Ideologia ou soberania
"A essência do discurso do ministro de Lula foi uma crítica aberta à política externa do governo do Presidente"
Ainda são vivas em nossa memória as deploráveis imagens de um evento ocorrido em outubro de 2017, na cidade de Miami (EUA), no qual o ex-capitão do exército brasileiro Jair Bolsonaro, num gesto de amplo espectro ideológico e midiático, bateu continência para a bandeira estadunidense.
Em maio de 2019, já eleito presidente do Brasil, voltaria a editar o mesmo gesto subserviente, por ocasião de um jantar oferecido a ele pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, em Dallas. Além do gesto de submissão aos norte-americanos, Bolsonaro alterou o próprio bordão de seu marketing político ao proclamar: “Brasil e Estados Unidos acima de tudo”.
Além de constrangedores, estes gestos refletem não apenas a bajulação servil de setores da direita brasileira ao império ianque, mas o alinhamento ideológico da deplorável política externa bolsonarista, revelando alto grau de vassalagem, retroalimentando velhas práticas entreguistas e de total dependência externa do Brasil aos EUA.
Comentando tais gatunices, o Presidente Lula, ainda aprisionado no cárcere político a que foi submetido, em razão do Golpe de 2016, na Polícia Federal, em Curitiba – PR, numa entrevista concedida aos jornalistas Florestan Fernandes Junior (El País) e Mônica Bergamo (Folha de São Paulo), em 26 de abril de 2019, de forma altiva sentenciou: “Eu nunca vi um presidente do Brasil bater continência para a bandeira americana. Eu nunca vi um presidente do Brasil ficar dizendo eu amo os Estados Unidos. Alguém acha que os Estados Unidos vão favorecer o Brasil? Americano pensa em americano em 1º. lugar, em americano em 2º. lugar, em americano em 3º. lugar. E ficam os lacaios brasileiros achando que os americanos vão fazer alguma coisa por nós. Quem tem que fazer por nós, somos nós. Precisamos acabar com o complexo de vira-lata, levantar a cabeça, pois a solução dos problemas do Brasil está dentro do Brasil”.
Recordemos que o plano de setores da direita de golpear o Brasil em 08 de janeiro de 2023 fracassou em virtude da capacidade de resposta imediata e precisa do Presidente Lula orientando o então Ministro da Justiça Flávio Dino a não decretar a GLO (Garantia da Lei e da Ordem) diante daquela arruaça planejada, mas procedendo uma intervenção na secretaria de segurança do Distrito Federal, coordenada pelo secretário-executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Capelli. Este ato de inteligência política foi capaz de unir as instituições do Brasil, governadores, magistrados, ministros, deputados, senadores em torno da pessoa do Presidente e de seu governo recém-eleito democraticamente. Contudo, é mister entender que esses setores da direita não se deram por vencidos, continuam agindo em vários fronts.
Caso recente aconteceu num evento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), realizado no último 8 de outubro, no qual foi assinado um acordo de cooperação voltado para a promoção e o fortalecimento da Base Industrial de Defesa e Segurança (BIDS), com a presença do Ministro da Defesa José Múcio Monteiro.
Múcio Monteiro iniciou sua vida política na ARENA (Aliança Renovadora Nacional), partido oficial da ditadura militar instalada no Brasil com o Golpe de 1964. Foi eleito vice-prefeito do município de Rio Formoso-PE (1975), mas não assumiu o mandato para ser presidente da CELPE (Companhia de Eletricidade de Pernambuco). Com a extinção da ARENA, filiou-se ao PDS, partido de substituição ao anterior, migrando depois para o PFL, facção que veio em seguida com o fim do PDS. Ainda militou no PSDB (2001-2003) e no PTB (2003-2023), estando atualmente no PRD.
No evento recente na CNI, Múcio expressou com muita desenvoltura sua visão ideológica do projeto político brasileiro. Falas cirúrgicas, bem selecionadas. Por questões de limitação do espaço editorial, analisaremos aqui apenas uma passagem de seu discurso, deixando como sugestão a leitura de toda a sua mensagem.
A essência do discurso do ministro de Lula foi uma crítica aberta à política externa do governo do Presidente. Na visão de Múcio, o governo Lula deve bater continência a Israel e a OTAN. Disse Múcio: “A questão diplomática interfere na Defesa. Houve uma licitação. Venceram os judeus, o povo de Israel, mas por questões de guerra, o Hamas, por questões ideológicas não podemos aprovar [o contrato]”.
Uma fundamentação falaciosa e deplorável. Afinal, quem ganhou a concorrência não foi o povo judeu, mas o governo sionista de Netanyahu. Além disso, importante destacar que a guerra genocida perpetrada pelo sionismo israelense não é contra o Hamas, mas visa ao extermínio do povo palestino. Agora Netanyahu autorizou ataques maciços a outro povo, o libanês. Mas entre o genocídio palestino, os ataques ao povo libanês e o sionismo israelense, o ministro Múcio deixou entrever em sua retórica ter preferência pelos sionistas.
Além disso, pareceu desconsiderar que em 19 de fevereiro deste ano o ministro das Relações Exteriores de Israel e o Primeiro-Ministro Netanyahu declararam o Presidente Lula persona non grata. Isto parece não ter a menor relevância para ele. Por quê?
Recordemos que em sua viagem à Etiópia, participando da abertura da 37ª. Cúpula da União Africana, na capital Adis Abeba, em 17 de fevereiro, o Presidente Lula falou para 54 representantes de países daquele continente. Na entrevista coletiva, após o evento, o Presidente brasileiro classificou a morte de civis em Gaza como genocídio, criticando os países desenvolvidos por reduzirem ou cortarem a ajuda humanitária na região. Lula afirmou que o que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino (e não com o Hamas) não existiu em nenhum momento histórico. Não é uma guerra entre soldados e soldados. É uma guerra entre um Exército altamente preparado contra mulheres e crianças indefesas e inocentes.
Mas para Múcio esse genocídio parece ser algo normal, que não se deve levar em conta no processo das decisões políticas brasileiras. Para ele, importante mesmo é fechar o contrato com o governo de Netanyahu e ficar do lado da OTAN. Todo apanhado empírico é pura ideologia.
Segundo a ONU, em um ano de genocídio, a destruição em Gaza pode estar na casa dos 90%, algo jamais visto na história, superando em muito as cidades europeias destruídas em seis anos de 2ª. Guerra Mundial. É a primeira vez na história das guerras e genocídios que 100% da população é declarada sob fome. É inédito também o deslocamento de mais de 90% de uma demografia atacada por agressor externo. (BdF, 09/10/2024).
A decisão sobre compras e vendas de material bélico é essencialmente política. Uma questão de soberania nacional. Jamais pode ser reduzida à falácia ideológica de mera questão técnica e comercial. Implica sempre definição de aliados estratégicos, principalmente num contexto internacional de construção de um mundo multipolar.
Múcio conscientemente afrontou publicamente o Chefe de Estado brasileiro, pois é ele quem define a política externa do país. O que pretende com essa manifestação, ridicularizar o Presidente Lula?
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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