José Luis Fiori ao 247: “O mundo monopolítico e eurocêntrico já acabou do ponto de vista econômico e militar”
Se esta quebra ainda não tivesse ocorrido, EUA e Europa já teriam avançado sobre a Ucrânia e já teriam assinado um acordo militar com Taiwan, diz o professor
Um dos mais respeitados estudiosos do sistema capitalista em nossos meios acadêmicos, o professor José Luis da Costa Fiori passou o último período debruçado sobre o processo histórico que acaba de produzir uma ruptura na ordem internacional, consumada quando a Rússia de Vladimir Putin reconheceu duas regiões separatistas da Ucrânia, levando a União Européia e Estados Unidos a reagir com a promessa de sanções, que podem ser o início de uma escalada que ninguém sabe aonde vai terminar.
Nesta terça-feira, Fiori me concedeu uma entrevista por escrito, que publico na íntegra:
No início deste mês o senhor escreveu que “o Ocidente está prestes a perder, além da liderança econômica, o papel de guardião da democracia e da própria ordem liberal”. Quais elementos permitem acreditar numa mudança desse porte?
Estes processos históricos são lentos e passam por caminhos muito sinuosos. Às vezes avançam, às vezes recuam. Mas neste caso houve uma aceleração do tempo histórico nestas duas últimas décadas, e em particular desde o momento em que a Rússia voltou à condição de segunda maior potência militar do mundo, enquanto a China decidiu acelerar a modernização de sua Marinha e de sua capacidade balística além de começar o seu grande projeto de construção e incorporação de mais de 60 países ao redor do mundo, no seu Belt and Road. Na verdade, se você quiser simplificar este processo mais recente, poderíamos dizer que a grande inflexão aconteceu no momento em que a Rússia interveio na Guerra da Geórgia, em 2008, dizendo um “basta” à expansão da Otan, e depois interveio na Guerra da Síria, em 2015, por sua própria conta e obedecendo seu próprio comando. Com pleno sucesso militar, e deixando claro que já existia no mundo uma potencia com capacidade de arbitrar, sancionar e punir por sua própria conta, mesmo que fosse – como neste caso - em nome de valores e objetivos buscados também pelas “potências ocidentais”, como era derrotar o chamado Estado Islâmico. Mas não há dúvida que esta inflexão acelerou ainda mais no momento em que a China de Xi Jinping colocou sobre a mesa seus objetivos estratégicos para as próximos décadas, e ao mesmo tempo chamou o Ocidente a respeitar o fato de que agora existem múltiplas culturas e civilizações dentro do mesmo sistema interestatal em que todos estão. A declaração comum da Rússia e da China aos povos do mundo, do dia 7 de fevereiro passado, consagra esta convergência e anuncia o fim do poder e da ética mundial unipolar imposta pelo ocidente nos últimos 300 anos da história do sistema mundial, em particular nos séculos XIX e XX. Assim mesmo, uma coisa que chama a atenção nesta “Carta aos povos do mundo” da Rússia e da China é a sua defesa do que eles chamam de valores universais de liberdade, da igualdade, da paz e da democracia, respeitando-se a visão de cada povo com relação a cada uma destes “valores” que eles também chamam de universais’.
A ideia de que há uma hierarquia entre nações é um dos fundamentos principais do mundo no qual estamos condenados a viver. Por que Rússia e China poderiam mudar esse estado de coisas?
O filósofo grego Heráclito de Efeso dizia que a hierarquia e o conflito são o fundamento de todas as coisas, inclusive da própria ética. E a Rússia e a China não têm poder para mudar esta regra fundamental do próprio do “jogo de poder” em que estão envolvidos. A hierarquia e o conflito seguirão existindo, mas assumirão novas formas no momento em que o sistema mundial tiver várias cabeças, e vários estados, impérios e civilizações incluídos e reconhecidos como partes do mesmo sistema de poder e de produção mundiais.
O senhor escreve que, por trás do ultimato da Federação Russa, o problema de fundo consiste na reivindicação de uma compensação pelas perdas pela dissolução da antiga União Soviética. Poderia explicar isso?
