Lula, Bolsonaro e o brasileiro médio
Assustados com a perenidade do apoio a Bolsonaro mesmo depois de tudo que ele já fez e declarou na presidência, analistas vociferam contra o analfabetismo político de seus apoiadores, repetindo o que era dito pelos adversários de Lula nos tempos de seu governo. O brasileiro médio é o problema. Será?
Assustados com a perenidade do apoio a Bolsonaro mesmo depois de tudo que ele já fez e declarou na presidência, analistas vociferam contra o analfabetismo político de seus apoiadores, repetindo o que era dito pelos adversários de Lula nos tempos de seu governo. O brasileiro médio é o problema. Será?
Quando o governo Lula iniciou nos idos de 2003, já empreendeu logo no início uma Reforma da Previdência polêmica, e daí as lideranças parlamentares então no PT Heloísa Helena, Luciana Genro, Babá e outros fundaram o PSOL para denunciar o que consideravam desvios da sigla. A partir daí, progressivamente, setores da chamada “camada média”, situados principalmente no funcionalismo público organizado, na juventude universitária das públicas, na chamada intelectualidade, passaram a abandonar a base eleitoral do governo, sentindo-se traídos com os rumos e implicações de um governo de coalizão com a centro-direita. O episódio conhecido como “mensalão” acelerou essa debandada.
O governo estaria murchando em apoio se nesse mesmo período uma outra base social não começasse a aderir expressivamente na sustentação do governo. Essa camada é de extratos mais populares, e foram beneficiados pelas políticas de transferência de renda, notadamente o Bolsa Família, programa que aprimorou e ampliou substancialmente iniciativas de governos anteriores. Foi o período de ascensão do que foi chamado de “classe C”, ou como o governo federal chamou, a “nova classe média”. Sua percepção de melhoria das condições de vida os fizeram ignorar o diário bombardeio de denúncias de corrupção que a mídia divulgava após 2005. Com a economia em crescimento, Lula conseguiu a emergência social de uma classe extremamente precarizada ao mesmo tempo em que manteve os ganhos fabulosos da elite econômica. Era o paraíso do “ganha-ganha”. Todos ganhavam, mas camada média sentia uma perda relativa, justamente o setor que concentrava a maior insatisfação contra o governo.
Quando estávamos nessa situação, era comum textos muito bem escritos por intelectuais dessa classe média, que reclamavam do baixo nível de instrução do povo que apoiava Lula. Seriam comprados pelo Bolsa Família. Situavam-se majoritariamente no Nordeste. O apoio a Lula seria fruto de sua ignorância e falta de formação política.
Pois muito que bem, os anos se passaram e chegamos a 2020 nesse Brasil que nos desafia diariamente a sua leitura. Temos um presidente que diariamente escandaliza a opinião pública com declarações de ataque a mínimos princípios científicos, de agressão a democracia, e uma série de questões graves que são diariamente discutidas e repercutidas. Mas, a despeito disso tudo, as pesquisas de opinião revelam que cerca de um terço da população está com ele. Há um conjunto da sociedade que ainda o apoia, para desespero dos 66% que não o apoiam. E o que se diz sobre esses apoiadores?
O professor Ivann Carlos Lago, no texto “O Jair que há em nós”, sistematiza as críticas desferidas contra os apoiadores de Bolsonaro. Segundo ele, seria a pior escória social existente. E ele prossegue caracterizando o que chama de “brasileiro médio” como “preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência... em quase tudo)”. Indo além, para ele esse brasileiro médio “é racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto”.
Então, chegamos a um padrão. Lula teve a mesma base de apoio que Bolsonaro. Quando afirmo isso, trago as pesquisas de Fernando Meirelles, um estudioso do comportamento da nominada classe C. O “brasileiro médio” e a tal classe C se confundem. E parece que ela apoiou Lula em seus dois primeiros mandatos, mais notadamente no segundo, e agora ela está com Bolsonaro. Qual o motivo?
As eleições de 2018 tiveram o marco da facada em Jair Bolsonaro, que foi um símbolo muito importante. Um símbolo de que se Bolsonaro foi vítima de uma facada, é porque estava incomodando o sistema. Portanto, Bolsonaro virou um personagem anti-sistema, e se esforça, mesmo depois de eleito, em manter essa narrativa, de que está lutando contra o sistema. Ele mantém o tom de beligerância para sobreviver, pois seria muito mais difícil se assumir como parte do sistema. Ele coloca essa tática eleitoral acima das vidas humanas, correndo o risco de perder apoio por isso, e parte da classe média que o apoiava começa a perceber isso, o que resulta nas panelas.
A respeito da alegada classe C, aonde a comunidade evangélica é bastante expressiva, e que migrou de Lula para Bolsonaro, é preciso entender o que aproxima a narrativa dos dois. Lula teve uma narrativa que dialogava muito com a teologia da prosperidade, que associa as bênçãos materiais a uma intervenção divina. No entanto, o debate político muda, notadamente a partir de 2013, época em que o crescimento econômico estagna e a vida das populações começa a piorar. Deixou de ter um foco nas condições que as pessoas querem chegar e no que o Estado poderia fazer para ajudar nessas condições, e passou a ir para o território de costumes. Foi aí que Bolsonaro começou a angariar apoiadores até chegar aonde chegamos.
Seria possível entender o conservadorismo da classe C sem tantos rótulos pejorativos como os feitos pelo autor? Qual é mesmo o papel da família para quem muitas vezes só depende dela para ter alguma sustentação? A esquerda está nas periferias da mesma forma que as igrejas evangélicas? A camada média progressista conseguiria ter o mesmo posicionamento liberal diante das drogas, por exemplo, se vivesse num território dominado pelo tráfico e tivesse medo diariamente de ser assassinado, ou seus filhos, tanto pela polícia quanto pelos traficantes?
De maneiras diferentes, com conteúdos diferentes, Lula e Bolsonaro conseguiram falar a linguagem do brasileiro médio. A esquerda e nem tampouco a direita tradicional, conseguiram ou conseguem isso. Por essa razão, tanto esquerda quanto direita parecem se unir nessa atitude arrogante de achar que o tal brasileiro médio é burro porque insiste em pensar diferente do que eles pensam.
Lula produziu uma ascensão social maravilhosa, mas errou ao comunica-la, chamou de classe média quem era trabalhador precarizado e antes era marginalizado. Isso gerou uma grande confusão. Porque esse trabalhador ficou achando que tinha virado classe média, e a classe média ficou achando que era elite, ao ponto de achar que a taxação das grandes fortunas seria para lhe atingir. O cara pagando um apartamento no financiamento achando que o Boulos iria invadir a sua rica propriedade. Ou seja, não se fez luta de ideias. Os seres humanos seguem ideias, e as ideias foram durante todo o período dos governos Lula e Dilma, ditadas pela imprensa empresarial. Então, jogar a culpa no “brasileiro médio” quando ele não pensa do jeito que gostaríamos, é mais cômodo com certeza para aquecer o ego. Mas resolve a esfinge que está devorando o país? Ou a esquerda desenvolve e apresenta uma concepção alternativa de como o Estado funciona, não só nas eleições mas no dia a dia, se fazendo presente no cotidiano do brasileiro médio, ou ficará por longa temporada na plateia assistindo a esse péssimo filme de terror da vida real.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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