Já ganhou
"Ainda Estou Aqui" vai representar o Brasil na categoria de Melhor Filme Internacional na premiação do Oscar
Alguém já disse que a arte serve para reconciliar o ser humano com os “sacrifícios que tem que fazer em benefício da civilização” porque “as criações da arte elevam seus sentimentos de identificação, proporcionando uma ocasião para a partilha de experiências emocionais altamente valorizadas”. Falando de outro modo, há casos em que a criação artística desdiz a máxima “toda unanimidade é burra”. Isso se aplica a ‘Ainda estou aqui’, filme/livro-livro/filme, Marcelo Rubens Paiva e Walter Salles.
Aplaudido durante 10 minutos, público de pé, no recém terminado Festival de Veneza 2024, o filme adaptado do livro do mesmo nome ganhou o prémio de Melhor Roteiro. Agora em cartaz nos cinemas do Brasil, ‘Ainda estou aqui’ anda pelas bocas com o “já viu? em geral seguido de um quase desmaiado sussurro arrebatado “ah”. Mas o que haveria de original em mais uma história de violência praticada pela ditadura cometida há 54 anos e escrita em 2015 por Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens Paiva assassinado e desparecido pelo regime institucional instaurado pelo golpe civil-jurídico-midiático-militar de 1964? A felicidade. A insustentável leveza de ser feliz e apostar na Vida.
‘Ainda estou aqui’ não tem pau-de-arara explicito. A brutalidade está nos detalhes da máquina destruidora de gente em contraste com o afeto. Os roteiristas Murilo Hauser e Heitor Loreza cuidaram de marcar a afirmação amorosa da família e o diretor Walter Salles se encarregou de desenhar o acontecimento a bico de pena nas luzes, câmeras e ações. Graça desconcertante, beleza aterrorizante, delicadeza torturante. Cinco filhos, escadinha de adolescente a criança, e Eunice, a mãe, bem amada e bem resolvida no lugar de mulher e esposa. De repente, o marido é levado. , a casa é tomada e as portas sociais fechadas. Rubens, engenheiro e ex-deputado federal pelo PTB cassado pelo primeiro Ato Institucional da ditadura, era suspeito de ser o contato de importante membro de uma organização da luta armada e por meio dele a repressão esperava chegar até o procurado.
Com a casa tomada e as portas sociais fechadas, Eunice foi à luta. Mudou da beira do mar do Leblon no Rio de Janeiro para São Paulo, onde nasceu e vivia sua família. Aos 48 anos foi estudar Direito, formou e tornou-se uma celebrada especialista em causas indígenas. Em 1996, Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva conseguiu a certidão de óbito do marido. O corpo de Rubens Paiva, enterrado e desenterrado diversas vezes pelos agentes policiais para não ser descoberto, teve os restos mortais jogados ao mar em 1973. Aos 72 anos, Eunice iniciou processo de Alzheimer e morreu em 2018, aos 86 anos. Os 14 anos de ausência provocados pela patologia não intimidaram o afeto. Marcelo manteve Eunice presente em ‘Ainda estou aqui’ ao contar que se passou a partir do olhar e atitudes da mãe. Murilo, Heitor, Waltinho e o elenco do filme se encarregam de eternizar quadro a quadro o que ocorreu com a família, a ‘Facciollada’ como diz uma das filhas ao convocar todos e todas para mais uma foto em que Eunice é abraçada pelo sorriso que ela ensinou ser o companheiro apropriado para enfrentar o que não tem remédio.
Neste tempo assombrado pela extrema-direita e necessário contraponto a essa medonha aparição, ‘Ainda estou aqui’ foi o filme escolhido pela Academia Brasileira de Cinema para representar o país na categoria de Melhor Filme Internacional na premiação do Oscar, em março de 2025. Lá em Los Angeles. Aqui, já ganhou.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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