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    Leonardo Giordano

    Vereador em quinto mandato, presidente da Comissão de Cultura na Câmara e ex-secretário das Culturas do município de Niterói

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    Isolamento, derrota e reorganização das esquerdas no Brasil

    O problema com a extrema direita emergente no Brasil não é apenas seu programa econômico entreguista, subalterno, antipovo e antinacional. O problema mais profundo é que ela pretende uma nova história, uma nova sociologia, uma nova filosofia – uma nova codificação estruturante das narrativas e sentidos

    Isolamento, derrota e reorganização das esquerdas no Brasil

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    É boa conduta não subestimar ou menosprezar adversários. No geral é prudente tentar praticar dedicada reflexão buscando compreender as circunstâncias que nos levam ao embate, entender de forma realista as motivações e justificações que dão legitimidade ao opositor e até realizar o difícil exercício de encontrar no outro aspectos admiráveis e pontos fortes. Mais que um proceder honrado, o que já aumentaria nossa própria força moral diante da luta, o sentido maior é o ganho de compreensão sobre o padrão das forças contra as quais resistiremos.

    É evidente que a derrota eleitoral de Haddad para Bolsonaro tem dimensão estratégica e cultural para todas as esquerdas. As resistências diante do processo de realinhamento do Brasil (e de toda América do Sul) à órbita de influência americana, no contexto de suas disputas com a China, que se intensificam  aqui a partir das tais "jornadas de junho de 2013", sucessivamente malograram até o ponto culminante da ascensão da extrema direita ao poder institucional. Isto pode ser demonstrado pelos jargões que representaram as posições nas fases (sempre meramente reativas, defensivas per si) das esquerdas ao longo de todo o trecho: 

    "Não vai ter golpe" - e teve.
    "Fora Temer" - e ficou lá.
    "Lula Livre" - e seguiu preso.
    "Ele não" - e Bolsonaro venceu.

    São todas objetivas derrotas das hastags que representaram as resistências políticas e culturais das esquerdas e têm em comum fazerem parte encadeada de um mesmo processo geral de seu progressivo esvaziamento na luta institucional e de ideias. Com isto não se diz que essas resistências não tenham deixado seu legado e que não tenham sido importantes para a consolidação de um bloco de aglutinação capaz de oferecer contra-narrativa, é também evidente que sim. Tanto pior seria a situação geral caso não tivessem ocorrido, por definição.

    Ainda assim, as esquerdas imaginaram-se tendo uma força cultural acima da realidade, em cada um destes momentos. Pautando-se sempre pelo movimento adversário, ofereceu resistência frontal em todos os casos, sem recorrer a quaisquer mediações de discurso, articulou-se muito pouco e - principalmente - tratou como tema secundário o problema principal: do antártico isolamento político a que foi submetida no jogo de forças político-culturais. Em perspectiva é razoável dizer que, dadas as circunstâncias, essas resistências tiveram resultado surpreende e, até mesmo, heróico. Depois de tantos sucessivos ataques de eliminação, é realmente impressionante o tamanho social que as esquerdas ainda têm e a resiliência que demonstram. Persistem como contraponto teimoso e necessário a uma nova ordem que se anuncia. 

    No caso da ascensão da extrema direita brasileira, levará ainda tempo para que todas a dimensões do fenômeno estejam realmente claras. Além disso, será a soma das inteligências e experiências coletivas dos partidos, movimentos populares e quadros da esquerda que conseguirá, de forma dedicada, montar o difuso quebra-cabeças. Nesta época de intensa produção intelectual interativa, que é subproduto metodológico do nosso tempo digital, isto é ainda mais verdadeiro. Ainda assim, quanto mais produzirmos criticamente e escrevermos sobre o assunto, mais velozmente construiremos consensos urgentes. São estas as notas inciais necessárias para dividir algumas percepções.

    Uma auto-crítica seguidamente não assimilada: a frente ampla

    Uma das dimensões reincidentes em toda a retórica da esquerda de norte a sul de seus agrupamentos e partidos, sempre foi a importância de uma resistência ampliada frente ao perigo democrático e nacional que a modalidade radical de direita que assume o poder no Brasil significa. Neste sentido, é nota obrigatória reconhecer o acerto do diagnóstico feito pelo PCdoB, quando muito antes das eleições priorizava a necessidade da construção de uma frente (o mais ampla possível) para resistir às tempestades vindouras. Mais que isso, embora todas as demais forças populares reconhecessem em seus discursos a mesma necessidade, esta foi, lamentavelmente, a única organização consequente a traduzir o discurso em ato prático ao recuar com sua (ótima) candidata, Manuela Dávila. Ainda assim a chapa Haddad-Manuela sequer significava uma unidade das forças populares todas, quem dirá uma ampla frente nacional para além das esquerdas. Sem buscar culpas, ficou pelo discurso apenas a imperiosa necessidade de unidades amplas. 

