Lula derrota Moro e mídia se finge de morta: cadê a autocrítica?
"Ali Kamel, Merval Pereira, Míriam Leitão, Sérgio Dávila, William Bonner, Eurípides Alcântara, Ricardo Noblat, Eliane Cantanhêde: uma prestação de contas precisa ser feita", escreve Mario Vitor Santos
Por Mario Vitor Santos
Faz já mais de um mês que a mídia de direita brasileira mergulhou num mutismo, uma espécie de luto sem objeto, um estado de negação diante do corpo presente. Esse recalque foi inaugurado espetacularmente em 23 de março, terça-feira, dia da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que estampou sobre a face do ex-juiz Sergio Moro a tarja de magistrado parcial, suspeito no caso da condenação do ex-presidente Lula por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do famigerado “triplex” do Guarujá.
O luto é prolongado e deve eternizar-se. Faz agora apenas sete dias que a mesma sentença vem de ser confirmada, agora pela maioria do plenário do STF, a mais poderosa instância do Judiciário.
A amarga realidade emerge. A verdade inimaginável se materializou perante o país e o mundo, lavrada em votos, com sabor intragável: a Operação Lava-Jato foi uma conspiração voltada para subverter a democracia. Houve tempo para isso, mas a instituição que estava também sentada no tribunal, junto a Moro, até agora não deu as caras para fazer uma autocrítica, faz-se de desentendida.
A instituição no banco dos réus é a mídia de direita brasileira: os grupos Globo, Uol-Folha, Estado, Abril, Jovem Pan, Record, Band e outros, reunidos naquilo que levou o experiente, viajado e internacionalmente premiado jornalista estadunidense Glenn Greenwald à seguinte constatação:
“Eu nunca conheci um país com uma imprensa local tão estruturalmente fraudulenta como a brasileira”.
O que houve para provocar tanto silêncio da mídia de direita diante de um caso tão rico de situações sensacionais? Deixemos a imprensa aqui e abramos um grande parêntese. Primeiro vamos rever o ocorrido nessa saga judicial e existencial, com traços de romance real de desgraça e renascimento após a visita de uma espécie de “providência divina”.
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AVISO: Se você quiser saltar a memória dos episódios da Lava-Jato e ir direto para a participação da mídia, desça para o parágrafo que começa na expressão “E aqui termina...”.
A decisão do STF ao declarar Moro um juiz suspeito foi gravíssima e raríssima, de um alcance sem precedentes na história dos tribunais superiores brasileiros. Como se sabe, o manto da Justiça abriga sob si um território privilegiado do corporativismo, onde prolifera o compadrio.
No Judiciário o que vale acima de tudo é a regra das “famílias”: irmão protege irmão, juiz dá a mão a juiz. As corregedorias, encarregadas de punir abusos judiciais, operam na contramão do que deviam: só agem em casos extremos, seu maior trabalho sendo o de lançar processos no esquecimento, numa roda de troca de favores.
Para se ter uma ideia da raridade da decisão do Supremo, de 2010 a 2019, 52 processos de suspeição de juízes foram levados ao STF. Nenhum teve acolhimento. Desta vez, porém, foi diferente, no ponto máximo daquilo que o ministro Gilmar Mendes classificou como o “maior escândalo judicial da história”.
A suspeição de Moro, líder supremo da Lava-Jato, “operação” agora já providencialmente sepultada, foi resolvida em 23 de março, por diferença de apenas um voto e só na última instância, depois de os três julgamentos anteriores, a começar pelo do próprio Moro, atestarem a pureza do julgador do Paraná.
Sempre requerida pelos obstinados defensores de Lula, a acusação de parcialidade percorreu uma longa estrada no Judiciário do piso ao teto. Sempre foi negada. Além do próprio Moro, na 13ª Vara Federal de Curitiba, deram ficha limpa a ele todas as instâncias de recurso: a 8ª turma (três juízes) do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre, e a 5ª turma (cinco ministros) do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília. Sempre por unanimidade. Aportou no STF em novembro de 2018, onde dormia desde dezembro do mesmo ano, com o voto de dois ministros contra a suspeição e nenhum a favor.
