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    Paulo Moreira Leite

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    Ídolo de Ernesto Araújo, Trump protege oficial acusado de tortura

    "Num governo que trata o presidente dos EUA como divindade ('Deus de Trump' ), a tolerância da Casa Branca diante de um oficial acusado de tortura pode estimular os piores instintos do bolsonarismo", escreve Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia

    A volta dos galinhas verdes? (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

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    A chantagem contra o governo da Ucrânia pode custar o mandato de Donald Trump mas não se trata da única contribuição do presidente norte-americano para a degradação dos costumes políticos de nosso tempo. Outro caso, mais recente, envolve uma velha ferida das intervenções do império pelo mundo afora e diz respeito à tortura de prisioneiros de guerra.

    Dias atrás se assistiu às ultimas cenas de uma operação na qual Donald Trump utilizou sua influência presidencial para proteger Edward Gallagher, um antigo chefe de Operações Especiais da Marinha, titular de uma reluzente coleção de medalhas sobre o uniforme branco e uma lamentável folha corrida de denuncias de atos criminosos na guerra do Iraque, aquele conflito iniciado com a mentira de que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa.

    Conforme uma súmula das acusações divulgadas pelas agencias AFP/Reuters, Gallagher " matou um adolescente, membro do Estado Islâmico, que estava ferido, recebendo cuidados médicos. Testemunhas dissseram que ouviram pelo rádio Galagher dizer: 'Ele é meu'. Em seguida, ele invadiu o centro de atendimento e esfaqueou o rapaz várias vezes. Uma testemunha diz que viu o oficial enterrando uma faca no pescoço da vítima." "GAllagher também foi acusado de matar indiscriminadamente civis quando atuava como franco atirador, inclusive mulheres". (Estado de S. Paulo, 26/11/2019).

    O oficial conseguiu ser absolvido em seis das sete acusações. Sua única condenação era inevitável: apareceu uma foto em que se coloca ao lado do cadáver do adolescente esfaqueado. Como punição, ele foi rebaixado e aposentado compulsoriamente, com perda de rendimentos, além de passar quatro meses na prisão -- pena que não necessitaria cumprir em função do tempo em que ficou detido a espera do julgamento.

    A entrada em cena de Donald Trump e seu círculo de advogados, inclusive Rudy Giuliani, também envolvido na operação contra o governo da Ucrânia, inverteu a decisão. As patentes de Gallagher foram restauradas e ele deixou a cadeia. Trump lhe fez um elogio público e ordenou que a Marinha cancelasse as comendas entregues aos promotores do caso, até então elogiados pelo desempenho.

    A aposentadoria compulsória foi suspensa e mais tarde se resolveu que era bom que Gallagher deixasse a Marinha -- agora, com remuneração integral. Numa inversão de papéis, a principal autoridade empenhada na punição de Gallagher, pois achava que teria um aspecto educativo para a tropa, o secretário da Marinha Richard Spencer acabou perdendo o cargo.

    Episódios até mais graves do que este não são uma novidade na história das intervenções militares dos EUA e têm uma lamentável tradição produzir penas leves e mesmo impunidade para os envolvidos, o que ajuda a explicar sua persistência ao longo dos anos. O próprio Trump já assinou o perdão -- e a soltura -- de Michael Behenna, condenado a 25 anos pela morte de um prisioneiro sob custodia do Exército norte-americano.

    No governo George W Bush, que deu início a invasão do Iraque, a tortura conhecida como "afogamento simulado" chegou a ser autorizada oficialmente. Barack Obama revogou essa autorização mas, logo depois da posse, Trump declarou que o método "funcionava" mas que não iria liberar nem proibir, deixando para a CIA e o Pentágono resolverem o que fazer. Dá para entender a mensagem, certo?

    A tragédia de My Lai, que produziu 504 mortos em 1968, na guerra do Vietnã, só foi integralmente revelada ao mundo um ano depois, graças ao repórter Seymour Hersh. O massacre gerou uma única condenação. O tenente que comandava a ação de campo, com a mão na massa, pegou prisão perpétua. Foi libertado em 1974 por decisão de Richard Nixon. O capitão Ernest Medina, comandante da companhia, conseguiu ser absolvido pela Corte Marcial.

    As denuncias contra Edward Gallagher integram a barbárie contemporânea instituída a partir da guerra do Iraque, que inclui o presídio de Guantânamo, as imagens tenebrosas de tortura na prisão de Abu Graib e vários episódios contra a população civil daquele país.

    Numa mudança de postura, em várias oportunidades as autoridades norte-americanas priorizaram o trabalho de investigar e punir quem divulga atrocidades -- postura impensável nos anos da guerra do Vietnã, quando Daniel Ellsberg enfrentou e venceu, na Suprema Corte, uma denuncia pela divulgação de papéis secretos do Pentágono, onde era analista militar.

    Apontada como uma das fontes que abasteceram as revelações estarrecedoras sobre a guerra do Iraque divulgadas pelo Wikileaks, Chelsea Menning passou 7 anos num presídio militar, acusada de vazar informações sigilosas. Pela mesma razão, após prolongada perseguição Julian Assange aguarda uma definição sobre seu destino numa prisão inglesa, enquanto os EUA mantém a pressão para que seja conduzido e julgado em seus tribunais.

    Com impacto proporcional ao poderio econômico e militar dos Estados Unidos, a postura tolerante de Trump gera críticas dentro e fora do país. Nos últimos dias, oficiais de mais alta patente deram início programas para reformar a formação da tropa e debate questões éticas numa operação de guerra.

    No Brasil, este debate enfrenta uma situação particular. Como é sabido desde a nomeação de Ernesto Araújo para titular do Ministério das Relações Exteriores, o Brasil talvez seja o único país do mundo a possuir um chanceler capaz de referir-se ao "Deus de Trump" num trabalho acadêmico.

    A linha geral de submissão de Brasília a Washington empurra o país num mesmo alinhamento.

    Com um presidente capaz de homenagear Carlos Alberto Brilhante Ustra na sessão onde o Congresso aprovou o impeachment de Dilma Rousseff, pode-se apostar que a postura de Trump em relação a tortura só vem reforçar os piores instintos do governo Jair Bolsonaro.

    O Brasil não está envolvindo em nenhum conflito militar externo, mas a violência empregada contra a população civil na repressão interna atinge um padrão inaceitável mesmo para situações de guerra.

    Alguma dúvida?

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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