Ignorância e má-fé
"Putin nunca escondeu que seu sonho é reconstruir o império soviético", escreve Milton Blay
Os acalorados debates sobre a invasão da Ucrânia pelas forças armadas russas foram marcados pela má-fé de uns e ignorância de outros. A má-fé ficou mais que evidente numa matéria do jornal Folha de S. Paulo, em sua edição de 24 de fevereiro. Provavelmente ainda no afã (talvez o termo exato fosse desespero) de encontrar um candidato da 3° via à presidência da República, o jornal publicou um artigo intitulado « Partidos e dirigentes de esquerda culpam Otan e EUA por crise entre Rússia e Ucrânia », sabedor que é do óbvio: a classe média urbana, leitora do diário, que procura uma alternativa a Lula, está do lado da Aliança Atlântica e dos Estados Unidos contra a Rússia.
A Folha explica que para partidos e expoentes da esquerda brasileira, a responsabilidade pela situação que levou àentrada de tropas russas na Ucrânia é em grande medida da Otan, aliança militar ocidental, e do governo dos EUA.
Assim, referindo-se à entrevista do ex-ministro Celso Amorim (principal auxiliar de Lula sobre política externa) ao site Brasil 247, o jornal o cita: "a grande parcela da culpa, da responsabilidade, é dos EUA e da expansão da Otan". Segundo o ex-chanceler, "isso está na raiz do problema ».
Sobre a condenação da Rússia por violação do direito internacional, inadmissível segundo Celso Amorim, a Folha passou batido, preferiu ignorar. Além disso, ao utilizar o termo culpa (dos EUA e da Otan) o ex-ministro retificou, falando em responsabilidade.
A seguir, o jornal se referiu ao jornalista Breno Altman, « muito atuante no PT em temas de política externa », que declarou em uma rede social que "frente ao expansionismo dos EUA e da Otan, Putin recorreu às armas para preservar a segurança da Rússia e deter as ambições imperialistas ». Ora, Altman é conhecido por suas posições extremistas, que são devidamente atenuadas pelos mais altos dirigentes do PT.
Breno participou da live do Brasil 247 na companhia de jornalistas com posições diferentes (Paulo Moreira Leite, Alex Solnik e eu mesmo), que foram propositadamente esquecidas. Como esquecida foi a fala do coordenador do Núcleo do PT na Alemanha, Jean Goldenbaum, na mesma TV 247, igualmente condenando a violação do Direito Internacional e lembrando que na Rússia de Putin os direitos humanos são uma falácia.
A postura desta parcela da esquerda é ditada pelo respeito do Direito, como assinalaram o ex e futuro presidente Lula, Celso Amorim e até mesmo o PT, que divulgou uma nota dizendo que "a resolução de conflitos de interesses na política internacional deve ser buscada sempre por meio do diálogo e não da força, seja militar, econômica ou de qualquer outra forma ».
O presidente nacional do PSOL, Juliano Medeiros, mais radical que o PT, limitou-se a dizer, reagindo a uma postagem de Por Biden, que ele TAMBÉM era culpado pela situação.
O título da matéria do Painel da Folha de S. Paulo, editada por Fábio Zanini, é escandalosamente tendencioso e só pode ter como objetivo minar o candidato Lula.
Isso não significa que uma parcela da esquerda, sobretudo a extrema, não apoie incondicionalmente a invasão da Ucrânia pelas tropas do ditador russo Vladimir Putin. Ditador sim, que se perpetua no poder (podendo permanecer até 2036), que persegue homossexuais, que censura e fecha a mídia de oposição. Para tanto, dois argumentos são avançados: o anti-imperialismo e a promessa de Putin de desnazificar a Ucrânia.
Com relação ao imperialismo, os esquerdistas só enxergam o norte-americano, como se não existisse um imperialismo russo e até mesmo um imperialismo chinês, que tem transformado grandes extensões da África em seu território. Quanto à Putin, ele nunca escondeu que seu sonho é reconstruir o império soviético, cuja desintegração teria sido, segundo as suas próprias palavras, o maior erro da História. O projeto de Putin se resume à frase que tornou famoso Donald Trump: « Tornar a Rússia grande de novo ».