A vitória final da suspeição no STF pôs a nu, portanto, os caminhos da Justiça, humilhou as decisões das instâncias anteriores e só foi tomada em tons dramáticos: pela margem mínima, de virada como se diz, pelo voto da última juíza, Carmen Lúcia, que inverteu voto de dezembro de 2018 sobre o juiz Moro, de insuspeito para suspeito.
Para ultrapassar todos os obstáculos e alcançar este resultado, num caso de tantos desdobramentos sobre a ordem política, os advogados de Lula tiveram que provar muito mais do que a já improvável parcialidade de um juiz. Na verdade, valeram-se de suor e acaso para demonstrar com abundância de provas (poderia ser de outro jeito?) a existência de uma imensa conspiração.
Provaram à corte suprema que a Lava-Jato atropelou qualquer limite legal, revelando-se numa associação criminosa destinada a congregar por caminhos ocultos as forças de centenas de agentes do Estado recrutados em mais de uma dezena de órgãos estatais.
Parte desse contingente dedicou-se de fato à investigação legal de casos de corrupção volumosos, em diretorias da Petrobras. Outra parte agiu à sombra, em porões de um submundo criado por Moro, Dallagnol e seus acumpliciados reunidos naquilo que este último denominava como “time”.
Usaram primeiro leis, autorizações judiciais, convênios e acordos legais entre órgãos. Era apenas a fachada de uma outra conspiração que ultrapassava a lei e corria por trás, nas entranhas, por funcionários públicos metamorfoseados numa espécie de “deep state” tropical, com agentes infiltrados em órgãos vitais da máquina do Estado. Os operadores eram arregimentados entre burocratas transformados em espiões e arapongas, em ramificações informais e hierarquias a serviço daquela que veio a ser conhecida genericamente como a “República de Curitiba”.
Oculto, sob a mania servil de um juiz enviesado, disposto a usar recursos os mais ousados (ainda não se sabe de todos) e a disfarçá-los, o polvo da conspiração pôde enfocar um objetivo político, maior do que as investigações e punições dos casos de corrupção. A meta dessa república era usar seu poder para impor a narrativa da existência de uma quadrilha comandada pelo que veio a ser o troféu, o gozo sublime da operação Lava-Jato: a condenação e a prisão, de Lula. A modelagem da narrativa da condenação fora já ensaiada com sucesso no chamado mensalão, o qual também se valeu de negócios normais, depois distorcê-los para acusar líderes petistas de formar e chefiar uma organização criminosa.
Lula precisava ser caçado para neutralizar sua influência inicialmente na luta contra o golpe que vitimou a presidenta Dilma Rousseff, há cinco anos, e então destruiu a economia e a sobrevivência dos brasileiros.
Todos os objetivos foram atingidos, com as consequências sabidas. O ex-presidente foi preso, amargou 580 dias na cadeia da Polícia Federal em Curitiba. Surgiu uma Vigília Lula Livre, vanguarda de um movimento maior pelo Brasil. Em seguida, Lula foi visado, com a ajuda do mesmo STF, para impedir de todas as formas sua candidatura na eleição presidencial em 2018. A Lava-Jato queria, além da prisão de Lula, colocar seu Partido dos Trabalhadores na ilegalidade.
Para acabar com Lula, os agentes da Lava-Jato nos órgãos policiais espionaram ilegalmente seus advogados, cometeram invasão generalizada de privacidade, de domicílio, confiscaram bens de seu neto, humilhou, impediu o pranto pelo irmão, pelo próprio neto, matou pela pressão a esposa e ex-primeira-dama Marisa Letícia. Alternaram-se operações autorizadas pela Justiça com bisbilhotagem, plantação de provas, coação cruel de réus e testemunhas, obtenção de denúncias por meio de torturas psicológicas e chantagem contra cidadãos inocentes sobre os quais não havia acusações.
Sem controle, apoiado por uma nova legislação e a complacência da mídia, o polvo da Lava-Jato reinou absoluto. Estendeu um tentáculo em cada órgão relevante da burocracia: Ministério Público Federal, Polícia Federal, Receita Federal, Advocacia Geral da União, Controladoria Geral da União, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), Departamento de Recuperação de Ativos Financeiros (DRCI), Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), com ramificações e operadores específicos congregando parte ou a totalidade de instâncias do próprio Judiciário, como o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o Tribunal de Contas da União, o Superior Tribunal de Justiça e o próprio Supremo Tribunal Federal.