Foi um diplomata francês do início do século XVIII, o Abade de Saint Pierre, que formulou pela primeiras vez uma ideia que depois foi retomada e sistematizada pelo cientista político norte-americano Hans Morgenthau, sobre a origem das guerras. Segundo Morghentau: “a permanência do status de subordinação dos países derrotados numa guerra pode facilmente produzir a vontade destes países desfazerem a derrota e jogarem por terra o novo status quo internacional criado pelos vitoriosos, retomando seu antigo lugar na hierarquia do poder mundial. Ou seja, a política imperialista dos países vitoriosos tende a provocar uma política imperialista igual e contrária da parte dos derrotados. E se o derrotado não tiver sido arruinado para sempre, ele quererá retomar os territórios que perdeu, e se possível, ganhar ainda mais do que perdeu, na última guerra”. Em 1991, depois do fim da Guerra Fria, não houve um Acordo de Paz, que estabelecesse as perdas da URSS, e que definisse claramente as regras da nova ordem mundial, imposta pelos vitoriosos, como havia acontecido no fim da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais. De fato, a URSS não foi atacada, seu exército não foi destruído e seus governantes não foram mortos nem punidos, mas durante toda a década de 90, os EUA e a UE apoiaram a autonomia dos países da antiga zona de influência soviética e promoveram ativamente o desmembramento do território russo. Começando pela Letônia, Estônia e Lituânia, e seguindo pela Ucrânia, a Bielorússia, os Bálcãs, o Cáucaso e os países da Ásia Central. E depois disto, os EUA e a UE apoiaram a independência do Kosovo, e desde 2008 pelo menos estão armando e treinando as forças armadas da Ucrânia e da Geórgia. Em 1890, o Império Russo, construído por Pedro o Grande e Catarina II, tinha 22.400.000 Km² e 130 milhões de habitantes, era o segundo maior império contíguo da história da humanidade, e era uma das cinco maiores potências da Europa. No século XX, durante o período soviético, o território russo se manteve do mesmo tamanho, a população chegou a 300 milhões de habitantes, e a Rússia se transformou na segunda maior potência militar e econômica do mundo. Pois bem, hoje a Rússia tem 17.075.200 km² e apenas 152 milhões de habitantes, ou seja, em apenas uma década, a década de 1990, a Rússia perdeu cerca de 5 .000.000 km2 , e cerca de 140 milhões de habitantes. E o que a Rússia está exigindo neste momento é uma revisão parcial destas perdas, e a suspensão do avanço da Otan e de suas armas sobre sua fronteira ocidental.
O senhor descarta a possibilidade de um conflito militar para solucionar essas pendências. Como seria possível convencer os vitoriosos da Guerra Fria a ceder?
Não creio que vá haver uma nova grande guerra europeia como vem anunciando o treslouco do primeiro-ministro inglês, que às vezes parece mais um garotão irresponsável do que o primeiro-ministro de uma antiga potência hoje em pleno declínio. Os EUA não cederão e boicotarão qualquer acordo intra-europeu, como já estava se anunciando com os ataques destas últimas horas das forças regulares e irregulares ucranianas contra o território de Donbass, feitos com a simpatia dos norte-americanos. A Rússia também não deverá ceder e não tem mesmo porque ceder porque é quem tem uma posição de força no momento, frente a uma Otan cada vez mais dividida. Portanto, o mais provável é que a Ucrânia se transforme numa espécie de “Taiwan” europeia. Ninguém entra, ninguém sai, e se alguém se mexer aí sim haverá guerra. Os EUA poderiam ter aceito a proposta feita pelo Kissinger há uns sete anos de “finlandização” da Ucrânia, mas não quiseram. Agora terão que conviver com uma nova Taiwan.
O senhor escreve que através do documento apresentado à comunidade internacional em 7 de fevereiro, Rússia e China assumiram uma proposta “verdadeiramente revolucionária” que consiste na ideia de quebrar o monopólio de quatro séculos da Europa e de algumas ex-colônias na definição dos destinos da humanidade. Como se faria isso?
Já fizeram, e o monopólio já foi quebrado. Se esta quebra ainda não tivesse ocorrido, os EUA e os europeus já teriam avançado sobre a Ucrânia e já teriam assinado um acordo militar com Taiwan. Este mundo monolítico e eurocêntrico já acabou do ponto de vista econômico e militar. Como eu disse no ensaio que publiquei recentemente, “já não existe mais um único ‘critério ético’, tampouco existe mais um único juiz com poder para arbitrar todos os conflitos internacionais, com base na sua própria “tábua de valores”. E já não é mais possível expulsar os “novos pecadores” do “paraíso” inventado pelos europeus, como aconteceu com os lendários Adão e Eva”.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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