Interpretação
Mercês, formada em Letras, com mestrado e doutorado em Análise de Discurso, lecionou Língua Portuguesa durante décadas, até aposentar-se, anos atrás. Mais que alunos, formou "cidadãos que pensam", como gosta de dizer
- esquece isso, Mercês, vai perder tempo – ponderou o marido.
- pode ser, Tidinho, mas se não tentar, nunca vou saber – rebateu.
Mercês, formada em Letras, com mestrado e doutorado em Análise de Discurso, lecionou Língua Portuguesa durante décadas, até aposentar-se, anos atrás.
mais que alunos, formou "cidadãos que pensam", como gosta de dizer, num misto de alegria e orgulho pela pedagogia adotada e transmitida como militância: palavras têm poder, e se bom ou perigoso, mera questão de como são interpretadas e propagadas.
apenas por um exemplo, Mercês atribui a atual incapacidade de tantos ao debate político não à propalada "divisão do país", mas ao encarceramento da atenção durante a leitura e audição de ideias contrárias e ao enforcamento do raciocínio após ambas, resultando em polarização sem fronteiras: direita contra esquerda, direita contra direita, esquerda contra esquerda e demais bafafás possíveis do Eu contra "eles", e babau qualquer aprendizado que sempre se pode ter, inclusive por contraste.
assim, decidiu voltar à militância, mas não mais indo a passeatas, das quais desistira por perceber-se coadjuvante em atos cuja principal serventia, interpretara nos discursos, era dar às lideranças de partidos e movimentos a certeza de que já estavam fazendo sua parte, e à maioria dos participantes, uma oportunidade de transformar selfies em recibos de luta.
militaria, portanto, da forma que entendia minimamente efetiva, oferecendo parte de seu tempo e a totalidade de seu conhecimento, ou seja: voltaria a lecionar – especificamente, interpretação de texto.
acreditava que quando uma pessoa realmente entende, ou interpreta, pelo quê está lutando, nunca esquecerá a importância das conquistas e jamais ficará sem entender as razões das derrotas, aprendendo como superá-las e evitá-las noutras lutas, e acreditava, ainda, que para entender, ou interpretar, corretamente o adversário é preciso saltar a armadilha dos adjetivos, porque quem os causa, que movem os sujeitos, são os substantivos.
mineira radicada no Rio, morava em um sobradinho no Grajaú, com ampla garagem desocupada, a qual utilizaria para dar as aulas.
os netos cuidaram da divulgação nas redes, esta compartilhada pelos pelotões de ex-alunos da professora, e Tidinho, o marido, que tinha como hobby a carpintaria, fez a plaquinha: Curso de Interpretação de Texto – Professora Mercês de Sá Lorenzo.
para surpresa de Tidinho, que apoiara a iniciativa, mas temendo a frustração da companheira de uma vida, e até de Mercês, no dia do início do curso, uma fila imensa se formara desde o portão da casa até a esquina da rua, gerando certo rebuliço entre a vizinhança.
a princípio, ela e o marido pensaram que o fato de ser de graça – militância, afinal – explicava o fato, mas o entusiasmo das pessoas na fila, das mais variadas origens e idades, provava que não.
mas foi um fracasso espetacular.
após 20 minutos de aula, o entusiasmo se transformara em impaciência com os temas e exemplos apresentados por Mercês, que, notando isso, perguntou à turma o que se passava, então começaram os relatos.
moça lá comentou que fizera outros cursos de interpretação, nenhum parecido com aquele, que era "tipo, nada a ver", no que teve a concordância da maioria. um adolescente perguntou se não teria gravação em vídeo, que precisaria apresentar no teste para um musical infantil sobre o bolsonaro dirigido pela cláudio botelho, e ainda teve a senhora, contemporânea de Mercês, que quis saber no que aquilo ajudaria para uma cena de beijo, por exemplo, com o Francisco Cuoco.
então Mercês percebeu que o problema que a motivara a dar o curso alcançara níveis de gravidade muito acima do que constatara: simplesmente, as pessoas não souberam interpretar o que significava "interpretação de texto".
resignada, pediu ao solidário Tidinho que recolhesse a lousa e a doasse para alguém, e dispensou a turma, menos um: o garoto vestindo camiseta do Che, fone em um ouvido e que assistira ao que teve de aula fazendo e estourando bola com o chiclé.
- por que cê veio fazer esse curso?
- soube que vai ter um teste pra Malhação.
este, Mercês colocou pessoalmente pra fora.
pela orelha.
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