Em cada aparelho desses, um destacamento foi mobilizado: juntaram-se dezenas de magistrados auxiliares, juízes substitutos, diretores, delegados, agentes, economistas, contabilistas, carcereiros, chefes de carceragens, pareceristas, auditores, peritos e técnicos de diversas especialidades.
Para o trabalho dessa gente valia tudo: inviabilizar a vida de qualquer um que tivesse negócios com Lula, com o Instituto Lula, com as empresas investigadas no âmbito da operação e com as empresas de suas relações, muitas vezes sem qualquer autorização judicial.
Os tentáculos do molusco judicial abraçaram estruturas de escritórios de advocacia especializados em arrancar delações premiadas (amparadas por monstrengos legais postos de pé, infelizmente, com a assinatura pela presidenta Dilma Rousseff, no ano anterior à oficialização da Lava-Jato). Para obter delações, montou-se uma espécie de DOI-Codi de escritório ou de parlatório. Montaram-se escuderias para obtenção de confissões mediante tortura psicológica e às vezes física, a depender das condições carcerárias dos “arrependidos”. Enquanto isso, do “lado de fora”, os colunistas da mídia, em coro com líderes de partidos de direita e até de esquerda não-petista, babavam exigindo que o PT facilitasse a tarefa por meio de sua auto-inculpação. Quem não se lembra da então onipresente “autocrítica”?
Operavam a favor da Lava-Jato até mesmo, dependendo do caso, departamentos jurídicos de empreiteiras, escritórios de advocacia de acusados e potenciais delatores, com o apoio do setor jurídico e outras estruturas da própria Petrobrás. O polvo Lava-Jato pariu filhotes no Rio e no Distrito Federal, com versões cariocas e brasilienses mais ou menos convincentes de Moro e de Dallagnol.
A conspiração vazou as fronteiras do país para o exterior. Por canais oficiais misturados a colaborações ilegais, em linhas diretas, mas por baixo dos panos, sem cobertura de convênios internacionais, com, por exemplo, o Ministério Público da Suíça e o FBI, a polícia federal americana.
Isso para citar apenas os órgãos mencionados nas conversas reveladas entre os procuradores de Curitiba até agora. Após a prisão de Lula, em 2017, por exemplo, o procurador-chefe da Lava-Jato, Deltan Dallagnol, comemorou dizendo que se tratava de um “presente da CIA”. Será que a CIA teve participação?
A hipótese é mais do que plausível na sucessão temporal. Edward Snowden, o analista de sistemas da CIA e da então secreta Agência Nacional de Segurança (NSA) estadunidense revelou em 2013 um vasto esquema global de vigilância mantido por Washington, inclusive privilegiadamente no Brasil, e direcionado à Petrobras. O caso gerou protestos e o cancelamento de uma visita aos EUA da presidenta Dilma Rousseff, também espionada pela NSA.
Pelo vazamento em 2016 de outro perseguido político, Julian Assange, do Wikileaks, soube-se que Moro ministrou em 2009 treinamento “para juristas” no Departamento de Estado estadunidense. Como juiz e depois como ministro, Moro voltou diversas vezes aos EUA, em “visitas técnicas a órgãos de investigação” cercadas de mistério e curiosidade.
Quando essa montagem atingiu condições operacionais em 2013 e 2014, com a finalização do arcabouço legal dando poderes ainda maiores ao Ministério Público, o país foi submetido a uma blitz em inédita extensão: mais de oitenta fases operacionais, mais de mil mandados de busca e apreensão, de prisão, de condução coercitiva, em busca de operações financeiras que a Polícia Federal alega terem chegado a R$ 8 trilhões.
No imbróglio foram levadas à bancarrota centenas de empresas de todas as dimensões, investigadas e bloqueadas total ou parcialmente milhares de pessoas físicas e jurídicas. Foram colhidos na enxurrada todo o setor de petróleo e petroquímica, empreiteiras de expressão transcontinental e seus grupos, o programa nuclear brasileiro e pequenos prestadores de serviço, políticos aliados, parentes de investigados e seus conhecidos.
