se entre nós, aprendeu a língua e se fez notável no jornalismo e na crítica, o primeiro a escrever a respeito do inventor de O processo.
Em suas reflexões, para explicar os fatos, atribui responsabilidade às excrescências do hitlerismo e sua obsessão expansionista. É possível que as causas do problema residam, no entanto, em distorções mais profundas, já que hoje, diante do modo como tratam os imigrantes, ficamos com a sensação de que algo da ordem do sistema, duro e cruel, tem a ver com as origens do problema. Donald Trump, para um ser humano, se mostra inflexível. Misericórdia não lhe diz respeito. É capaz de esmagar pessoalmente aqueles que escolheu. Contudo, na Europa, frente à expansão política da extrema direita, a retórica não se altera muito. Só que, em vez de latino-americanos, árabes e africanos se colocam como as vítimas do processo.
“Pessoas deslocadas” incomodam os “normais”. Além do constrangimento de estarem por perto, acumulam-se nos espaços de pobreza, muitas vezes trabalhando para os nacionais com baixa remuneração. Não dominam a língua e trazem estigmas que, de alguma forma, responsabilizam a burguesia acomodada. Nem as igrejas, às vezes repletas dessa gente, conseguem unir expectativas sociais. No conjunto, figuram nas listas dos indesejáveis, dialogando quase que somente com os seus, também estrangeiros, embora respirando o mesmo ar e até se vestindo de forma semelhante.
A expulsão determinada por Trump devaneia com um universo homogêneo, espírito que, em Gaza, orienta as tropas israelenses na limpeza étnica, como se os limpos fossem apenas eles. Não se ignora como as desigualdades se infiltram nas nossas sociedades. Os inimigos lá fora, estão também aqui, convivendo com os nossos costumes e comendo das nossas comidas. Nenhuma expulsão jamais dará conta deste recado. Os sobreviventes, como Kafka, continuarão contando suas histórias e nós choraremos com elas. Logo descobriremos os que corporificam a figura do algoz. Usa cabelos amarelos e voz firme. Atribui suas dificuldades a outros e expele vingança pelos caninos. Nem é necessário decifrar o seu nome de batismo!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