Há muito Putin lamenta o fim da União Soviética e não esconde os esforços para restaurar ao máximo a esfera de influência que a URSS teve, à qual não quer deixar o ocidente lançar mão.
Sempre que o povo ucraniano votou em dirigentes pró-europeus, houve uma reação por parte da Rússia.
Uma Ucrânia controlada por Moscou a fazer fronteira com países da Otan e da União Europeia, é uma ameaça para a Europa, que além de não ter atualmente protagonistas políticos de peso suficiente, só existe militarmente dentro da Aliança Atlântica.
Neste episódio ucraniano não há mocinhos, só bandidos. E Putin é um deles (o outro é Biden). Temos de dar nome aos bois: Putin é ditador sim, que se perpetua no poder (podendo permanecer até 2036), que persegue homossexuais, que censura e fecha a mídia de oposição, que escolhe os candidatos que podem disputar as eleições. A reação de parte da esquerda brasileira portanto é consequência da distorção, do falseamento da realidade.
Com relação à desnazificação, reina a ignorância. O presidente russo é um nazifascista, se levarmos em conta a ajuda dada por ele aos partidos europeus de extrema-direita.
Em março de 2017, em plena campanha presidencial francesa, ele recebeu no Kremlin Marine Le Pen, candidata do partido Front National, de extrema-direita. Além desse apoio simbólico, Putin interveio junto a dois bancos russos para que financiassem a campanha de Le Pen.
Paralelamente, hackers russos, instalados numa ala do Kremlin, atacaram o partido La Republique en Marche, de Emmanuel Macron, enquanto o futuro presidente francês era acusado de ter contas em paraísos fiscais e ser gay.
Nas eleições legislativas de 2017, os serviços de informação alemães descobriram relações secretas entre a Rússia e a extrema-direita neonazista, cujo partido Alternativa para a Alemanha (AfD) entrou no Bundestag, o Parlamento Alemão. Em fevereiro daquele ano, Frauke Petry, então chefe do AfD, tinha sido convidado à Moscou para encontrar o presidente da Douma, a Câmara baixa do Parlamento.
Em agosto de 2018, convidado para o casamento de Karin Kneissl, ministro austríaco das Relações Exteriores, do Partido da Liberdade da Austria ( FPÖ), de extrema-direita, Putin dançou a valsa nupcial com a noiva.
Muito próximo de Putin, Alexandre Douguine, teórico da chamada direita iliberal, viajou o mundo, da Europa aos Estados Unidos, passando pelo Brasil, para manter contato com personagens ligados ao antiglobalismo e à Alt Right. Na França, junto com os antissemitas e polemistas Alain Soral e Dieudonné, fundou o site de extrema-direita Egalité et Réconciliation. Soral foi convidado a assistir, em Moscou, em 2016, um fórum sobre a mídia não alinhada.
O ditador iraquiano Saddam Hussein também foi convidado a participar, em Moscou, ao Congresso Mundial da Paz.
Putin ainda ajudou a financiar o Partido Nacional-Democrata da Alemanha (NPD, neonazista), o Movimento da Resistência Nórdica (NMR), fundado na Suécia, abertamente racista, antissemita e hostil à l’UE, e até mesmo o movimento dos gilets jaunes, os coletes amarelos, que pediram a demissão de Emmanuel Macron. Xavier Moreau, em dezembro de 2019, instalou em plena avenida dos Champs Elysées um colete amarelo com uma bandeira, do Donbass independente.
A Liga Norte italiana, Jobbik na Hungria, o Partido para a Indpendência do Royaume-Uni (UKIP), são outras agremiações de extrema-direita próximas de Vladimir Putin. Sem falar na intervenção russa para apoiar Donald Trump e e em prol do Brexit.
Isto sem falar numa profusão de associações de extrema-direita direta ou indiretamente ligadas ao Kremlin.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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