A mancha acusatória incluía criminosos de verdade, mas também inocentes desavisados. Resultou a condenação do país ao atraso econômico, contração do PIB, alienação de estatais, aumento da desigualdade, da pobreza e da fome. O Brasil, que antes avançava, cedeu espaço, se desindustrializou e desnacionalizou. Seu PIB decresceu de 2,5% a 3,4% do PIB, segundo estudos da consultoria da GO Associados (o equivalente R$ 142 bilhões ou R$ 187 bilhões), mas outro cálculo, da RC Consultoria, citado pelo Poder360, aponta uma redução do PIB em dólares de 45% entre 2011 e 2020. Só entre 2014 (último ano antes do boicote de Eduardo Cunha e do empresariado) e 2020, o PIB brasileiro decaiu um trilhão de dólares. Houve beneficiários dessa destruição, os competidores internacionais do Brasil, principalmente os EUA, fora e dentro do país, grandes patronos e receptores do produto do lawfare.
Nada desse enredo ciclópico e estonteante existiria, porém, sem sua peça fundamental, o primeiro cérebro, a origem ideológica, a célula da vida, meio e fim de todo o processo de manejo das informações (e acima de tudo, das emoções): os meios de comunicação.
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E aqui termina o extenso parêntese aberto no início desse texto: diante da reviravolta sensacional da Lava Jato nos tribunais, resta abordar o grande sujeito ainda oculto desse enredo: o imenso poder coligado dos meios de comunicação. Falta esclarecer como os meios de comunicação alimentaram e foram alimentados pela máquina da Lava Jato e as razões de seu luto silencioso.
A mídia de direita brasileira ensaiou, perseguiu, pariu e batizou a Lava-Jato. Quando digo mídia conservadora brasileira refiro-me aos principais, mais poderosos e tradicionais veículos. Àqueles mencionados parcialmente lá em cima, somam-se as revistas IstoÉ, Exame, Época, IstoÉ, para citar apenas a fração mais influente.
Os canos de esgoto no Jornal Nacional expelindo notas de dinheiro, as capas tenebrosas da Veja e outras revistas, ao longo de meses e anos, amplificadas pelos cartazes, sem trégua, sem dar vez e voz ao outro lado, sem dar espaço ao real contraditório, nem tempo, nem folego para uma defesa em igualdade de condições.
Com todas as características dramáticas, os sofrimentos pessoais e sua importância histórica e política, ao final, como fica as responsabilidades pelo que fizeram ao país, às pessoas e mesmo ao mundo? Ali Kamel, Merval Pereira, Míriam Leitão, Sérgio Dávila, William Bonner, Eurípides Alcântara, Ricardo Noblat, Eliane Cantanhêde, nada a reparar?
Agora, quando a farsa foi desmontada no STF, após o vazamento das conversas gravadas por Walter Delgatti Neto, a mídia de direita tenta sair de fininho, recuperar a pose. Seus comandantes escafederam-se, volatilizaram-se, fingem-se de mortos. Nenhuma palavra até agora sobre seu próprio papel, o da mídia, como se ela não estivesse presente no calor das operações, como se não tivesse tido nenhum papel.
O país sabe que teve. Está na hora da autocrítica transparente. Um ajuste de contas precisa ser feito, para que a democracia não esteja permanentemente sob ameaça de sequestro pela mídia de direita. Falta uma comissão da verdade para os meios de comunicação na Lava-Jato. Injustiças e iniquidades históricas não acontecem só na África do Sul ou nos EUA.
Aqui também há líderes heroicos encarcerados injustamente. Em especial agora, diante não apenas da ausência completa de autocrítica, mas quando além disso mais uma vez, depois do fim oficial da Lava-Jato, a mídia de direita age em bando, no mesmo sentido, sem nada alterar.
Parece estar em vigor uma ordem coletiva de silêncio e de mudança de assunto nas redações. Pode até soar descabido, mas no momento há na verdade uma queima de arquivos, uma injustiça contra repórteres que se empenharam na operação e agora são demitidos ou sacrificados sozinhos aos leões. É uma fase, portanto, em que o lavajatismo se disfarça, ao mesmo tempo em que não só está vivo como segue realizando graves ações coordenadas e despercebidas (fique atento a texto sobre outro esse assunto que logo será publicado).
Vossa excelência, ministro Barroso, perdeu, mas não se engane, se depender do “mediafare” dos reacionários, o tormento do(s) Mandela(s) brasileiros voltará sorrateiro.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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