    Contudo, o problema aqui certamente não é elogiar preteritamente a formulação ou ação de um único partido, mas diagnosticar algo muito grave para o futuro: nem os partidos e líderes de esquerda parecem compreender realmente a grave necessidade de uma frente ampliada – e sequer estão a praticá-la atualmente, ao menos não de qualquer maneira realmente visível. Pelo contrário: tão logo acabadas as eleições, o debate infantil predominante tornou-se "quem teria o protagonismo de tal frente", demonstrando cabalmente que nenhuma auto-crítica fora assimilada. As tensões entre PDT e PT, por exemplo, escalonaram ainda mais após a eleição, e a distância relativa entre os dois partidos é maior agora do que era durante o pleito, ao arrepio da necessidade histórica por coesão. Todas as retóricas seguem firmes a dizer o quanto uma frente unida é muito importante enquanto as práticas reais das burocracias partidárias redundam em replicação das mesmas lutas por institucionais hegemonia – que a impedem. Não há, até aqui, nenhum sinal estratégico de revisão deste procedimento. A depender da evolução do cenário nacional esta conduta de luta por hegemonia, aparentemente pragmática e  justificável, poderá em breve, até ser caracterizada como ingênua.

    O melhor laboratório de luta conjunta intra-esquerdas até aqui tem sido as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo. Embora destacadas e valorosas, suas limitações são bastante conhecidas e não influenciam de maneira decisiva o comportamento institucional dos partidos envolvidos. São importantes experiências, mas amplamente insuficientes. Até aqui, a realidade apresenta o dado de que esquerda não parece ter aprendido a lição de que tem que se unir.  E sem sequer unidade das esquerdas, é bastante difícil imaginar uma frente ampla para além delas.

    O Marxismo cultural, o ridículo político e características singulares da extrema direita brasileira

    É fato que tem sido repetido por muitos autores que as alternativas de inspiração fascista sempre se apresentam envoltas em cores cômicas para que seus conteúdos autoritários detestáveis possam se tornar suportáveis para a média das pessoas. De Mussolini a Berlusconi, e em praticamente todas as suas versões, os gestos exagerados, personagens insólitos, a dramaticidade teatral insuflam contra "um perigo civilizacional urgente" e as fanfarronas promessas de grandeza sempre presentes. Nós aqui temos nossa cota da espetacularização da política com ator ponô, astronauta, youtuber, astrólogo-filósofo e descabelada professora bradando raivosamente "contra o marxismo cultural" – seja lá o que isso signifique, enquanto categoria política. O império da baboseira irracional ganha cores cada vez mais perigosas.

    Em que pese considerar as tecnologias e novas formas de comunicar não bastará às esquerdas limitar seus erros e momentânea derrota à relatização de que estes instrumentos isoladamente a justificam. É necessário uma breve confrontação aqui: mesmo que em um ambiente novo e com novas ferramentas o problema clássico sempre foi e segue sendo o das linhas políticas adotadas diantes das conjunturas. É pouco e muito perigoso limitar as análises "à surra que tomamos no Whatzapp" ou aos "novos fenômenos digitais que desconhecemos". Esta avaliação pode se distorcer perigosamente isolando o tema da comunicação como único a ser tratado, esvaziando as releituras de conteúdo. Segundo esta versão nascente em alguns autores provavelmente teríamos acertado nas posições políticas gerais e sido derrotados apenas na batalha de comunicação. É uma visão auto-justificadora, redentora até, mas poderá nos cobrar caro por esvaziar as substâncias políticas que explicam de forma mais profunda a perda de contato entre as bandeiras históricas das esquerdas brasileiras e as massas que ela diz representar.

    Ainda assim, cabe não subestimar a expressão brasileira deste fascismo digital, apoiado em técnicas de comunicação (e farto amparo estrangeiro) ainda pouco conhecidas. É importante identificar que a fauna de personagens caricatos – e uma enorme quantidade de pessoas sensatas arrastadas junto – estão em cruzada permanente para derrotar o moinho de vento da vez, chamado marxismo-cultural supostamente hegemônico na nossa sociedade.

    Para nós, Marxistas, esta expressão pode até causar riso, por estar na contramão de qualquer possibilidade de existência. É bem sabido por nós que a hegemonia ideológica de uma sociedade é sempre exercida por sua classe economicamente dominante, mesmo que existam bolsões de solidariedade e resistência pontuais. Para comprovar o dito basta lançar mão de qualquer observação histórica sobre sociedades do passado, como fizeram nossos autores. Se a sociedade é a Roma antiga, o direito e as ideias-força irão fartamente beneficiar os patrícios da época; se a ordem é medieval, será a vez dos senhores feudais proprietários de terras; se é a época da revolução industrial, serão estes primeiros capitalistas o timão ideológico daquele tempo. Evidentemente, portanto, após o mais breve escrutínio, na nossa sociedade (de mercado e capitalista) será impossível um suposto "marxismo cultural hegemônico" contra o qual se bater, simplesmente pelo fato de que o marxismo não é, nem de longe hegemônico numa sociedade capitalista como a nossa. O que torna a ideia mera fanfarronice intelectual manipuladora, auto-evidente. E o problema reside exatamente aí. Na nossa subestimação desta importante pregação, livremente em curso e amplamente ignorada ainda pelos nossos analistas.

