Lhano e leal, José Múcio tem perfil ideal para a Defesa
"José Múcio Monteiro é um homem lhano e leal. Não há riscos na trajetória política que traçou para si, em todos os cargos pelos quais passou", avalia
Indicado ministro da Defesa, mas, ainda não confirmado no posto, o pernambucano José Múcio Monteiro Filho foi obrigado a deixar a calva sorridente e simpática quarando no zinco da Esplanada dos Ministério e converteu-se em alvo. São exagerados e injustos os tiros de festim dados contra ele.
Habilidoso negociador, político leal que passou por diversos cargos públicos no Legislativo e no Executivo sem ser atingido por denúncias que enxovalhassem sua reputação, possui todas as qualidades necessárias exigidas de alguém convidado a integrar um governo de coalizão. Por dialogar em bom diapasão tanto à direita quanto à esquerda, por ter raízes na direita do espectro político e conservar as melhores amizades com personalidades da centro-esquerda, o perfil de José Múcio caberia bem na maioria dos ministérios de qualquer governo.
Sem quadro mais leve e razoável para o posto, e porque o advogado e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, da Justiça e da Defesa Nelson Jobim não aceitou voltar ao último posto, justamente a pasta que comanda e ordena as forças militares, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva convidou José Múcio para o Ministério da Defesa. Chancelado por Jobim, de quem é amigo, e por Geraldo Alckmin, o futuro vice-presidente que ajuda muito e não atrapalha em nada as articulações prévias do futuro governo, o pernambucano aceitou a missão.
José Múcio poderia ter rebarbado o convite para a Defesa, e isso seria um problema. Porque, daí, restaria Alckmin na lista tríplice de candidatos reais à vaga na cartela de opções de Lula. Alckmin tem todas as qualificações para o caro, que foi ocupado pelo então vice-presidente José Alencar entre 8 de novembro de 2004 e 31 de março de 2006.
TUTELA: RAZÃO MILITAR PARA DESEJAREM ALCKMIN
Alçar Geraldo Alckmin à condição de Ministro da Defesa, entretanto, é exatamente o que desejam os militares que flertam com golpes. Não o fazem porque o vice de Lula lhes dê trela ou pisque para eles. Mas, sim, por defeito de fabricação e déficit democrático em suas formações. Quando o Congresso debateu e votou a lei que criou o Ministério da Defesa, em 1999, nos tempos de Fernando Henrique Cardoso, quem relatou o projeto de lei na Câmara dos Deputados foi José Genoíno. Entregar a relatoria ao oposicionista e ex-guerrilheiro Genoíno foi deferência de Fernando Henrique e era fruto do grande consenso de então: a necessidade de reduzir as ambições de tutela dos militares e enquadrá-los como coadjuvantes do poder político – sempre eleito pelo povo, como determina a Constituição de 1988. Os ministros militares de então, estimulados por coronéis que hoje são generais (alguns já na reserva), tentaram consignar na lei que “o ministro da Defesa será sempre o vice-presidente da República”. Por que isso? Porque asseguravam, daquela forma, uma conexão direta com o gabinete presidencial e não submetiam os comandantes militares de Exército, Marinha e Aeronáutica a “um civil qualquer” como diziam já então. Vice-presidente à época (e criador político de José Múcio na política pernambucana, nos anos 1980), Marco Maciel foi firme contra a imposição militar e perfilou ao lado de José Genoíno para que não aceitasse a imposição da milicada. A lei saiu, Fernando Henrique criou o Ministério da Defesa, nomeou para lá o então senador capixaba Élcio Álvares em 10 de junho de 1999. Demitido na esteira de denúncias de corrupção e por flerte com milícias num Espírito Santo dominado pelo crime organizado, Álvares caiu em janeiro de 2000. FHC quis nomear Marco Maciel ministro e o então vice resistiu: “não. É imposição dos militares. Não”, recusou. A pasta foi entregue ao então advogado-geral da União Geraldo Quintão e, depois, ao diplomara José Viegas – de larga formação humanista. Tisnar a cena política e levar Lula a um retrocesso político, que é o que representaria a nomeação de Geraldo Alckmin à revelia do correto e leal comportamento do futuro vice-presidente é o objetivo dos comandos militares golpistas. Por isso, na resistência a isso, o presidente eleito deve conservar firmemente a indicação de José Múcio.
