Liberdade de expressão ou é universal ou é privilégio
O caminho de transformar o direito à livre expressão em privilégio está sendo trilhado tanto pelo sistema de justiça, como agente do autoritarismo líquido, como pela grande mídia, que se transforma em cúmplice do processo desconstituinte
A liberdade de expressão universal é mais que um direito numa democracia constitucional, implica um dever defendê-la. Cidadãs, cidadãos, instituições, movimentos sociais e entidades privadas estão obrigadas a respeitá-la e defendê-la, sob pena de colaborarem decisivamente para o enfraquecimento da democracia. No entanto, recentes casos de ofensa à liberdade de expressão evidenciaram os contornos do preocupante processo de esvaziamento do sentido da Constituição de 1988 e a escalada autoritária que segue em curso no Brasil.
Há poucos dias, a Rede Globo foi censurada previamente e proibida de veicular informações sobre as investigações envolvendo o filho do presidente da República e senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).
Em junho, o cartunista Aroeira produziu uma charge de ácida crítica à conduta do presidente, Jair Bolsonaro, durante a pandemia. Foi aberta investigação no âmbito no Ministério da Justiça para apurar se Aroeira e o jornalista Ricardo Noblat, que publicou a charge, ofenderam a Lei de Segurança Nacional.
Em agosto, Luís Nassif e seu site GGN foram censurados pela primeira instância e impedidos de veicular reportagens que indicariam fraude na licitação de R$ 500 milhões para serviços de Zona Azul em São Paulo, envolvendo o banco BTG-Pactual. A reclamação ao Supremo Tribunal Federal, com Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, foi rejeitada pelo ministro Marco Aurélio Mello, que entendeu não haver relação com liberdade de expressão por se tratar de proibição vinda de decisão judicial.
O jornalista Reinaldo Azevedo, defensor dos valores da democracia liberal e constitucional, que utilizou este espaço da sua coluna para tecer suas conhecidas críticas às medidas de exceção praticadas pela operação Lava Jato, foi condenado a indenizar o procurador da República Deltan Dallagnol, que até há pouco tempo chefiava a Lava Jato de Curitiba, numa decisão tomada pela juíza Sibele Lustosa, esposa do também procurador da República Daniel Holzmann Coimbra, que trabalha com Dallagnol.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes emitiu uma opinião como cidadão crítica à presença massiva de militares no Ministério da Saúde, aludindo à responsabilidade que têm pela tragédia brasileira na pandemia, e foi alvo de representação do Ministério da Defesa à Procuradoria-Geral da República.
A PROFUNDA CRISE
Esse conjunto de decisões faz parte da profunda crise na qual se encontram as constituições e as democracias nos principais países do Ocidente. Desde 2007, quando publiquei meu primeiro artigo sobre o tema, pesquiso esse fenômeno que, hoje, já se torna muito claro para quem quiser ver. Minha observação de que havia uma crise no constitucionalismo do pós-Segunda Guerra e nas democracias confluiu para uma série de autores que, desde a década de 1990, começaram a perceber o mesmo, cada qual com suas narrativas e nomes diferentes.
Norberto Bobbio produz uma série de artigos em que ele chama de “novos despotismos”; Luigi Ferrajoli classifica de “poderes selvagens” ou “processo desconstituinte”; Giorgio Agamben nomeia de “estado de exceção”; Marie Goupy e Carpentier também chamam de “estado de exceção”, vinculando-o às novas formas de capitalismo; Boaventura Santos traz sua “democracia de baixa intensidade”; e, Ronald Dworkin, diz que existe uma perda do “commonground” (solo comum). A ideia está presente também nos estudos de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, publicados no livro “Como as democracias morrem”.
Aqui, no Brasil, comecei a tratar o assunto como “medidas de exceção” no interior da democracia, mas depois de “autoritarismo líquido”, referência à ideia introduzida por Sigmund Baumann; Rubens Casara chama de “estado pós-democratico”; e Rafael Valim e Gilberto Bercovic de “estado de exceção”.
Importa dizer que esse fenômeno existe e, na América Latina, ocorre com as medidas de exceção capitaneadas pelo sistema de justiça, enquanto, no mundo desenvolvido, o soberano das medidas de exceção é o Executivo, a partir da lógica do inimigo estrangeiro “terrorista”. A resposta aos atos terroristas formou um regime jurídico especial de garantia da segurança nacional em que a produção de medidas de exceção é cotidiana. Um dos casos mais emblemáticos disso é o de Julian Assange. Na América Latina, temos o sistema de justiça sendo a coluna vertebral da produção das medidas de exceção, com participação eventual do Executivo e do Legislativo.
ESVAZIANDO A CONSTITUIÇÃO
Reduz-se a esfera de influência da Constituição e dos direitos fundamentais pelo processo que esvazia o sentido e diminui a incidência da Constituição. Primeiro, isso se dá no campo hermenêutico, com o julgador indo ao texto constitucional não para realizar a vontade do programa normativo constitucional, mas para buscar argumentos que validem sua vontade pessoal e seus valores de justiça pessoal. Trata-se da maior forma de corrupção no sistema, não no sentido jurídico-penal, mas no filosófico-político, ou seja, apropriação privada de um bem público.
Isso porque o sentido comum que habita o programa normativo dos direitos fundamentais e da Constituição é construído pela e em favor da comunidade. Os direitos fundamentais são individuais, portanto, são parte do patrimônio individual de cada um. Mas, ao mesmo tempo, fazem parte do patrimônio da comunidade e da essência do Estado Democrático de Direito, logo, também são patrimônio de todos. Nesse sentido, os direitos fundamentais são patrimônio de cada um e de todos simultaneamente.
