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    Luciano Cerqueira

    Pesquisador do Grupo Estratégico de Análise da Educação Superior (GEA-ES) da Flacso Brasil; Pesquisador associado do Laboratório de Políticas Públicas (LPP-UERJ) e Doutor no Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da UERJ

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    Liberdade com responsabilidade: expectativas decorrentes do incentivo às medidas socioeducativas em meio aberto

    O estado de crise do sistema prisional é uma realidade e a pressão por melhorias vem de diferentes frentes, incluindo organismos internacionais, órgãos jurisdicionais, órgãos normativos e de controle e da própria sociedade civil

    (Foto: Christiano Antonucci)

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    Coautora: Sabrina Araujo de Souza, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

    O estado de crise do sistema prisional é uma realidade e a pressão por melhorias vem de diferentes frentes, incluindo organismos internacionais, órgãos jurisdicionais, órgãos normativos e de controle e da própria sociedade civil. A demora em resolver os problemas que estruturam esta crise, do mais básico aos mais complexos, tem feito com que o Judiciário perca credibilidade. Nenhum dos problemas que existe no sistema prisional apresenta uma solução fácil. Está claro que para enfrentar – e superar – as adversidades existentes, será necessário enfrentar as múltiplas causas que as compõem. Uma das principais medidas a serem tomadas, talvez não seja a mais popular junto à sociedade, é trabalhar para evitar o encarceramento excessivo e as penas desproporcionais. 

    Tentando atuar diretamente nas questões que compõem este estado de crise, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou (em março de 2019) o programa Justiça Presente. O programa, que é fruto de uma iniciativa da gestão do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli, estabelece parceria inédita entre o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e o CNJ para fortalecer as audiências de custódia em todo país, dentre outras medidas de relevância para conferir maior celeridade processual e, assim, garantir o tratamento justo aos cidadãos. Uma das novidades anunciadas pelos responsáveis pelo programa é a constante preocupação com todo o ciclo penal e o desenho de intervenções específicas para cada Estado, construída em colaboração com os atores da sociedade civil local. 

    O programa está dividido em três momentos. Na primeira fase, serão priorizadas: a informatização dos processos de execução penal, por meio da implantação do Sistema Eletrônico de Execução Unificada (SEEU); a identificação biométrica; a emissão de documentos para pessoas privadas de liberdade; a atenção às pessoas egressas; as iniciativas para inserção no mercado de trabalho; o fortalecimento das audiências de custódia, das políticas de alternativas penais e da monitoração eletrônica. A segunda fase abrangerá: mutirões carcerários em processos informatizados; centrais de vagas para aperfeiçoar o controle da legalidade das penas e medidas; práticas restaurativas; melhoria e aperfeiçoamento dos serviços e mecanismos de controle das políticas oferecidas às pessoas presas. Por fim, a terceira fase investirá em ações de atenção ao sistema socioeducativo. Talvez essa seja a grande novidade do programa: o incentivo às Medidas Socioeducativas (MSE). 

    O  incremento da aplicação de medidas socioeducativas aos adolescentes em conflito com a lei fundamenta-se no princípio legal de que estes são sujeitos de direitos merecedores da proteção especial e integral do Estado, em virtude de seu incompleto processo de amadurecimento, sendo desejável, portanto, a priorização de ações voltadas à sua socialização, a fim de mitigar também o risco de futura internação.

    O objetivo das MSE é o de promover uma gama de ações que proporcionem aos adolescentes um processo de reflexão acerca de suas práticas infracionais e suas motivações para cometê-las. A MSE visa a contribuir também para que o adolescente possa, enquanto reflete sobre os atos cometidos, refletir sobre si mesmo e encontrar uma maneira de ter uma relação social menos danosa com ele próprio, com as outras pessoas e com a propriedade – seja ela pública ou privada. Estas reflexões, levadas a cabo durante o processo da MSE, tem como objetivo fazer com que, ao final do processo, o adolescente esteja consciente da sua responsabilização perante as suas práticas e que compreenda que o universo dos direitos humanos envolve não só ele, mas também aqueles com quem ele interage.

    Dentre as categorias de MSE, há uma específica que se propõe a conduzir ações sem fazer uso da internação, ou seja o adolescente não é privado de liberdade durante o seu cumprimento: Medidas Socioeducativas em Meio Aberto (MSE-MA). São quatro as possíveis ações em meio aberto: Advertência, Obrigação de Reparação de Dano, Prestação de Serviços à Comunidade  e Liberdade Assistida. As duas alternativas mais utilizadas pelo Poder Judiciário, até o momento, têm sido a Liberdade Assistida (LA) e a Prestação de Serviços à Comunidade (PSC). Dados apresentados pela Pesquisa Nacional de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto (MSE-MA), realizada em fevereiro/março de 2018 pelo Ministério do Desenvolvimento Social,  mostra que, em 2017, tínhamos 117.207 adolescentes em cumprimento de LA ou PSC, sendo 69.930 nesta última e 84.755 em liberdade assistida. Esse quantitativo representa 82% de todas as MSE aplicadas no Brasil, estando as medidas de semiliberdade e internação, compreendidas nos demais 18%.Os dados apresentados no Blog da Rede SUAS, nos mostram ainda que:

    • 89% dos adolescentes são do sexo masculino e 11%, feminino; 
    • 82% estão na faixa etária dos 16 aos 21 anos; 
    • 21% respondem por tráfico de drogas, 16% por roubo e 11% por furto, sendo estes os atos infracionais mais prevalentes; 
    • o número de adolescentes em cumprimento de medidas de LA e/ou PSC por homicídio não chega a 1%.