LEALDADE SUPRAPARTIDÁRIA DE MÚCIO
Em 1992, durante a Comissão Parlamentar de Inquérito que apurou as denúncias de Pedro Collor de Mello contra o governo do irmão presidente, Fernando Collor, e as traficâncias do empresário Paulo César Farias junto a ministérios, José Múcio foi indicado pelo PFL para integrar a bancada determinada a derrotar a oposição. Ele assumiu uma vaga na CPI por ordem do então líder pefelista Luís Eduardo Magalhães. No curso das investigações, Múcio foi se convencendo da culpa de Collor e das irregularidades praticadas pelo lobista PC Farias. Esta história está contada em Trapaça, vol. 1 – Saga Política no Universo Paralelo Brasileiro (Geração Editorial, 2019). Durante os trabalhos da comissão, antes da apresentação do relatório final da CPI, sem fazer alarde, Múcio procurou Luís Eduardo, contou de suas convicções, disse que votaria contra o governo e a favor da oposição, e disse ao líder do PFL que podia tirá-lo de lá caso quisesse ter o voto de um integrante do PFL a favor do governo. Luís Eduardo agradeceu a postura do liderado, não retrucou as razões, liberou o liderado para dar a versão que quisesse da conversa e arrumou um outro parlamentar alinhado para substituí-lo.
Outra prova de lealdade de José Múcio, e também da amplitude de sua habilidade política para tirar as meias sem descalçar os sapatos, ocorreu em 2005. Líder do PTB de Roberto Jefferson, que era o presidente do partido em junho daquele ano e havia iniciado a escalada de denúncias – falsas – dando conta da existência de um sistema de pagamentos do governo Lula por votos no Congresso – algo que nunca ocorreu, contudo, converteu-se numa primeira tentativa de cassar um presidente do PT (o “escândalo do mensalão”) –, Múcio foi designado pelos coordenadores políticos para ir até Jefferson sentir o tamanho dos riscos da guerra que ele anunciava. O presidente do PTB havia dado uma primeira entrevista à repórter Renata Lo Prete, da coluna Painel, do jornal Folha de S Paulo, e ainda não tinha posto no centro da cena do roteiro que construíra o personagem “Marcos Valério de Souza”, o “publicitário mineiro”, “carequinha”, que, segundo Jefferson, “pagava a compra de votos no Congresso”.
Cercando-se de cuidados – entre eles, levar consigo um sobrinho que era assessor da bancada petebista e que hoje é deputado por Pernambuco, Fernando Monteiro – Múcio topou a missão. Encontrou um Roberto Jefferson obcecado por vingança política contra o PT e contra José Dirceu (àquela altura ministro da Casa Civil de Lula). E a causa que movia a vendeta do presidente do PTB era, justamente, uma revanche política de 1992: Jefferson havia sido a principal liderança de defesa de Fernando Collor de Mello na CPI do PC. “Querem me destruir. Mas, vou destruí-los primeiro”, disse Roberto Jefferson a Múcio. O caminho para a colocação do nome de Marcos Valério em cena foi dado – contudo, a personagem ainda não havia sido revelada. José Múcio saiu do apartamento de Jefferson, conversou com Walfrido dos Mares Guia, ministro do Turismo e filiado ao PTB, já então convertido num dos melhores amigos de Lula, e foram ao Palácio do Planalto. Narraram a conversa ao presidente da República e a auxiliares. Traçaram caminhos políticos possíveis para resistir às denúncias no Congresso e aguardaram a segunda entrevista que Jefferson daria à Folha de S Paulo. José Múcio permaneceu na liderança do PTB na Câmara, de onde impediu a conversão da bancada em votos pró-oposição no Congresso. Fez um trabalho gigantesco de jogar com a bola do governo Lula e, ainda assim, defender Jefferson na Comissão de Ética que terminaria por indicar a cassação do presidente do PTB.
Em 2007, por causa da forma como conduziu a crise do “mensalão” (que nunca houve!) no PTB, José Múcio Monteiro virou líder do segundo mandato de Lula na Câmara. Da liderança foi alçado ao ministério da Articulação Política e, de lá, foi indicado para o Tribunal de Contas da União. Em fins de 2013, crendo-se afastado do cotidiano da política, recebeu o então governador de Pernambuco Eduardo Campos em seu gabinete. Campos queria ser candidato a vice-presidente numa chapa encabeçada por Lula em 2014, desde que o líder petista pusesse o guizo no pescoço de Dilma Rousseff: a complexidade da disputa política, o início do que viria a ser a “lava jato”, o temor da fina flor do conservadorismo que descambaria no golpe de 2016. Presidente do PSB, Eduardo Campos convidou Múcio a largar o TCU, filiar-se ao PSB e ser candidato ao governo de Pernambuco em aliança com o PT. O ministro do Tribunal de Contas, considerando a vida arrumada e contabilizando perdas e ganhos de voltar à política, levando em conta que seu maior desejo era criar os netos, ver os jogos do seu Sport sossegado e ter um bom plano de saúde na aposentadoria – tudo o que o TCU lhe garantia – declinou do convite. O resto é História… Lula não convenceu Dilma a abrir a candidatura para ele, Eduardo Campos não foi vice, a tragédia aérea de agosto de 2014 abreviou uma das mais reluzentes carreiras políticas do País depois da ditadura de 1964.