Também chamados em outros países de direitos civis, os direitos fundamentais são os bens públicos mais relevantes que há no Estado Democrático de Direito e têm natureza intergeracional. Significa que foram produzidos por quem já viveu, são usufruídos por quem vive e destinados a quem vai viver. São frutos do pacto intergeracional esculpido na Constituição. Importante ressaltar que não são fruto da ação da tinta no papel, como podem alguns equivocadamente imaginar, mas foram construídos com sangue na calçada. Nossos antepassados deram a vida, sacrificaram-se, deram a integridade física, comprometeram a própria liberdade para poder defender e fazer valer os direitos, construindo historicamente os direitos humanos e fundamentais.
Se o direito fundamental de cidadania é o “direito a ter direitos”, corresponde a ele um dever fundamental de cidadania, que é o dever de lutar e guardar os direitos. Se possível, ampliá-los e melhorá-los, para entregá-los às próximas gerações, num processo contínuo de evolução. Por isso, são antimajoritários: a maioria dos seres viventes não pode abrir mão dos direitos porque recebeu dos antepassados e têm o dever de entregá-los às próximas gerações. É um engano, portanto, achar que ter o direito a ter direitos é meramente um direito, pois a ele corresponde um dever essencial de cidadania, que é o de preservação e entrega às gerações vindouras.
Ora, o processo desconstituinte faz o inverso!
E um dos mecanismos de restrição indevida de direitos é não universalizá-los. A não universalização dos direitos mata sua própria essência. Os direitos surgiram como forma de combate a privilégios, pertencentes antes da existência dos direitos aos aristocratas e às castas. Frutos diretos das revoluções inglesa, francesa e estadunidense, foram concebidos como mecanismos de universalização de prerrogativas, igualmente a todos. Por isso é que, como Dworkin, entende-se que, no liberalismo, a virtude soberana é a da igualdade, porque implica em reconhecer que onde há direitos, não há privilégios. Em outras palavras, os direitos são potencialmente passíveis de serem exercidos por todos.
Um dos mecanismos perversos de restrição de direitos e de apropriação privada de sentido comum é reduzir seu alcance. Matar sua essência transformando direito em privilégio. É isso o que ocorre hoje com vários direitos. Nos casos citados, a redução de alcance se deu em relação à livre expressão do pensamento e seus consectários, o direito a produzir notícias e a fazer circular informações, ou seja, o direito a informar e ser informado. Esse direito caminha hoje para se transformar em privilégio, como os casos aqui citados indicam -alguns com uso da Lei de Segurança Nacional, que em seu espírito é contrária à Constituição de 1988 e deveria já ter sido derrogada.
Os casos são evidentemente exercício da liberdade de expressão para ironias e críticas a autoridades públicas, condutas inclusive desejáveis para arejar a democracia. O mesmo se aplica ao ministro, que, como cidadão e não no exercício de sua função judicante, fez crítica a instituições do Estado, no caso, as Forças Armadas. No caso de Azevedo, além disso, é flagrante a suspeição da juíza para apreciar a demanda. E a censura prévia à Rede Globo foi um atentado frontal à Constituição, ao direito de livre expressão, ao direito de produzir e circular notícias.
Obviamente, o abuso no exercício do direito à livre expressão do pensamento tem que ser sancionado, porque nenhum direito é absoluto, mas o que temos visto é o sistema de justiça sendo utilizado para restringir e controlar o direito à livre expressão, transformando-o de direito em privilégio.
De um lado, o sistema de justiça dá mostras de não conseguir realizar os princípios constitucionais no exercício de suas funções; de outro, a ausência de solidariedade dos grandes veículos de mídia a alguns jornalistas ofendidos, como ocorreu na condenação a Reinaldo Azevedo. Condenação inconstitucional e de imparcialidade duvidosa que não foi mencionada nos grandes veículos de comunicação. Parece que pretendem só tornar ofensa ao direito de livre expressão quando são alvo, um esforço em transformar o direito à livre expressão do pensamento em privilégio, ou seja, um direito limitado, não universal.
O caminho de transformar o direito à livre expressão em privilégio está sendo trilhado tanto pelo sistema de justiça, como agente do autoritarismo líquido, como pela grande mídia, que se transforma em cúmplice do processo desconstituinte.
DEMOCRACIA E LIBERALISMO COMO FORMAS DE SOCIABILIDADE
Importante lembrar que democracia e liberalismo não são apenas formas de regime político de Estado. São também formas de sociabilidade, ou seja, não há Estado Democrático e Constitucional de Direito numa sociedade que também não seja democrática e constitucional de direito. Não há democracia liberal num Estado quando na sociedade não há democracia liberal. Todos, assim, são responsáveis por fazer valer os princípios da democracia constitucional, seja o Estado e seus agentes, sejam as instituições privadas que são elementos fundamentais da vida democrática, tais como a advocacia, a imprensa e os movimentos sociais.
Por essas razões, é dever da imprensa lutar pelo direito à livre expressão do pensamento como direito universal, que possa ser exercido por todos. Para que informar e ser informado seja um direito exercido por todos, quaisquer que sejam os jornalistas, não importando sua localidade, tampouco os veículos para os quais trabalham ou se são independentes.
Afinal, não será possível deter o processo de esvaziamento da Constituição e manter nossa democracia, se os órgãos de imprensa não travarem uma luta universal do direito à livre expressão. Da mesma forma que não vamos conseguir construir uma democracia constitucional no país sem que o sistema de justiça seja leal à Constituição, também não vamos conseguir sem que as entidades privadas essenciais à democracia também o seja. Isso implica em dizer que os grandes órgãos de imprensa e mídia devem ser os principais defensores da livre expressão do pensamento como direito e não como privilégio.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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