    Embora apresentem números animadores, as MSE-MA precisam melhorar, pois, assim como acontece em outras áreas de políticas públicas (acesso à educação, desenvolvimento industrial etc.), a aplicação das medidas também ocorre de forma desigual nas regiões brasileiras. Quando olhamos para os números, notamos que as regiões Sul, Centro-Oeste e Norte apresentam um número bem superior de aplicação de MSE-MA, quando comparadas com o Sudeste. Podemos ver que as explicações para este fenômeno giram em torno das seguintes possibilidades:

    • o conceito variável que o sistema de justiça tem sobre a aplicação destas medidas em meio aberto;
    • a prevalência de atos infracionais mais ou menos graves;
    • a concentração urbana;
    • o recurso às substituições das medidas de semiliberdade e de internação pela liberdade assistida, entre outras.

    Independente do entendimento que se tenha sobre os itens acima, a pesquisa mostra que, de um modo geral, as MSE-MA estão concentradas nos grandes centros urbanos e nas capitais, independente da região analisada. Paradoxalmente, são estes mesmos centros urbanos os locais que apresentam as maiores taxas de óbito dessa mesma população, especialmente dos adolescentes oriundos de famílias pobres, periféricas e não-brancas. Existe, nos grandes centros e metrópoles, uma preferência pelas medidas de LA em detrimento da aplicação das medidas PSC. E inversamente, quanto menor o município, maior é a prevalência de medidas de PSC em relação às medidas de LA. 

    Atualmente, o cumprimento de MSE-MA por faixa etária está distribuído da seguinte maneira (LA e/ou PSC):

    • 12-13 anos: 3.614;
    • 14-15 anos: 22.163;
    • 16-17 anos: 54.763;
    • 18-21 anos: 36.707.

    Por estes números podemos observar que o número de adolescentes em cumprimento de LA e/ou PSC aumenta conforme a idade dos mesmos, sendo o ápice entre os 16 e 17 anos. Este número reflete, sobretudo, duas coisas: essa é a faixa etária que consideramos como final da adolescência, período de transição crucial na vida dos jovens. É nesse momento em que a capacidade de raciocínio está mais desenvolvida e o adolescente ganha novas responsabilidades e papéis, tornando-se um novo ser social. Em casa, a hora de lazer pode se transformar em momento de execução de tarefas adultas; na escola, é preciso escolher sua futura carreira; na sociedade, há de se conquistar um emprego; nos relacionamentos, é preciso buscar parceiros(as). Além disso, vive-se uma fase em que a identidade vai se definindo dentro de um grupo de amigos/as. Todos esses são elementos comuns a esta fase e fazem parte da construção de quadro complexo da adolescência, no Brasil e no mundo. Necessário perceber que essas mudanças podem trazer conflitos internos e sociais e “jogar” os jovens em situações com as quais ainda não estão prontos para lidar. Vale ressaltar que, além destes fatores mais genéricos que citamos anteriormente, a juventude brasileira pobre e não-branca também enfrenta um quadro de pobreza multidimensional, como a falta de emprego, saúde, educação, saneamento básico etc. Ou seja, a adolescência já é um período muito conturbado para qualquer pessoa e é especialmente difícil para o adolescente negro no Brasil.

    Tal qual acontece no sistema prisional, é preciso compreender o caráter não punitivista das MSE e trabalhar estas medidas como ações que irão orientar os jovens a encontrar o equilíbrio em um momento difícil de suas vidas. Trabalhando com este ponto de vista, acreditamos que poderemos reduzir ainda mais as futuras detenções, ao ponto desta prática vir a ser, um dia, praticamente abolida entre os menores de idade. 

    Mas, para que isso aconteça, temos de melhorar o atendimento aos jovens que podem fazer uso da MSE (em especial as MSE-MA) após infringir a lei. Uma das ações que podem ser adotadas é dotar todos os órgãos de atendimento aos jovens infratores (CREAS, CRAS etc.) de pessoal e equipamento adequados. O Brasil é um país de dimensões continentais e nossos municípios apresentam diferenças bastante significativas quando o assunto é estrutura governamental. Ainda existem muitas prefeituras no Brasil que não possuem o básico para atender, de forma digna, a população. Falta pessoal, telefone, computador, material de escritório etc. para o trabalho cotidiano. É preciso dotar as instalações que atendem os jovens infratores com equipamentos que permitam à comunidade usufruir dos benefícios advindos da aplicação das MSE-MA. Além disso, é claro, é preciso fazer com que mais pessoas (gestores, famílias, adolescentes etc.) conheçam o programa. Assim como existe a falta de equipamentos físicos nos municípios, também existe a falta de informação, ou quando não, o mau uso. Desde sempre, é necessário incrementar a aplicação de medidas socioeducativas. Assim compreendem os estudiosos do Direito que adotam uma postura menos punitivista e mais garantista, em prol da diminuição dos encarceramentos. É preciso fazer com que as MSE-MA sejam adotadas igualitariamente por todo o país e, para isso, parece fundamental uma campanha governamental concentrada com o imprescindível apoio de organizações não-governamentais. Especialmente em um momento como o que vivemos no país, em que o Poder Executivo parece mais interessado na aniquilação de políticas voltadas à atenção para crianças e adolescentes, a exemplo da total inviabilização do Conanda, medidas como o Programa Justiça Presente chegam em hora mais que oportuna. A MSE-MA é uma prática que beneficia a todos os envolvidos e, por isso, devemos fazer com que ela tenha um alcance ainda maior. E devemos assumir um compromisso para que esta prática tenha efetiva continuidade. Não podemos cometer com os jovens brasileiros os mesmos erros que a justiça (via sistema prisional) tem cometido com os cidadãos absorvidos pela crescente massa carcerária. É preciso aprisionar menos e socializar mais.
     

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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