SOLIDARIEDADE NA DOR À FAMÍLIA ARRAES
A morte trágica e prematura de Eduardo Campos, naquela manhã de agosto de oito anos atrás, permite-nos conhecer mais uma faceta da lhaneza e da lealdade de José Múcio. Em 1986, ocupando cargos administrativos na Prefeitura do Recife, ele foi o escolhido pelo então senador Marco Maciel para disputar o governo de Pernambuco contra a personagem icônica de Miguel Arraes. José Múcio tinha apenas 38 anos. Arraes voltara do exílio em 1980. Elegera-se deputado federal dois anos depois – proporcionalmente, o mais votado do Brasil. Voltaria, pelo voto, ao cargo do qual fora deposto pelas baionetas militares de 1964. Maciel sabia que era uma eleição sem chances de vitória. Foi uma campanha acirrada, com Múcio encarnando a personagem de “candidato do sistema” contra o “arrastão Arraes”. Com 61% dos votos, num pleito em que não havia segundo turno por previsão constitucional, Miguel Arraes de Alencar elegeu-se com facilidade e guardou certas mágoas da virulência da campanha. Isso não impediu Eduardo Campos de girar a chave da política e converter Múcio em seu grande amigo. Em 2013, já instalado no TCU, José Múcio foi o grande cabo eleitoral de Ana Arraes, mãe de Campos e então deputada federal pelo PSB pernambucano, a uma das vagas no Tribunal de Contas da União. No trágico e infame 13 de agosto de 2014, coube a José Múcio evitar que a colega de tribunal, Ana Arraes, filha de seu algoz nas eleições de 1986 e mãe de seu amigo Eduardo Campos, tivesse acesso a quaisquer meios de comunicação na manhã do dia em que o filho morreria. Foi José Múcio quem deu a notícia do desastre aéreo de Campos a Ana Arraes, com toda a delicadeza e cuidado. Cumprido o doloroso ritual, acompanhou-a no voo a Recife e auxiliou em todas as tratativas das exéquias.
MÚCIO ALERTOU DILMA SOBRE RELATÓRIO DE CONTAS
Em 2015, meses antes de apresentar o relatório do Tribunal de Contas da União sobre a contabilidade do governo Dilma Rousseff, encontrei José Múcio num voo Brasília-Recife. Conversamos por toda a viagem. “Vou procurar a presidente e sugerir que faça algumas alterações na prestação de contas”, disse-me ele. “Do jeito que está, não passa. São alterações bobas, dá para fazer”. Assim como ele, eu acreditei que as mudanças seriam feitas. Havia, já, certa conflagração no Congresso, sobretudo por causa das chantagens de Eduardo Cunha, o facínora que presidia a Câmara dos Deputados. Nada indicava, contudo, que quaisquer pedidos de impeachment tivessem sucesso.
De volta a Brasília, reencontrei José Múcio num evento social em novembro de 2015. Ele disse que Dilma se recusara a mudar a prestação de contas do governo – porque ela não estava errada (e não estava!). De fato, não havia nada inexplicável nas contas do governo. Entretanto, o ambiente político não aconselhava lançar gasolina nas chamas congressuais e dar argumentos aos golpistas que despontavam nas asas de Eduardo Cunha. Por mais duas vezes José Múcio foi ao Planalto e ao Palácio da Alvorada insistir na alteração do relatório de contas do governo: sem sucesso. “Estou mais preocupado com essas contas que não fecham, formalmente, do que com qualquer denúncia da ‘lava jato’”, assegurou-me à época. E foi peremptório: “Dilma é uma mulher honesta, direita, decente, correta. Se quiserem armar para ela, armarão com essas contas”. Dilma Rousseff não compreendeu que o busílis da questão não era contábil, ou técnico. Era político. Mais uma vez, o resto é História.
José Múcio Monteiro é um homem lhano e leal. Não há riscos na trajetória política que traçou para si, em todos os cargos pelos quais passou. É desonesto desqualificá-lo politicamente para o Ministério de Lula – em quaisquer cargos – partindo de acusações saídas dos arquivos udenistas. O udenismo atávico foi ferramenta da extrema-direita para destroçar os avanços da esquerda na política brasileira. Sempre. Sobretudo, de 2013 para cá. É um desalento ver personalidades da esquerda caindo novamente nessa armadilha. Engenheiro construtor de pontes políticas e caso seja confirmado na pasta da Defesa, Múcio tem todas as qualificações necessárias a promover em silêncio o urgente enquadramento das forças militares e de seus comandantes. Raras pessoas sabem dar ordens firmes estampando um sorriso no rosto e falando suavemente. O ex-ministro do TCU e da Articulação Política é uma dessas pessoas na cena contemporânea.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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