    O Nazismo foi fenômeno específico de um tempo histórico alemão, não cabendo aqui como amparo comparativo ao caso brasileiro. Mas vale o registro de que o mesmo não precisou se valer de bom método científico, qualquer prova material de validade ou de autores academicamente qualificados para mudar estruturalmente sua sociedade. Não foram a validade acadêmica, o sentido racional ou uma bibliografia de apoio que tornaram o nazismo possível. Foi sua validade emocional para as massas e sua ampla capacidade de mobilização. Esta é a razão pela qual não devemos rir da ideia, por mais estapafúrdia e rudimentar que ela seja, de que está em curso "uma cruzada contra o marxismo-cultural que impregna nossa sociedade". 

    Ao contrário, é motivo para estudar mais detidamente o que querem dizer com estas pregações. Para ouvir com redobrada atenção e desmontar tão logo possível esta retórica estruturante da ação política, antes que ela ganhe mais força e passe a justificar – porque irá – perseguições. Para que serve o tal "marxismo-cultural" denunciado com ênfase pelos extremo-direitistas brasileiros? Fácil responder: Existe exclusivamente como ferramenta retórica para legitimar perseguições genéricas, em todos os campos da atividade humana, contra pessoas e pensamentos de esquerda. É a espinha dorsal justificadora das repressões que, caso seja  possível, adorariam nos fazer. É tema muito importante e tem sido lateralizado na média das análises.

    É favor não minorar este perigo, em meio aos bufões e exóticos que temos visto aparecer com vulto na arena política. Já temos tido uma amostra do uso do imaginário "combate ao marxismo cultural" para justificar medidas políticas bastante concretas. A invenção da distorcida ideia de que a esquerda pretenderia transformar crianças em homossexuais como parte de seu programa político(!) e o projeto "escola sem partido", derivam imediatamente e de forma inequívoca da estruturação teórica de que existe um status quo a ser modificado, um suposto – e convenientemente indefinível – marxismo cultural hegemônico a ser combatido.

    A cruzada contra o espantalho do marxismo cultural serve para transpor as pessoas e ideias de esquerda para dentro do status quo, enquanto mantém a extrema direita como outsider e, como diz seu líder, inclinada "a mudar tudo o que está aí", mesmo que não consiga listar exatamente o que isto signifique, ele mesmo. É uma ferramenta política muito poderosa e com aplicações as mais variadas.

    O problema com a extrema direita emergente no Brasil não é apenas seu programa econômico entreguista, subalterno, antipovo e antinacional. O problema mais profundo é que ela pretende uma nova história, uma nova sociologia, uma nova filosofia – uma nova codificação estruturante das narrativas e sentidos. Isto pode ser verificado abertamente, quando ela nega o racismo (e os fatos históricos geradores), quando pretende uma nova ideologia escolar obrigatória e de pensamento único, quando pretende a censura moral e política de opositores em nome de uma "nova verdade". A extrema direita brasileira rompe com as bibliografias atuais, ignora os fatos históricos, os reinterpreta a partir de seus interesses. Ela queima os livros e propõe um novo saber. E isto não é nada engraçado, não deveria fazer nenhum de nós rir, nem é pouco sofisticado, mesmo que tenha inspiração em processos passados aparentemente já superados pela civilização. Sem catastrofismos, o perigo é iminente e abertamente anunciado. 

    As conformações da correlação de forças e as lutas vão dizer o quanto essas ideias irão se aprofundar, ou não. Mas a nossa reflexão sobre estas categorias (aqui me refiro novamente ao tal marxismo cultural) precisa ser grandemente aumentada. Há que se desmontar essas narrativas, pelo bem da democracia – e de muito mais além dela.

    Será um longo inverno, provavelmente. Ou, ao menos, é para ele que devemos estar preparados, para que não nos atinja de surpresa e despreparados. Nossa posição é forte mas a esquerda segue desunida, sem priorizar o problema de seu isolamento como o mais grave entre todos, e prestes a repetir mais uma ou duas hastags de resistência. Aumentar cada vez mais nossa respeitabilidade e elo com o povo enquanto saímos do corner de estigmatização no qual ainda nos encontramos. Ousar novas técnicas de comunicação e organização para fazer frente à guerra assimétrica a qual estamos sendo submetidos. Encontrar novas mediações com o senso comum e adaptar fala e ação para um tempo novo será a única forma de proteger o ideário de justiça social e igualdade do qual somos os guardiões. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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